segunda-feira, 28 de março de 2016

sobre Em busca do Tempo Perdido [p1] - Marcel Proust






Sobre Em busca do Tempo Perdido ( À la recherche du temps perdu)
(1913-1927)
do escritor francês Marcel Proust (1871-1922)


A Escrita enquanto investigação e reconquista do passado


Elástico é o tempo de que dispomos cada dia;
as paixões que sentimos o dilatam, as que inspiramos o encurtam
e o hábito o enche.” (Proust, BTP [SRF], 167)

parte 1

     A volumosa obra-prima (3 mil páginas!) de Marcel Proust é de importância monumental para a literatura do século 20, com inovação formal e temática, na transição da Belle Époque para a nossa “era dos extremos”. Mais fundamental e bela é a parte final onde, num circuito que se fecha, Proust descobre seu talento, ao elaborar sua pulsão de Escrita, e começa a descrever-se e sua época. Para entender o início vamos ao final, só compreensível pelo começo. Quando tudo acaba, é que ele começa.

     Num baile, num crepúsculo de época, com suas figuras decadentes, Marcel percebe o quanto o Tempo é capaz de corroer, com suas desventuras, doenças, guerras, fatalidades. Casais que se traem, filhos que se perdem, amores que brotam em vão. E as desilusões se acumulam, parece até que a ordem do mundo é a decadência. Para resguardar o passado somente há uma esperança: a memória. Em suas memórias é que reconstitui as imagens da aristocracia, da burguesia, do governo, da arte, da guerra imperialista, do jovem escritor enquanto leitor.

     Sua época : a Belle Époque fin de siècle - com governo da III República Francesa, entre a aristocracia remanescente e a burguesia ascendente, com o despertar da modernidade, desde Gustave Flaubert (1821-1880), romancista, e Charles Baudelaire (1821-1867), poeta e crítico, vozes da arte moderna, mas ainda não 'modernismo' (em floração na época da I Guerra Mundial, 1914-1918), com uma profusão de inovações meio à decadência, com nova arte art nouveau (1890-1914), romances do realismo, pinturas do impressionismo, avanços do militarismo, o caso Dreyfus, muito antissemitismo, a revanche contra os alemães (pois os franceses foram derrotados em 1870, e assim a Alemanha uniu-se enquanto Estado-nação.

     Temos um verdadeiro painel de época. Muitas personagens que se juntam em óperas, salões, saraus, encontros no parque, caminhos pelo campo, hotéis à beira-mar, paisagens evocadas, campos de batalha. Muita ficção, criação de personalidades, tipos sociais, tipos psicológicos. Alguns personagens de Em Busca tem modelos na vida real como o escritor Bergotte, que lembra Anatole France (1844-1924), autor do Realismo, admirado pelo memorialista; ou o Barão Sr. De Charlus, baseado em Robert de Montesquieu (1855-1921), figura da aristocracia decadente.

     Nomes de época aparecem aqui e ali, seja Nietzsche (1844-1900), Flaubert, Saint-Beuve (1804-1869), Dumas (Filho, 1824-1895) , Napoleão III (1808-1873), ao lado dos pintores do Impressionismo, tais como, Claude Monet (1840 – 1926), Edouard Manet (1832-1883), Edgar Degas (1834-1917), Auguste Renoir (1841-1919), Paul Cézanne (1839-1906), Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901), Paul Gauguin (1848-1903) [que viveu na Polinésia francesa], Gustav Klimt (de Viena, 1862-1918), Vincent van Gogh, nederlandês (1853-1890)

     Também os músicos : Claude Debussy (1862-1918) autor de Prélude à l'aprés-midi d'un Faune, inspirado pelo longo poema do simbolista Stephane Mallarmé (1842-1898), figura essencial para a modernidade e para o modernismo. E outro poeta importante é Paul Verlaine (1844-1896) que continuou na poesia, depois da desistência do jovem bardo Arthur Rimbaud (1854-1891), voz lírica fundamental para o Simbolismo e para o Surrealismo. Pois é necessário “ser absolutamente moderno”.

     Segundo o pensador alemão Walter Benjamin (1892-1940), em seu ensaio sobre Proust (“Uma Imagem de Proust”), as grande obras da literatura fundam ou arruínam um gênero, no que são especiais. Assim a eminência de Em Busca do Tempo Perdido fecha o século 19 e abre o século 20, ao mesmo tempo que Ulisses (1922) de James Joyce e A Montanha Mágica (1924) de Thomas Mann. O poder de descrição de Proust, sua obsessão com a representação textual de uma época, com a introspecção em profundas e extensas frases – um rio sem ribeira – de imagens simultâneas e interconexas.

     Benjamin se perguntava o motivo de uma busca tão frenética, qual seria a base para este 'empenho infinito', pois Proust sempre lia e relia suas frases, corrigia suas provas, sondava suas memórias (que vertiam lembranças nos momentos mais inesperados...), revivia junto com as cenas rememoradas, sofria com suas personagens (que eram extensões dele mesmo, o sonhador e obsessivo). O enorme painel que ele cria com suas rememorações é um imenso tecido de realidades e sonhos, expectativas e decepções – não se trata de uma obra 'realista', o que ele desprezaria, mas de uma dissecação de si mesmo.

     Em Busca vem apresentar os últimos suspiros do século 19 e abrir as portas para o século 20 com a Escrita que vem privilegiar a introspecção, a descrição dos estados emocionais, a vida psíquica com suas vicissitudes, mais dos que os dramas universais, ou estes pela perspectiva de um Narrador que não sabe de tudo. Afinal, como já escrevera Benjamin, em seu artigo sobre O Narrador, aquela narrativa em que tudo se sabia e que tudo abordava, e que tinha algo a ensinar, estava em declínio.

     A obra de Proust está entre aquelas destacadas em O Cânone Ocidental do crítico literário norte-americano Harold Bloom (1930-) com as questões do ciúme e da 'salvação estética', ressaltando a relação Autor e o Narrador. Quem vivenciou e quem descreveu / rememorou o vivenciado. Para Bloom, Proust salvou-se da obsessão amorosa, do ciúme doentio, através de um trabalho, um verdadeiro esforço estético, num amadurecimento que é salvação, saindo de um Proust obsessivo para um Proust artista.

A principal preocupação de Proust não é história social, nem liberação sexual, nem o caso Dreyfus (embora ele fosse, consistentemente, um ativo defensor de Dreyfus). A salvação estética é a missão desse enorme romance;” (Bloom, 1995, p. 388)

o Narrador amadurece de Marcel para o romancista proust, que no volume final do livro reforma sua consciência e pode moldar sua vida numa nova forma de sabedoria.” (p. 388)

É o romance de Proust, e ele não é exatamente nem o Narrador nem Marcel.” (p. 392)



     O que 'salva' Proust? O trabalho 'terapêutico', o estético da Escrita, do observar-se e descrever-se, como percebemos nas obras de Virginia Woolf, Clarice Lispector e Marguerite Duras. Também assim a Escrita-memória de Pedro Nava, Maria Gabriela Llansol e João Gilberto Noll. Destaca-se o observar-se: quando o Eu-velho descreve o Eu-jovem, suas vicissitudes, e aprendizados, mesmo a dizer-se em terceira pessoa.

Quando a sabedoria fala com mais força, no volume de encerramento do romance, o Narrador quase imperceptivelmente funde-se com o romancista Proust, e o mordente humor do ciúme é posto de lado.” (pp. 392-93)

Eis a essência [a perda de Albertine] do motivo pelo qual o Narrador, que foi Marcel, poder agora tornar-se o romancista Proust, e não simplesmente mais um Swann, reduzido a examinar sua coleção de lembranças ciumentas.” (p. 394) [acréscimo nosso]


No mais, percebe-se uma influência sobre a Beat Generation, com a escrita introspectiva, a sondagem psicológica, que animou Jack Kerouac e seu amigo Cassidy em suas viagens pelas vastidões da América do Norte, no final dos anos de 1940. Ambos levavam um exemplar da obra de Proust, como a de um guru literário, com suas frases longas e profundas sobre a vida e a memória, o tempo e o amor. (Consta que também o escritor francês Jean Genet [1910-1986], um ex-presidiário, autor de Diário de um Ladrão, havia lido na prisão um exemplar de Proust, descobrindo assim sua sensibilidade para a Escrita. Assim podemos ver como um autor considerado clássico ajudou para que os 'subversivos' pudessem iniciar suas obras...)




A Obra
 
    Nossa ênfase aqui são os volumes iniciais e final da longa epopeia íntima, onde encontrando as personagens em decadência lembramos dos primeiros contatos com cada uma. Como Marcel descobriu o passado de Charles Swann? Como conheceu Gilberte? Por que dividiu sua vida entre dois caminhos: o de Swann e o de Guermantes? Por que hesitava tanto em começar sua vida de escritas? Por que duvidava do próprio talento e vivia admirando terceiros e terceiras? Por que tão sensível com a opinião alheia?

Mas nem mesmo com referência às mais insignificantes coisas da vida somos nós um todo materialmente constituído, idêntico para toda a gente e de que cada qual não tem mais do que tomar conhecimento, como se se tratasse de um livro de contas ou de um testamento; nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio.” (NCS, p. 24)


Suas digressões são como uma necessidade de se justificar – para si mesmo e para outros – como os estados de espírito se alternavam, se contradiziam, impossibilitando sua totalidade psíquica. Tal como o poeta lusitano Fernando Pessoa (1888-1935), Proust precisou se fragmentar, para se encontrar. Ele se espelhava em outros, sofrimentos alheios, de pessoas reais e personagens de romances, para entender-se. No primeiro volume ele se detém na vicissitudes amorosas do ciumento Charles Swann.

     Entre o sono e a vigília, Marcel discorre em páginas longas sobre a percepção da sensibilidade e da perda, sua falta do beijo da mãe, quando esta recebe a visita de um certo Sr. Swann, amigo da família; quando ele quando aborda a figura social do Sr. Swann – quem era Charles Swann? Temos as primeiras impressões de Marcel sobre o homem que frequentava a sociedade, as óperas, os saraus. Primeiro seria um rival, depois um modelo. Um homem em ascensão, um ser obsessivo, um homem corroído pelo ciúme. Swann é importante enquanto figura de um passado que somente depois ele pôde compreender.

     Em sua Escrita é preciso reconstituir um passado enquanto tema e conteúdo, mas como fazer tal resgate? É o passado rememorado tal como foi? Ou nossas apreensões de hoje modificam nossa percepção do ontem? A memória não emerge quando desejamos, mas por mecanismos que lembram os sonhos – em deslocamentos e associações, de modo involuntário. Daí falar de uma 'memória involuntária'.

[...] o nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços de nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora de seu domínio e de seu alcance, em algum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca.” (NCS, p. 48)


     Um belo dia, sem o desejar, Marcel tem um encontro com seu passado, oculto nele mesmo. Suas lembranças emergem quando ele se delicia com um biscoito (madeleine) mergulhada num chá de tília. O sabor, e o prazer que este desperta, vem trazer lembrança de momentos semelhantes, em sua juventude. O ontem não se materializa, não pode fazê-lo, mas o corpo é tomado pelo passado, o eu-de-ontem possui o eu-de-hoje, que se esforça para descrever tal 'incorporação'. Não é o sujeito que tem memória, mas a memória que preenche o narrador. Trata-se de uma 'possessão'. Como compreendê-la? Como fazer com que se repita?

Deponho a taça e volto-me para meu espírito. É ele que compete achar a verdade. Mas como? Grave incerteza, todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? Não apenas explorar: criar. Está diante de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar em sua luz.” (p. 49)

Mas quando mais nada subsiste de um passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o dor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação.” (p. 51)


São todas citações de No Caminho de Swann [Du cotê de chez Swann] na tradução do poeta Mário Quintana, onde Proust inicia sua Busca pelo que seria seu passado, também de seus pais, de seus amores. E na Arte ele encontraria uma forma de entender o que é o Tempo, no qual vivemos, como vivemos, como outras pessoas viveram, e qual o sentido de viver uma vida finita, que se extingue quando menos esperamos.
Em suas divagações sobre a arte do romance, nos quais se espelha nas personagens, Marcel reconhece os talentos capazes de apresentarem e conservarem os tempos idos, não como foram, mas como foram sentidos, nas obras escritas,

Mas todos os sentimentos que nos fazem experimentar a alegria ou o infortúnio de uma personagem real só se produzem em nós por intermédio de uma imagem dessa alegria ou desse infortúnio; todo o engenho do primeiro romancista consistiu em compreender que, sendo a imagem o único elemento essencial na estrutura de nossas emoções, a simplificação que consistisse em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por mais profundamente que simpatizemos com ele, percebemo-lo em grande parte por meio de nossos sentidos, isto é, continua opaco para nós, oferece um peso morto que nossa sensibilidade não pode levantar.” (pp. 86-87)


O achado do romancista consistiu na ideia de substituir essas partes impenetráveis à alma por uma quantidade igual de partes imateriais, isto é, que nossa alma pode assimilar.” (p. 87)

E uma vez que o romancista nos pôs nesse estado, no qual, como em todos os estados puramente interiores, cada emoção é duplicada, e em que seu livro vai nos agitar como um sonho, mas um sonho mais claro do que aqueles que sonhamos a dormir e cuja lembrança vai durar mais tempo, (...)” (p. 87)


Marcel se deixa idealizar a filha do Sr. Swann, a moça Gilberte, ao descobrir que ela tem um importante amigo: o escritor Bergotte, muito admirado, quase um ídolo literário, e que certamente foi inspirado pela importância de Anatole France (que atuou na defesa do oficial judeu acusado no caso Dreyfus). Bergotte em breve também será amigo do narrador, como veremos. Basta que constatemos as apreensões e idealizações que Marcel tem da vida de escritor, de contato com a literatura, endeusada a ponto deixá-lo com algum 'complexo' por décadas.

     Em Combray, em suas paisagens tão sentimentalmente descritas por Marcel, assim como demonstrará a 'geografia sentimental' de Pedro Nava, em suas memórias, existem distintamente, por critérios geográficos e de posição social, dois caminhos: um que segue rumo a Méséglise-la-Vineuse, que será chamado de caminho de Swann, e aquele do lado de Guermantes, seguindo o rio Vivonne, onde é margeado por fidalgais castelos. O primeiro caminho pode ser aquele dos arrivistas, enquanto o segundo é o dos aristocratas, ainda que decadentes.

     No caminho de Méséglise, ou de Swann, está a casa do Sr. Vinteuil, músico conhecido nos saraus. Uma melodia em especial, composta por este músico, será fundamental para a compreensão de futuras cenas e situações do romance. O encanto de Charles Swann por uma sonata será uma das inspirações para seu ciumento afeto por Odette, a Sra. Swann. Numa segunda fase, será o próprio Marcel a se emocionar pela sonata de Vinteuil.

     No caminho de Guermantes, as paisagens onde as florações desabrocham junto com a juventude, onde o perfume de pilriteiros marcará toda a vida de Marcel, a idealizar a nobreza dos castelos. Entre os dois caminhos, ele só compreenderá suas hesitações tempo depois, quando os casamentos entre burgueses ascendentes e nobres decadentes se fazerem possíveis, em plena III República.

[...] aquele perfume de pilriteiro que vagueia ao longo da sebe onde em breve o substituirão as roseiras bravas, um rumor de passos sem eco na areia de uma alameda, uma bolha formada contra uma planta aquática pela água do rio e que logo rebenta, minha imaginação os carregou e os fez atravessar tantos anos sucessivos, ao passo que em torno desapareceram os caminhos e estão mortos aqueles que os pisaram, e a lembrança daqueles que os pisaram.” (pp. 180/181)

Idealizações de círculos sociais, ou de artistas, ou de aristocratas. Eis a primeira juventude de Marcel. Mas ele não é o único que idealiza. Imaginemos o amor por uma melodia! Pois Charles Swann se apaixona por Odette de Crécy ao se emocionar com a sonata para piano e violino de Vinteuil, que é tocada nos saraus dos Verdurin, casal de arrivistas sociais que tentam se aproximar dos círculos da aristocracia – tanto financeira quanto cultural. Nos saraus, Swann se aproxima de Odette, a quem ele passa a idealizar. De modo semelhante, futuramente, Marcel é quem idealiza a filha do casal, a Gilberte, a amiga do escritor Bergotte.

     Em dada cena, Swann percebe a sua afeição por Odette quando nota a ausência dela no sarau. De início, ele simulava uma espécie de indiferença por ela, mas no momento da ausência, aflora a paixão, e ele se mostra ciumento. Ele que diz detestar ciumentos! Assim ele evita demonstrar o ciúme – o que a valoriza. Mas quem é Odette? Ele realmente a conhece? Afinal, somente se encontram nos saraus e passam algumas noites juntos...

     As desconfianças de Swann levam a um verdadeiro tratado poético sobre o ciúme, que passa a corroer as vidas emotiva e social do personagem, um protótipo do ciumento que um dia será o próprio Marcel, louco pelas jovens moças em flor. Ao desconfiar de Odette, Swann passa a desprezar o arrivismo dos Verdurin, seu círculo de frequentadores, dado como “o mais baixo da escala social”. Quando ele mais procura agradar, mais se trai. O que é Odette para ele? Odette para Swann é uma “criatura ausente, desejada, imaginária”, objeto de um sentimento inspirado numa melodia de violino. 
 
     No sarau da Sra. De Saint-Euverte, num ambiente de aristocracia, meio às melodias, Swann sofre ao lembrar-se do tempo da paixão por Odette, e seus excessos de ciumento, que procura e encontra sempre detalhes dos quais desconfiar. “Pois o que nós julgamos seja o nosso amor, o nosso ciúme, não é uma mesma paixão contínua, indivisível. Compõem-se eles de uma infinidade de amores sucessivos, de ciúmes diferentes, mas, por sua multidão ininterrupta, dão a impressão de continuidade, a ilusão da unidade.” (p. 356)

     Eis a ilusão do amor, ou da paixão, o que julgamos ser a 'unidade' de um sentimento tão contraditório, tão autodestrutivo, por insaciável. A persona se contesta, se sonda, se divide, diante da perda do Outro, que não é realmente reconhecível. Se nem a si mesmo ele conhece! Swann, em sua dor obsessiva, a observar-se como se fosse um outro, irreconhecível, “Assim falava Swann a si mesmo, pois o jovem que a princípio não pudera identificar era também ele: como certos romancistas, Swann havia dividido a sua personalidade entre duas personagens; a que estava sonhando e a que ele via diante de si.” (p. 363)

     Quando a paixão, ou a obsessão, acaba, o que resta? A desilusão, aquela de ter corrido para o caminho errado, afinal, ele desabafa, Odette nem era o que ele desejava, mas uma idealização. “Ela não é o meu tipo!”, percebe afinal.

     Estas vicissitudes da afeição, captada por uma memória fugidia, além da nossa vontade, que fazem emergir as inquietações, e as indagações, do Narrador, perdido agora tal como estava outrora perdido o seu protótipo Swann. Em suas caminhadas, seja pelos campos, ou no Bois de Bologne, em nomes que evocam imagens, em paisagens, mutáveis com as estações, que despertam considerações sobre a memória, suas limitações, suas configurações, que se esfumaçam para nós, surgindo apenas de modo involuntário, 
 
Devido à solidariedade que guardam entre si as diferentes partes de uma recordação e que a nossa memória mantém em equilíbrio num conjunto a que não é permitido tirar nem recusar coisa alguma, eu desejaria ir terminar o dia... diante de uma taça de chá, num apartamento de paredes de cor sombria, … onde brilharia o fogo dourado, a rubra combustão, a flama rósea e branca dos crisântemos no crepúsculo...” (p. 408)

A realidade que eu conhecera não mais existia. […] Os lugares que conhecemos não pertencem tampouco ao mundo do espaço, onde os situamos para maior facilidade. Não eram mais que uma delgada fatia no meio de impressões contíguas que formavam a nossa vida de então; a recordação de certa imagem não é senão saudade de certo instante; e as casas, os caminhos, as avenidas são fugitivos, infelizmente, com os anos.” (p. 409)


     No volume seguinte, À Sombra das Raparigas em flor [À l'ombre des jeunes filles em fleur], ainda na tradução de Mário Quintana, temos o prosseguimento do amor de Swann, com a diferença que o narrador está mais concentrado na figura da Sra. Swann, a ex-cocote Odette de Crécy, dama da sociedade e mãe de Gilberte, a paixão juvenil de Marcel, que se entrega a longas digressões sobre o amar e ser amado,

“Indubitavelmente, raríssimas pessoas compreendem o caráter puramente subjetivo desse fenômeno em que consiste o amor e como é o amor uma espécie de criação de um indivíduo suplementar, distinto daquele que usa no mundo o mesmo nome, e que formamos com elementos na maioria tirados de nós mesmos.” (SRF, p. 41)

Charles Swann, o ciumento, se casara com Odette. Assim como Swann idealizara Odette, Marcel idealiza a jovem Gilberte, filha do casal. E depois idealizará obsessivamente as jovens em flor nas praias de Balbec.





     No segundo volume aprofunda-se este romance de sensibilidades, de sinestesias, onde perfumes, gostos se mesclam, trazendo lembranças que possuem o narrador, em espasmos involuntários de uma memória transbordante,

Eu desejaria, como outrora em meus passeios para o lado de Guermantes, ver se penetrava o encantamento daquela impressão que me dominara e permanecer imóvel a interrogar aquela emanação avelhentada que me oferecia, não o gozo do prazer que só me dava por acréscimo, mas a descida até o fundo da realidade que ela não me revelara.” (p. 62)

Ao voltar para casa percebi, recordei subitamente a imagem, até então oculta, de que me havia aproximado, sem me deixar vê-la nem reconhecê-la, o frescor, quase cheirando a fuligem, do pavilhão gradeado. Aquela imagem era a da pequena peça de meu tio Adolphe, em Combray, a qual exalava, com efeito, o mesmo perfume de umidade. Mas não pude compreender e deixei para mais tarde o trabalho de pesquisar por que a lembrança de uma imagem tão insignificante me dera tamanha felicidade.” (p. 64)


Chega uma carta de Gilberte – Marcel quase não pode acreditar, pois seus sonhos se realizam. Assim ele adentra o círculo dos Swann – jantares, saraus, encontros, onde tem contato com a sonata de Vinteuil – a beleza da sonata para Swann é adornada pela memória, a qual Marcel ainda não tem, ao estar nos primeiros contatos com a obra musical.

     O convívio se inicia numa época turbulenta, marcada pelo Caso Dreyfus. Um despontar do antissemitismo na França, e na Europa, em geral. Lembrar que Charles Swann é de descendência judaica. Esta questão aparecerá mais adiante, nos demais volumes, mas podemos adiantar aqui.

     O caso Dreyfus [Affaire Dreyfus] foi um momento de escandaloso antissemitismo no seio da sociedade francesa, quando um oficial militar de origem judaica, Alfred Dreyfus (1859-1935) foi acusado e condenado por um crime de 'traição à pátria' que não cometeu. Foi humilhado e exilado, em 1894, para a Ilha do Diabo, na Guiana Francesa, somente sendo reabilitado depois da revisão do processo em 1906, quando foi descoberto o verdadeiro traidor da pátria, um major de origem húngara.

     Não passou de uma farsa e um processo fraudulento, a dividir as opiniões da sociedade francesa, no momento da III República Francesa, contra a qual conspiravam os monarquistas, apoiados pela hierarquia católica. A origem judaica de Dreyfus foi explorada para disseminar desconfiança contra os judeus nos cargos públicos e no comércio. Os intelectuais de esquerda, e de centro, apoiadores da República e antipáticos ao chauvinismo, ficaram ao lado de Dreyfus, como são os casos de Anatole France, enquanto advogado de defesa, e do naturalista Émile Zola (1840-1902) , autor do libelo de defesa J'accuse [Eu acuso] contra a fraude antissemita.

     Mas as digressões de Marcel continuam sobre a memória, a percepção estética, a idealização do amor, os contrastes entre obra e autor, quando conhece o seu ídolo literário, o escritor Bergotte, inspirado em Anatole France. O narrador passa a comparar o escritor com a obra, já admirada. Pois a partir da obra ele imaginava um autor, e depois só se decepcionou.

Sua obra [de Bergotte] já não me parecia tão inevitável. Perguntei-me então se a originalidade prova realmente que os grandes escritores sejam deuses, cada um senhor de um reino independente e exclusivamente seu, ou se não haverá nisto algo de fingimento e as diferenças entre as obras não serão antes uma resultante do trabalho que expressão de uma diferença radical de essência entre as diversas personalidades.” (p. 122)


Por exemplo, o modo de falar diferente da escrita, pois o que pode ser grandioso na texto pode tornar-se menor numa conversa, uma vez que perdem-se o estilo e a clareza. Surgem, então, os lugares-comuns, as repetições, as digressões. Então onde está a figura do Gênio? Será uma criação da mídia? Da crítica? Das academias? O gênio é mais que um talento, ou fruto de intelecto, mas uma capacidade de transformar, comunicar, expressar o que é até óbvio, mas ainda não compreendido, ou investigado. Gênios não são os mais cultos ou refinados, mas aqueles e aquelas que se tornam espelhos de uma sociedade numa época, “pois o gênio consiste no poder refletor e não na qualidade do espetáculo refletido.” (p. 117)

     Diferenças entre autor e obra podem ser de aspecto moral. A obra reflete o que o autor realmente é e pensa? Escritor moralista não é necessariamente um homem moral, antes, ao contrário, pode ser vicioso. O que é soa contraditório, mas funciona. “Só nas vidas realmente viciosas é que o problema moral se pode apresentar em toda a sua força de ansiedade. E a esse problema dá o artista uma solução, não no plano da sua vida individual, mas de que é para ele a sua verdadeira vida, uma solução geral, libertária.” (p. 120) e, também, “o gênio, por ter a maior experiência do espírito, melhor pode compreender as ideias mais opostas às que constituem o fundo de suas próprias obras.” (p. 129)

     Marcel e a vontade de escrever (“trabalhar de modo definitivo”), mas ele sempre adia – em sua juventude de repouso e banalidade – uma vez que faltam dedicação, esforço, seriedade e conteúdo. Somente vinte anos depois ele terá o conteúdo: sua própria vida, suas memórias, suas opiniões digressivas sobre a sociedade de sua época.

     Então a amizade enamorada com a idealizada Gilberte, então surgem as diferenças entre imagem e convivência, entre o que pensamos sobre o Outro e o que este/esta se revela. Assim a Gilberte que Marcel queria conhecer e a Gilberte que Marcel realmente conhecerá. Depois a Gilberte que será a esposa de Saint-Loup, rememorado nas páginas sobre a Grande Guerra.

     O jovem descobre que amor é um sofrimento, nunca um sossego, que poderá esgotar sua sensibilidade, aprofundar sua melancolia, sua mania de julgar (e de temer ser julgado...), a ponto de tecer digressões sobre as dores de uma separação. O primeiro amor que trouxe uma carga de dedicação e que findou em indiferença. Nossos sentimentos mudam, as afeições alheias também. Os amores fenecem com o tempo … Como ser feliz? Como se realizar num tempo sempre a escoar? Assim seus desassossegos, entre agradar o ser amado, e ver-se humilhado, ou ser digno, sincero, e ver-se abandonado.

     Nas exposições, nos saraus, nas viagens, quando nas descobertas das novas tecnologias de fim de século – eletricidade e telefone ! - de nada valerá o luxo e a elegância no qual ele adentra, seja na família de Swann, seja nos salões aristocráticos, junto aos Guermantes, entre os arrivistas e os decadentes, ele sempre terá uma desconfiança, que permite sua observação aguçada sobre os convivas – máscaras sociais das quais somente depois ele descobrirá as reais personalidades. Mas o tempo não para, e ele logo estará à sombra das moças em flor.

     Tempos depois, em uma temporada de viagem, em mudança de hábitos, Marcel está em Balbec, cidade turística, nas praias cheias de sol e juventude, onde ele encontra o cenário para mais amores juvenis. Camponesas, ciclistas, banhistas que ele vê de passagem, as 'flores do dia claro', que ele deseja. As moças esportistas passeiam pela areia, trocam risadas, exibem vitalidade para o seu coração demasiadamente juvenil, encantado pela beleza fugaz, inalcançável. “As frechas da beleza, essa beleza que seria de perguntar se neste mundo consiste em algo mais que na parte de complemento que a nossa imaginação, superexcitada pela angústia, acrescenta a uma mulher que passa fragmentária e fugitiva.” (p. 256)

     Como temos Proust adulto, maduro, a narrar na voz de um Marcel juvenil, não nos passam despercebidas as ironias, fruto de amargura de sentir o 'tempo perdido', aquela juventude que se foi, que só resta em lembranças soltas, que surgem descompassadas. A narração do que viveu e como se lembra do que viveu, o que sentia e o que sente então em relação ao que sentiu – um eu-de-hoje sobre um eu-de-ontem, aqui personagem.

     O narrador abre pausas na narrativa – sobre as férias em Balbec – para tecer comentários sobre o círculo de amigos na época em que escreve (início do século 20), sobre as pessoas que pouco se importam com nossa sensibilidade. Que diferença para as pessoas de personalidade forte que ele conhecera. Mesmo que não gostasse, era inegável a marca de caráter que possuíam. Por exemplo, o tio de Robert, Palamède, o Sr. De Charlus, de ares blasé, insolente demais até para os aristocratas, “lançou-me um derradeiro olhar, atrevido, prudente, rápido e profundo, tudo ao mesmo tempo, […] e depois de olhar em derredor, adotou uma atitude de homem distraído e altaneiro [...]” (SRF, p. 209)

     O Sr. De Charlus terá presença marcante nos volumes próximos - O Caminho de Guermantes, Sodoma e Gomorra e O tempo redescoberto – enquanto Marcel vivencia as estórias da aristocracia, antes somente descritas pela prosa animada de Robert de Saint-Loup. É em Balbec que Marcel conhece os Guermantes – tão idealizados ! - de Combray. Uma família nobre tradicional – não do Império ! - que possui ascendência, arquivos, propriedades, de ordem superior, tudo carregado de muita História, além de herança, nobre esforço e talento. Eis a elegância do que sobrou do Antigo Regime, na admiração pela 'nobreza de espírito' contra a arte plebeia, representada pela burguesia, com a moda, os eventos, as exposições, em suma, a modernidade.


     Em um momento de ausência de Robert – em Doncières para prestar serviço militar – Marcel tem a visão das 'moças em flor' , as 'encantadoras', a seguirem para a praia, “(Eu) estava num desses períodos da mocidade, vagos, desprovidos de um amor particular, em que, por toda parte se deseja, se procura, se vê a beleza.” (p. 321-322) As moças andam na praia, correm de bicicleta, como que indiferentes a tudo o mais, ignorando a multidão de banhistas e turistas. O que mais aguça o desejo de Marcel – seu amor difuso pela Beleza, “uma beleza fluida, coletiva e móvel”, pois são “aquelas amigas, todas tão belas”, idealizações que remontam ao classicismo helênico, “E acaso não eram nobres e calmos modelos de beleza humana que eu via ali diante do mar, como estátuas expostas ao sol numa costa da Grécia?” (p. 324)

     A 'beleza fugaz' aguça a fantasia, uma vontade de perseguição e de posse. Quem será a ciclista “de olhos brilhantes”, a jovem que se destaca? Somente dias depois Marcel a conhecerá, em circunstâncias imprevistas. “Nem entre as atrizes, ou as camponesas, ou as moças do pensionato religioso, eu vira nada de tão belo, impregnado de tal desconhecido, tão inestimavelmente precioso, tão verossimilmente inacessível.” (p. 330)

     Marcel se deixa fantasiar sobre as moças. Quem será a referida Srta. Simonet? Ele logo saberá – ele que avança e recua na narração, a fazer perguntas para as quais já sabe a resposta. Naquela época – 1893-94 – Proust ainda não podia se dedicar à Escrita – outros prazeres, outros saraus, outras belezas o aguardavam, ele confessa o “tédio que sentia ao sentar-me ante uma mesa para começar um estudo crítico ou um romance.” (pp. 339-340), então “Talvez algumas obras-primas tenham sido compostas entre bocejos.” (idem)

     Os passeios, a vida noturna em Rivebelle até conseguem aliviar um pouco a obsessão de Marcel pelas moças a desfilarem na praia. Novos ambientes, novas paisagens, que futuramente será conteúdo de seus textos, onde o vivido fornece cenários para a vida que é sentida como uma espécie de teatro, ou sonho, como podemos ler em Shakespeare ou Calderón de la Barca.

Depois, até a minha própria vida estava inteiramente oculta por uma cenário novo, como o que se coloca à beira do palco e diante do qual, enquanto atrás se mudam os quadros, atores representam um entreato. Aquele em que eu desempenhava então o meu papel era ao gosto dos contos orientais, nele eu nada sabia de meu passado nem de mim mesmo, devido à aquela extrema proximidade de um cenário interposto; não era mais que uma personagem que sofria castigos por uma falta que não percebia, [...]” (pp. 349-350)


Marcel desconhece as moças – onde moram, o que fazem, seus hábitos – então cria tudo pela imaginação: ele observa, tem hipóteses, faz previsões. A incerteza de não poder vê-las mais vem criar uma angústia – um medo de perda: logo uma afeição. É preciso a impossibilidade, o inalcançável, o risco de não mais rever, a não-posse do ser amado para aumentar o que chamamos de amor.

     A nova rotina de Marcel era ir à praia para vislumbrar as moças, conseguir encontrá-las, ao menos uma vez, “Amando-as a todas, não amava a nenhuma, e contudo o seu possível encontro era para os meus dias o único elemento delicioso, a única coisa que fazia nascer em mim essas esperanças que desafiam todos os obstáculos [...]” (p. 360) e “Era a elas que meu pensamento agradavelmente se prendia, quando supunha pensar em outra coisa ou em nada.” (p. 360)

A aurora de juventude que coloria ainda a face daquelas meninas, e que a mim, na minha idade, não mais alcançava, iluminava tudo diante delas e, da mesma forma que a fluida pintura de alguns primitivos, destacava sobre um fundo de ouro os mais insignificantes detalhes da sua vida.” (p. 421)

Onde poderia Marcel encontrá-las e iniciar uma conversa socialmente aceitável? Acontece que em noitada em Rivebelle, ele conhecera um artista, o pintor Elstir, que o convidara a visitar o ateliê. Lá, Marcel se entrega a divagações sobre a Arte, “Não há progresso nem descobertas na arte, cada artista recomeça, por sua conta” (p. 364), a arte depois de reconhecida, divulgada perde a originalidade – daí novo artista rompe com o antigo e recomeça... Assim a alternância de realismo, impressionismo, expressionismo...

     De repente, uma das moças em flor aparece no ateliê... fato inesperado ! E é a Srta. Albertine Simonet, cuja origem social está na pequena burguesia, de industriários, não a sociedade nobre que Marcel desejava. Contudo, Albertine se impõe no romance como a nova obsessão: bem mais forte que a aquela pela cantora Berma ou a jovem Gilberte Swann. Pois Albertine será a prisioneira e a fugitiva, assim a figura central no ciúme que corrói o narrador – tal qual Swann por Odette. A vida e as vicissitudes da paixão de Marcel por Albertine estão mais detalhadas em dois volumes: A Prisioneira e A Fugitiva.

Que conhecia eu de Albertine? Um ou dois perfis destacados sobre o mar, por certo muito menos belos que os das mulheres de Veronese, as quais deveriam ser preferidas no caso em que eu obedecesse a razões puramente estéticas. E que outras razões podia ter se, uma vez que minha angústia arrefecia, não me encontrava com outra coisa a não ser esses mudos perfis, e não possuía nada mais?” (p. 381)

Essa Albertine quase se reduzia a uma silhueta; tudo o que se lhe sobrepunha era da minha invenção, pois em amor acontece que as contribuições originárias de nós mesmos suplantam aquelas que nos vêm da criatura amada.” (p. 382)


Quando a vida torna-se novela, matéria de romance, seguindo de vulgar à memorável, as alegrias recordadas podem ser descritas, não mais sentidas, “O que apanhamos na presença da criatura amada não passa de um negativo; revelamo-lo mais tarde, uma vez em casa, quando encontramos a nossa disposição essa câmara escura interior cuja entrada é proibida enquanto há gente à vista.” (p. 393)

     Enfim Marcel é apresentado à Albertine – é quando os Outros nos percebem – ela que foi idealizada, enquanto, para ela, ele é indiferente. Acontece que Albertine para ele não será uma passante, 'beleza fugaz', mas alguém a marcar a sua vida. E ela sempre parece diferente – ora com Marcel, com o pintor, ora com as outras moças. Quem será sua persona real? Não sera mera impressão? “De resto, eu deveria tê-lo adivinhado, pois a moça da praia fora fabricada por mim.” (p. 396) Assim, várias Albertines, entre imaginárias e a real, a inacessível. Então, é de se pensar, de quem ele se enamora? E por que não outra das amigas? Por que ela seria especial? O que a diferencia? Qual a Albertine de suas lembranças? “Nossa memória se assemelha a essas lojas que expõem na vitrina, de uma mesma pessoa, uma vez uma fotografia, depois outra. E em geral a mais recente continua exposta sozinha.” (p. 408) e acontece que “recordar uma criatura é na realidade esquecê-la.' (p. 431) pois a memória flutua, cria e recria, “toda criatura se destrói quando deixamos de vê-la; seu aparecimento seguinte é uma criação nova, diversa da imediatamente anterior, senão de todas.” (p. 432)

     Certamente Albertine vem lembrar algo de Gilberte, pois há uma semelhança entre os seres amados, “de modo que um romancista poderia, no curso da vida de seu herói, pintar quase exatamente iguais os seus sucessivos amores, e dar com isso a impressão, não de imitar-se a si mesmo, mas de criar, pois há menos força numa inovação artificial que numa repetição destinada a sugerir uma verdade nova.” (p. 412)

     Mas o desejo de Marcel se deixa vagar por entre as moças, sem se fixar, flertando com Albertine, ou Andrée, criando ciúmes, aguardando prazeres, sofrendo com as expectativas não realizadas. Depois de conviver com as belas e enigmáticas, descobrimos que nada há de belo ou misterioso, apenas idealizações nossas. A estação de veraneio acabou, a bela época se foi, as moças em flor seguem para desabrochar em outras paragens, outras paisagens. “As moças em flor vão casar e não é com você.”, como diz o poema do mineiro Carlos Drummond de Andrade, de inspiração proustiana.


>> parte 2


[continua...]



mar/16


Leonardo de Magalhaens



Referências


BENJAMIN, Walter. “A imagem de Proust”. Magia, técnica, arte e política. In Obras Escolhidas, I. São Paulo: Brasiliense, 1986.

BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental. (The Western Canon, 1994) trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Trad. Mário Quintana. 19ª ed. rev. São Paulo: Globo, 1998. (Em Busca do Tempo Perdido, I)

____________ . À Sombra das raparigas em flor. Trad. Mário Quintana. 13ª ed. rev.
São Paulo: Globo, 1996. (Em Busca do Tempo Perdido, 2)

____________ . O Caminho de Guermantes. Trad. Mário Quintana. 11ª ed. rev. São Paulo: Globo, 1996. (Em Busca do Tempo Perdido, 3)

____________ . Sodoma e Gomorra. Trad. Mário Quintana. 14ª ed. rev. São Paulo: Globo, 1998. (Em Busca do Tempo Perdido, 4)

____________ . A Prisioneira. Trad. Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar.
13ª ed. Rev. São Paulo: Globo, 1998. (Em Busca do Tempo Perdido, 5)

____________ . A Fugitiva. Trad. Carlos Drummond de Andrade. 12ª ed. São Paulo: Globo, 1995. (Em Busca do Tempo Perdido, 6)

____________ . O Tempo Redescoberto. Trad. Lúcia Miguel Pereira. 13ª ed. rev.
São Paulo: Globo, 1998. (Em Busca do Tempo Perdido, 7)


SARTRE, Jean-Paul. Diário de uma Guerra Estranha. (Les Carnets de la Drôle de
Guerre, 1983) trad. Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1983.

SHATTUCK, Roger. Marcel Proust. New York: Viking, 1975.

____________ . As ideias de Proust. Trad. Eliane F. Pereira. São Paulo: Cultrix / EDUSP, 1985.