Sobre
Em busca do Tempo Perdido ( À la recherche du temps perdu)
(1913-1927)
do
escritor francês Marcel Proust (1871-1922)
A
Escrita enquanto investigação e reconquista do passado
“Elástico é o tempo de que
dispomos cada dia;
as paixões que sentimos o dilatam, as
que inspiramos o encurtam
e o hábito o enche.” (Proust, BTP
[SRF], 167)
parte 1
A volumosa obra-prima (3 mil
páginas!) de Marcel Proust é de importância monumental para a
literatura do século 20, com inovação formal e temática, na
transição da Belle Époque para a nossa “era dos
extremos”. Mais fundamental e bela é a parte final onde, num
circuito que se fecha, Proust descobre seu talento, ao elaborar sua
pulsão de Escrita, e começa a descrever-se e sua época. Para
entender o início vamos ao final, só compreensível pelo começo.
Quando tudo acaba, é que ele começa.
Num baile, num crepúsculo de época,
com suas figuras decadentes, Marcel percebe o quanto o Tempo é capaz
de corroer, com suas desventuras, doenças, guerras, fatalidades.
Casais que se traem, filhos que se perdem, amores que brotam em vão.
E as desilusões se acumulam, parece até que a ordem do mundo é a
decadência. Para resguardar o passado somente há uma esperança: a
memória. Em suas memórias é que reconstitui as imagens da
aristocracia, da burguesia, do governo, da arte, da guerra
imperialista, do jovem escritor enquanto leitor.
Sua época : a Belle Époque –
fin de siècle - com governo da III República Francesa, entre
a aristocracia remanescente e a burguesia ascendente, com o despertar
da modernidade, desde Gustave Flaubert (1821-1880), romancista, e
Charles Baudelaire (1821-1867), poeta e crítico, vozes da arte
moderna, mas ainda não 'modernismo' (em floração na época da I
Guerra Mundial, 1914-1918), com uma profusão de inovações meio
à decadência, com nova arte art nouveau (1890-1914),
romances do realismo, pinturas do impressionismo, avanços do
militarismo, o caso Dreyfus, muito antissemitismo, a revanche contra
os alemães (pois os franceses foram derrotados em 1870, e assim a
Alemanha uniu-se enquanto Estado-nação.
Temos um verdadeiro painel de época.
Muitas personagens que se juntam em óperas, salões, saraus,
encontros no parque, caminhos pelo campo, hotéis à beira-mar,
paisagens evocadas, campos de batalha. Muita ficção, criação de
personalidades, tipos sociais, tipos psicológicos. Alguns
personagens de Em Busca tem modelos na vida real como o
escritor Bergotte, que lembra Anatole France (1844-1924), autor do
Realismo, admirado pelo memorialista; ou o Barão Sr. De Charlus,
baseado em Robert de Montesquieu (1855-1921), figura da aristocracia
decadente.
Nomes de época aparecem aqui e ali,
seja Nietzsche (1844-1900), Flaubert, Saint-Beuve (1804-1869), Dumas
(Filho, 1824-1895) , Napoleão III (1808-1873), ao lado dos pintores
do Impressionismo, tais como, Claude Monet (1840 – 1926),
Edouard Manet (1832-1883), Edgar Degas (1834-1917), Auguste Renoir
(1841-1919), Paul Cézanne (1839-1906), Henri de Toulouse-Lautrec
(1864-1901), Paul Gauguin (1848-1903) [que viveu na Polinésia
francesa], Gustav Klimt (de Viena, 1862-1918), Vincent van Gogh,
nederlandês (1853-1890)
Também os músicos : Claude Debussy
(1862-1918) autor de Prélude à l'aprés-midi d'un Faune,
inspirado pelo longo poema do simbolista Stephane Mallarmé
(1842-1898), figura essencial para a modernidade e para o modernismo.
E outro poeta importante é Paul Verlaine (1844-1896) que continuou
na poesia, depois da desistência do jovem bardo Arthur Rimbaud
(1854-1891), voz lírica fundamental para o Simbolismo e para o
Surrealismo. Pois é necessário “ser absolutamente moderno”.
Segundo o pensador alemão Walter
Benjamin (1892-1940), em seu ensaio sobre Proust (“Uma Imagem de
Proust”), as grande obras da literatura fundam ou arruínam um
gênero, no que são especiais. Assim a eminência de Em Busca do
Tempo Perdido fecha o século 19 e abre o século 20, ao mesmo
tempo que Ulisses (1922) de James Joyce e A Montanha Mágica
(1924) de Thomas Mann. O poder de descrição de Proust, sua obsessão
com a representação textual de uma época, com a introspecção em
profundas e extensas frases – um rio sem ribeira – de imagens
simultâneas e interconexas.
Benjamin se perguntava o motivo de
uma busca tão frenética, qual seria a base para este 'empenho
infinito', pois Proust sempre lia e relia suas frases, corrigia suas
provas, sondava suas memórias (que vertiam lembranças nos momentos
mais inesperados...), revivia junto com as cenas rememoradas, sofria
com suas personagens (que eram extensões dele mesmo, o sonhador e
obsessivo). O enorme painel que ele cria com suas rememorações é
um imenso tecido de realidades e sonhos, expectativas e decepções –
não se trata de uma obra 'realista', o que ele desprezaria, mas de
uma dissecação de si mesmo.
Em Busca vem apresentar os
últimos suspiros do século 19 e abrir as portas para o século 20
com a Escrita que vem privilegiar a introspecção, a descrição dos
estados emocionais, a vida psíquica com suas vicissitudes, mais dos
que os dramas universais, ou estes pela perspectiva de um Narrador
que não sabe de tudo. Afinal, como já escrevera Benjamin, em seu
artigo sobre O Narrador, aquela narrativa em que tudo se sabia
e que tudo abordava, e que tinha algo a ensinar, estava em declínio.
A obra de Proust está entre aquelas
destacadas em O Cânone Ocidental do crítico literário
norte-americano Harold Bloom (1930-) com as questões do ciúme e da
'salvação estética', ressaltando a relação Autor e o Narrador.
Quem vivenciou e quem descreveu / rememorou o vivenciado. Para Bloom,
Proust salvou-se da obsessão amorosa, do ciúme doentio, através de
um trabalho, um verdadeiro esforço estético, num amadurecimento que
é salvação, saindo de um Proust obsessivo para um Proust artista.
“A principal preocupação de Proust
não é história social, nem liberação sexual, nem o caso Dreyfus
(embora ele fosse, consistentemente, um ativo defensor de Dreyfus). A
salvação estética é a missão desse enorme romance;” (Bloom,
1995, p. 388)
“o Narrador amadurece de Marcel para
o romancista proust, que no volume final do livro reforma sua
consciência e pode moldar sua vida numa nova forma de sabedoria.”
(p. 388)
“É o romance de Proust, e ele não
é exatamente nem o Narrador nem Marcel.” (p. 392)
O que 'salva' Proust? O trabalho
'terapêutico', o estético da Escrita, do observar-se e
descrever-se, como percebemos nas obras de Virginia Woolf, Clarice
Lispector e Marguerite Duras. Também assim a Escrita-memória de
Pedro Nava, Maria Gabriela Llansol e João Gilberto Noll. Destaca-se
o observar-se: quando o Eu-velho descreve o Eu-jovem, suas
vicissitudes, e aprendizados, mesmo a dizer-se em terceira pessoa.
“Quando a sabedoria fala com mais
força, no volume de encerramento do romance, o Narrador quase
imperceptivelmente funde-se com o romancista Proust, e o mordente
humor do ciúme é posto de lado.” (pp. 392-93)
“Eis a essência [a perda de
Albertine] do motivo pelo qual o Narrador, que foi Marcel, poder
agora tornar-se o romancista Proust, e não simplesmente mais um
Swann, reduzido a examinar sua coleção de lembranças ciumentas.”
(p. 394) [acréscimo nosso]
No mais, percebe-se uma influência
sobre a Beat Generation, com a escrita introspectiva, a
sondagem psicológica, que animou Jack Kerouac e seu amigo Cassidy em
suas viagens pelas vastidões da América do Norte, no final dos anos
de 1940. Ambos levavam um exemplar da obra de Proust, como a de um
guru literário, com suas frases longas e profundas sobre a vida e a
memória, o tempo e o amor. (Consta que também o escritor francês
Jean Genet [1910-1986], um ex-presidiário, autor de Diário de um
Ladrão, havia lido na prisão um exemplar de Proust, descobrindo
assim sua sensibilidade para a Escrita. Assim podemos ver como um
autor considerado clássico ajudou para que os 'subversivos' pudessem
iniciar suas obras...)
A
Obra
Nossa ênfase aqui são os volumes
iniciais e final da longa epopeia íntima, onde encontrando as
personagens em decadência lembramos dos primeiros contatos com cada
uma. Como Marcel descobriu o passado de Charles Swann? Como conheceu
Gilberte? Por que dividiu sua vida entre dois caminhos: o de Swann e
o de Guermantes? Por que hesitava tanto em começar sua vida de
escritas? Por que duvidava do próprio talento e vivia admirando
terceiros e terceiras? Por que tão sensível com a opinião alheia?
“Mas nem mesmo com referência às
mais insignificantes coisas da vida somos nós um todo materialmente
constituído, idêntico para toda a gente e de que cada qual não tem
mais do que tomar conhecimento, como se se tratasse de um livro de
contas ou de um testamento; nossa personalidade social é uma criação
do pensamento alheio.” (NCS, p. 24)
Suas digressões são como uma
necessidade de se justificar – para si mesmo e para outros – como
os estados de espírito se alternavam, se contradiziam,
impossibilitando sua totalidade psíquica. Tal como o poeta lusitano
Fernando Pessoa (1888-1935), Proust precisou se fragmentar, para se
encontrar. Ele se espelhava em outros, sofrimentos alheios, de
pessoas reais e personagens de romances, para entender-se. No
primeiro volume ele se detém na vicissitudes amorosas do ciumento
Charles Swann.
Entre o sono e a vigília, Marcel
discorre em páginas longas sobre a percepção da sensibilidade e da
perda, sua falta do beijo da mãe, quando esta recebe a visita de um
certo Sr. Swann, amigo da família; quando ele quando aborda a figura
social do Sr. Swann – quem era Charles Swann? Temos as primeiras
impressões de Marcel sobre o homem que frequentava a sociedade, as
óperas, os saraus. Primeiro seria um rival, depois um modelo. Um
homem em ascensão, um ser obsessivo, um homem corroído pelo ciúme.
Swann é importante enquanto figura de um passado que somente depois
ele pôde compreender.
Em sua Escrita é preciso
reconstituir um passado enquanto tema e conteúdo, mas como fazer tal
resgate? É o passado rememorado tal como foi? Ou nossas apreensões
de hoje modificam nossa percepção do ontem? A memória não emerge
quando desejamos, mas por mecanismos que lembram os sonhos – em
deslocamentos e associações, de modo involuntário. Daí falar de
uma 'memória involuntária'.
“[...] o nosso passado. Trabalho
perdido procurar evocá-lo, todos os esforços de nossa inteligência
permanecem inúteis. Está ele oculto, fora de seu domínio e de seu
alcance, em algum objeto material (na sensação que nos daria esse
objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso
depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos
nunca.” (NCS, p. 48)
Um belo dia, sem o desejar, Marcel
tem um encontro com seu passado, oculto nele mesmo. Suas lembranças
emergem quando ele se delicia com um biscoito (madeleine)
mergulhada num chá de tília. O sabor, e o prazer que este desperta,
vem trazer lembrança de momentos semelhantes, em sua juventude. O
ontem não se materializa, não pode fazê-lo, mas o corpo é tomado
pelo passado, o eu-de-ontem possui o eu-de-hoje, que se esforça para
descrever tal 'incorporação'. Não é o sujeito que tem memória,
mas a memória que preenche o narrador. Trata-se de uma 'possessão'.
Como compreendê-la? Como fazer com que se repita?
“Deponho a taça e volto-me para meu
espírito. É ele que compete achar a verdade. Mas como? Grave
incerteza, todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado
por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país
obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá.
Explorar? Não apenas explorar: criar. Está diante de qualquer coisa
que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer
entrar em sua luz.” (p. 49)
“Mas quando mais nada subsiste de um
passado remoto, após a morte das criaturas e a destruição das
coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais,
mais persistentes, mais fiéis, o dor e o sabor permanecem ainda por
muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as
ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula
impalpável, o edifício imenso da recordação.” (p. 51)
São todas citações de No
Caminho de Swann [Du
cotê de chez Swann] na tradução do poeta Mário Quintana, onde
Proust inicia sua Busca pelo que seria seu passado, também de seus
pais, de seus amores. E na Arte ele encontraria uma forma de entender
o que é o Tempo, no qual vivemos, como vivemos, como outras pessoas
viveram, e qual o sentido de viver uma vida finita, que se extingue
quando menos esperamos.
Em suas divagações sobre a arte do
romance, nos quais se espelha nas personagens, Marcel reconhece os
talentos capazes de apresentarem e conservarem os tempos idos, não
como foram, mas como foram sentidos, nas obras escritas,
“Mas todos os sentimentos que nos
fazem experimentar a alegria ou o infortúnio de uma personagem real
só se produzem em nós por intermédio de uma imagem dessa alegria
ou desse infortúnio; todo o engenho do primeiro romancista consistiu
em compreender que, sendo a imagem o único elemento essencial na
estrutura de nossas emoções, a simplificação que consistisse em
suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um
aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por mais profundamente que
simpatizemos com ele, percebemo-lo em grande parte por meio de nossos
sentidos, isto é, continua opaco para nós, oferece um peso morto
que nossa sensibilidade não pode levantar.” (pp. 86-87)
“O achado do romancista consistiu na
ideia de substituir essas partes impenetráveis à alma por uma
quantidade igual de partes imateriais, isto é, que nossa alma pode
assimilar.” (p. 87)
“E uma vez que o romancista nos pôs
nesse estado, no qual, como em todos os estados puramente interiores,
cada emoção é duplicada, e em que seu livro vai nos agitar como um
sonho, mas um sonho mais claro do que aqueles que sonhamos a dormir e
cuja lembrança vai durar mais tempo, (...)” (p. 87)
Marcel se deixa idealizar a filha do
Sr. Swann, a moça Gilberte, ao descobrir que ela tem um importante
amigo: o escritor Bergotte, muito admirado, quase um ídolo
literário, e que certamente foi inspirado pela importância de
Anatole France (que atuou na defesa do oficial judeu acusado no caso
Dreyfus). Bergotte em breve também será amigo do narrador, como
veremos. Basta que constatemos as apreensões e idealizações que
Marcel tem da vida de escritor, de contato com a literatura,
endeusada a ponto deixá-lo com algum 'complexo' por décadas.
Em Combray, em suas paisagens tão
sentimentalmente descritas por Marcel, assim como demonstrará a
'geografia sentimental' de Pedro Nava, em suas memórias, existem
distintamente, por critérios geográficos e de posição social,
dois caminhos: um que segue rumo a Méséglise-la-Vineuse, que será
chamado de caminho de Swann, e aquele do lado de Guermantes, seguindo
o rio Vivonne, onde é margeado por fidalgais castelos. O primeiro
caminho pode ser aquele dos arrivistas, enquanto o segundo é o dos
aristocratas, ainda que decadentes.
No caminho de Méséglise, ou de
Swann, está a casa do Sr. Vinteuil, músico conhecido nos saraus.
Uma melodia em especial, composta por este músico, será fundamental
para a compreensão de futuras cenas e situações do romance. O
encanto de Charles Swann por uma sonata será uma das inspirações
para seu ciumento afeto por Odette, a Sra. Swann. Numa segunda fase,
será o próprio Marcel a se emocionar pela sonata de Vinteuil.
No caminho de Guermantes, as
paisagens onde as florações desabrocham junto com a juventude, onde
o perfume de pilriteiros marcará toda a vida de Marcel, a idealizar
a nobreza dos castelos. Entre os dois caminhos, ele só compreenderá
suas hesitações tempo depois, quando os casamentos entre burgueses
ascendentes e nobres decadentes se fazerem possíveis, em plena III
República.
“[...] aquele perfume de pilriteiro
que vagueia ao longo da sebe onde em breve o substituirão as
roseiras bravas, um rumor de passos sem eco na areia de uma alameda,
uma bolha formada contra uma planta aquática pela água do rio e que
logo rebenta, minha imaginação os carregou e os fez atravessar
tantos anos sucessivos, ao passo que em torno desapareceram os
caminhos e estão mortos aqueles que os pisaram, e a lembrança
daqueles que os pisaram.” (pp. 180/181)
Idealizações de círculos sociais,
ou de artistas, ou de aristocratas. Eis a primeira juventude de
Marcel. Mas ele não é o único que idealiza. Imaginemos o amor por
uma melodia! Pois Charles Swann se apaixona por Odette de Crécy ao
se emocionar com a sonata para piano e violino de Vinteuil,
que é tocada nos saraus dos Verdurin, casal de arrivistas sociais
que tentam se aproximar dos círculos da aristocracia – tanto
financeira quanto cultural. Nos saraus, Swann se aproxima de Odette,
a quem ele passa a idealizar. De modo semelhante, futuramente, Marcel
é quem idealiza a filha do casal, a Gilberte, a amiga do escritor
Bergotte.
Em dada cena, Swann percebe a sua
afeição por Odette quando nota a ausência dela no sarau. De
início, ele simulava uma espécie de indiferença por ela, mas no
momento da ausência, aflora a paixão, e ele se mostra ciumento. Ele
que diz detestar ciumentos! Assim ele evita demonstrar o ciúme – o
que a valoriza. Mas quem é Odette? Ele realmente a conhece? Afinal,
somente se encontram nos saraus e passam algumas noites juntos...
As desconfianças de Swann levam a um
verdadeiro tratado poético sobre o ciúme, que passa a corroer as
vidas emotiva e social do personagem, um protótipo do ciumento que
um dia será o próprio Marcel, louco pelas jovens moças em flor. Ao
desconfiar de Odette, Swann passa a desprezar o arrivismo dos
Verdurin, seu círculo de frequentadores, dado como “o mais baixo
da escala social”. Quando ele mais procura agradar, mais se trai. O
que é Odette para ele? Odette para Swann é uma “criatura ausente,
desejada, imaginária”, objeto de um sentimento inspirado numa
melodia de violino.
No sarau da Sra. De Saint-Euverte,
num ambiente de aristocracia, meio às melodias, Swann sofre ao
lembrar-se do tempo da paixão por Odette, e seus excessos de
ciumento, que procura e encontra sempre detalhes dos quais
desconfiar. “Pois o que nós julgamos seja o nosso amor, o nosso
ciúme, não é uma mesma paixão contínua, indivisível. Compõem-se
eles de uma infinidade de amores sucessivos, de ciúmes diferentes,
mas, por sua multidão ininterrupta, dão a impressão de
continuidade, a ilusão da unidade.” (p. 356)
Eis a ilusão do amor, ou da paixão,
o que julgamos ser a 'unidade' de um sentimento tão contraditório,
tão autodestrutivo, por insaciável. A persona se contesta, se
sonda, se divide, diante da perda do Outro, que não é realmente
reconhecível. Se nem a si mesmo ele conhece! Swann, em sua dor
obsessiva, a observar-se como se fosse um outro, irreconhecível,
“Assim falava Swann a si mesmo, pois o jovem que a princípio
não pudera identificar era também ele: como certos romancistas,
Swann havia dividido a sua personalidade entre duas personagens; a
que estava sonhando e a que ele via diante de si.” (p. 363)
Quando a paixão, ou a obsessão,
acaba, o que resta? A desilusão, aquela de ter corrido para o
caminho errado, afinal, ele desabafa, Odette nem era o que ele
desejava, mas uma idealização. “Ela não é o meu tipo!”,
percebe afinal.
Estas vicissitudes da afeição,
captada por uma memória fugidia, além da nossa vontade, que fazem
emergir as inquietações, e as indagações, do Narrador, perdido
agora tal como estava outrora perdido o seu protótipo Swann. Em suas
caminhadas, seja pelos campos, ou no Bois de Bologne, em nomes que
evocam imagens, em paisagens, mutáveis com as estações, que
despertam considerações sobre a memória, suas limitações, suas
configurações, que se esfumaçam para nós, surgindo apenas de modo
involuntário,
“Devido à solidariedade que guardam
entre si as diferentes partes de uma recordação e que a nossa
memória mantém em equilíbrio num conjunto a que não é permitido
tirar nem recusar coisa alguma, eu desejaria ir terminar o dia...
diante de uma taça de chá, num apartamento de paredes de cor
sombria, … onde brilharia o fogo dourado, a rubra combustão, a
flama rósea e branca dos crisântemos no crepúsculo...” (p. 408)
“A realidade que eu conhecera não
mais existia. […] Os lugares que conhecemos não pertencem tampouco
ao mundo do espaço, onde os situamos para maior facilidade. Não
eram mais que uma delgada fatia no meio de impressões contíguas que
formavam a nossa vida de então; a recordação de certa imagem não
é senão saudade de certo instante; e as casas, os caminhos, as
avenidas são fugitivos, infelizmente, com os anos.” (p. 409)
No volume seguinte, À Sombra das
Raparigas em flor [À l'ombre des jeunes filles em fleur],
ainda na tradução de Mário Quintana, temos o prosseguimento do
amor de Swann, com a diferença que o narrador está mais concentrado
na figura da Sra. Swann, a ex-cocote Odette de Crécy, dama da
sociedade e mãe de Gilberte, a paixão juvenil de Marcel, que se
entrega a longas digressões sobre o amar e ser amado,
“Indubitavelmente, raríssimas pessoas compreendem o caráter puramente subjetivo desse fenômeno em que consiste o amor e como é o amor uma espécie de criação de um indivíduo suplementar, distinto daquele que usa no mundo o mesmo nome, e que formamos com elementos na maioria tirados de nós mesmos.” (SRF, p. 41)
Charles Swann, o ciumento, se casara
com Odette. Assim como Swann idealizara Odette, Marcel idealiza a
jovem Gilberte, filha do casal. E depois idealizará obsessivamente
as jovens em flor nas praias de Balbec.
No segundo volume aprofunda-se este
romance de sensibilidades, de sinestesias, onde perfumes, gostos se
mesclam, trazendo lembranças que possuem o narrador, em espasmos
involuntários de uma memória transbordante,
“Eu desejaria, como outrora em meus
passeios para o lado de Guermantes, ver se penetrava o encantamento
daquela impressão que me dominara e permanecer imóvel a interrogar
aquela emanação avelhentada que me oferecia, não o gozo do prazer
que só me dava por acréscimo, mas a descida até o fundo da
realidade que ela não me revelara.” (p. 62)
“Ao voltar para casa percebi,
recordei subitamente a imagem, até então oculta, de que me havia
aproximado, sem me deixar vê-la nem reconhecê-la, o frescor, quase
cheirando a fuligem, do pavilhão gradeado. Aquela imagem era a da
pequena peça de meu tio Adolphe, em Combray, a qual exalava, com
efeito, o mesmo perfume de umidade. Mas não pude compreender e
deixei para mais tarde o trabalho de pesquisar por que a lembrança
de uma imagem tão insignificante me dera tamanha felicidade.” (p.
64)
Chega uma carta de Gilberte –
Marcel quase não pode acreditar, pois seus sonhos se realizam. Assim
ele adentra o círculo dos Swann – jantares, saraus, encontros,
onde tem contato com a sonata de Vinteuil – a beleza da sonata para
Swann é adornada pela memória, a qual Marcel ainda não tem, ao
estar nos primeiros contatos com a obra musical.
O convívio se inicia numa época
turbulenta, marcada pelo Caso Dreyfus. Um despontar do
antissemitismo na França, e na Europa, em geral. Lembrar que Charles
Swann é de descendência judaica. Esta questão aparecerá mais
adiante, nos demais volumes, mas podemos adiantar aqui.
O caso Dreyfus [Affaire Dreyfus]
foi um momento de escandaloso antissemitismo no seio da sociedade
francesa, quando um oficial militar de origem judaica, Alfred Dreyfus
(1859-1935) foi acusado e condenado por um crime de 'traição à
pátria' que não cometeu. Foi humilhado e exilado, em 1894, para a
Ilha do Diabo, na Guiana Francesa, somente sendo reabilitado depois
da revisão do processo em 1906, quando foi descoberto o verdadeiro
traidor da pátria, um major de origem húngara.
Não passou de uma farsa e um
processo fraudulento, a dividir as opiniões da sociedade francesa,
no momento da III República Francesa, contra a qual conspiravam os
monarquistas, apoiados pela hierarquia católica. A origem judaica de
Dreyfus foi explorada para disseminar desconfiança contra os judeus
nos cargos públicos e no comércio. Os intelectuais de esquerda, e
de centro, apoiadores da República e antipáticos ao chauvinismo,
ficaram ao lado de Dreyfus, como são os casos de Anatole France,
enquanto advogado de defesa, e do naturalista Émile Zola (1840-1902)
, autor do libelo de defesa J'accuse [Eu acuso] contra a
fraude antissemita.
Mas as digressões de Marcel
continuam sobre a memória, a percepção estética, a idealização
do amor, os contrastes entre obra e autor, quando conhece o seu ídolo
literário, o escritor Bergotte, inspirado em Anatole France. O
narrador passa a comparar o escritor com a obra, já admirada. Pois a
partir da obra ele imaginava um autor, e depois só se decepcionou.
“Sua obra [de Bergotte] já não me
parecia tão inevitável. Perguntei-me então se a originalidade
prova realmente que os grandes escritores sejam deuses, cada um
senhor de um reino independente e exclusivamente seu, ou se não
haverá nisto algo de fingimento e as diferenças entre as obras não
serão antes uma resultante do trabalho que expressão de uma
diferença radical de essência entre as diversas personalidades.”
(p. 122)
Por exemplo, o modo de falar
diferente da escrita, pois o que pode ser grandioso na texto pode
tornar-se menor numa conversa, uma vez que perdem-se o estilo e a
clareza. Surgem, então, os lugares-comuns, as repetições, as
digressões. Então onde está a figura do Gênio? Será uma criação
da mídia? Da crítica? Das academias? O gênio é mais que um
talento, ou fruto de intelecto, mas uma capacidade de transformar,
comunicar, expressar o que é até óbvio, mas ainda não
compreendido, ou investigado. Gênios não são os mais cultos ou
refinados, mas aqueles e aquelas que se tornam espelhos de uma
sociedade numa época, “pois o gênio consiste no poder refletor
e não na qualidade do espetáculo refletido.” (p. 117)
Diferenças entre autor e obra podem
ser de aspecto moral. A obra reflete o que o autor realmente é e
pensa? Escritor moralista não é necessariamente um homem moral,
antes, ao contrário, pode ser vicioso. O que é soa contraditório,
mas funciona. “Só nas vidas realmente viciosas é que o
problema moral se pode apresentar em toda a sua força de ansiedade.
E a esse problema dá o artista uma solução, não no plano da sua
vida individual, mas de que é para ele a sua verdadeira vida, uma
solução geral, libertária.” (p. 120) e, também, “o
gênio, por ter a maior experiência do espírito, melhor pode
compreender as ideias mais opostas às que constituem o fundo de suas
próprias obras.” (p. 129)
Marcel e a vontade de escrever
(“trabalhar de modo definitivo”), mas ele sempre adia –
em sua juventude de repouso e banalidade – uma vez que faltam
dedicação, esforço, seriedade e conteúdo. Somente vinte anos
depois ele terá o conteúdo: sua própria vida, suas memórias, suas
opiniões digressivas sobre a sociedade de sua época.
Então a amizade enamorada com a
idealizada Gilberte, então surgem as diferenças entre imagem e
convivência, entre o que pensamos sobre o Outro e o que este/esta se
revela. Assim a Gilberte que Marcel queria conhecer e a Gilberte que
Marcel realmente conhecerá. Depois a Gilberte que será a esposa de
Saint-Loup, rememorado nas páginas sobre a Grande Guerra.
O jovem descobre que amor é um
sofrimento, nunca um sossego, que poderá esgotar sua sensibilidade,
aprofundar sua melancolia, sua mania de julgar (e de temer ser
julgado...), a ponto de tecer digressões sobre as dores de uma
separação. O primeiro amor que trouxe uma carga de dedicação e
que findou em indiferença. Nossos sentimentos mudam, as afeições
alheias também. Os amores fenecem com o tempo … Como ser feliz?
Como se realizar num tempo sempre a escoar? Assim seus desassossegos,
entre agradar o ser amado, e ver-se humilhado, ou ser digno, sincero,
e ver-se abandonado.
Nas exposições, nos saraus, nas
viagens, quando nas descobertas das novas tecnologias de fim de
século – eletricidade e telefone ! - de nada valerá o luxo e a
elegância no qual ele adentra, seja na família de Swann, seja nos
salões aristocráticos, junto aos Guermantes, entre os arrivistas e
os decadentes, ele sempre terá uma desconfiança, que permite sua
observação aguçada sobre os convivas – máscaras sociais das
quais somente depois ele descobrirá as reais personalidades. Mas o
tempo não para, e ele logo estará à sombra das moças em flor.
Tempos depois, em uma temporada de
viagem, em mudança de hábitos, Marcel está em Balbec, cidade
turística, nas praias cheias de sol e juventude, onde ele encontra o
cenário para mais amores juvenis. Camponesas, ciclistas, banhistas
que ele vê de passagem, as 'flores do dia claro', que ele deseja. As
moças esportistas passeiam pela areia, trocam risadas, exibem
vitalidade para o seu coração demasiadamente juvenil, encantado
pela beleza fugaz, inalcançável. “As frechas da beleza, essa
beleza que seria de perguntar se neste mundo consiste em algo mais
que na parte de complemento que a nossa imaginação, superexcitada
pela angústia, acrescenta a uma mulher que passa fragmentária e
fugitiva.” (p. 256)
Como temos Proust adulto, maduro, a
narrar na voz de um Marcel juvenil, não nos passam despercebidas as
ironias, fruto de amargura de sentir o 'tempo perdido', aquela
juventude que se foi, que só resta em lembranças soltas, que surgem
descompassadas. A narração do que viveu e como se lembra do que
viveu, o que sentia e o que sente então em relação ao que sentiu –
um eu-de-hoje sobre um eu-de-ontem, aqui personagem.
O narrador abre pausas na narrativa –
sobre as férias em Balbec – para tecer comentários sobre o
círculo de amigos na época em que escreve (início do século 20),
sobre as pessoas que pouco se importam com nossa sensibilidade. Que
diferença para as pessoas de personalidade forte que ele conhecera.
Mesmo que não gostasse, era inegável a marca de caráter que
possuíam. Por exemplo, o tio de Robert, Palamède, o Sr. De Charlus,
de ares blasé, insolente demais até para os aristocratas,
“lançou-me um derradeiro olhar, atrevido, prudente, rápido e
profundo, tudo ao mesmo tempo, […] e depois de olhar em derredor,
adotou uma atitude de homem distraído e altaneiro [...]” (SRF,
p. 209)
O Sr. De Charlus terá presença
marcante nos volumes próximos - O Caminho de Guermantes, Sodoma e
Gomorra e O tempo
redescoberto – enquanto Marcel vivencia as estórias da
aristocracia, antes somente descritas pela prosa animada de Robert de
Saint-Loup. É em Balbec que Marcel conhece os Guermantes – tão
idealizados ! - de Combray. Uma família nobre tradicional – não
do Império ! - que possui ascendência, arquivos, propriedades, de
ordem superior, tudo carregado de muita História, além de herança,
nobre esforço e talento. Eis a elegância do que sobrou do Antigo
Regime, na admiração pela 'nobreza de espírito' contra a arte
plebeia, representada pela burguesia, com a moda, os eventos, as
exposições, em suma, a modernidade.
Em um momento de ausência de Robert
– em Doncières para prestar serviço militar – Marcel tem a
visão das 'moças em flor' , as 'encantadoras', a seguirem para a
praia, “(Eu) estava num desses períodos da mocidade, vagos,
desprovidos de um amor particular, em que, por toda parte se deseja,
se procura, se vê a beleza.” (p. 321-322) As moças andam na
praia, correm de bicicleta, como que indiferentes a tudo o mais,
ignorando a multidão de banhistas e turistas. O que mais aguça o
desejo de Marcel – seu amor difuso pela Beleza, “uma beleza
fluida, coletiva e móvel”, pois são “aquelas amigas, todas tão
belas”, idealizações que remontam ao classicismo helênico, “E
acaso não eram nobres e calmos modelos de beleza humana que eu via
ali diante do mar, como estátuas expostas ao sol numa costa da
Grécia?” (p. 324)
A 'beleza fugaz' aguça a fantasia,
uma vontade de perseguição e de posse. Quem será a ciclista “de
olhos brilhantes”, a jovem que se destaca? Somente dias depois
Marcel a conhecerá, em circunstâncias imprevistas. “Nem entre
as atrizes, ou as camponesas, ou as moças do pensionato religioso,
eu vira nada de tão belo, impregnado de tal desconhecido, tão
inestimavelmente precioso, tão verossimilmente inacessível.”
(p. 330)
Marcel se deixa fantasiar sobre as
moças. Quem será a referida Srta. Simonet? Ele logo saberá – ele
que avança e recua na narração, a fazer perguntas para as quais já
sabe a resposta. Naquela época – 1893-94 – Proust ainda não
podia se dedicar à Escrita – outros prazeres, outros saraus,
outras belezas o aguardavam, ele confessa o “tédio que sentia
ao sentar-me ante uma mesa para começar um estudo crítico ou um
romance.” (pp. 339-340), então “Talvez algumas
obras-primas tenham sido compostas entre bocejos.” (idem)
Os passeios, a vida noturna em
Rivebelle até conseguem aliviar um pouco a obsessão de Marcel pelas
moças a desfilarem na praia. Novos ambientes, novas paisagens, que
futuramente será conteúdo de seus textos, onde o vivido fornece
cenários para a vida que é sentida como uma espécie de teatro, ou
sonho, como podemos ler em Shakespeare ou Calderón de la Barca.
“Depois, até a minha própria vida
estava inteiramente oculta por uma cenário novo, como o que se
coloca à beira do palco e diante do qual, enquanto atrás se mudam
os quadros, atores representam um entreato. Aquele em que eu
desempenhava então o meu papel era ao gosto dos contos orientais,
nele eu nada sabia de meu passado nem de mim mesmo, devido à aquela
extrema proximidade de um cenário interposto; não era mais que uma
personagem que sofria castigos por uma falta que não percebia,
[...]” (pp. 349-350)
Marcel desconhece as moças – onde
moram, o que fazem, seus hábitos – então cria tudo pela
imaginação: ele observa, tem hipóteses, faz previsões. A
incerteza de não poder vê-las mais vem criar uma angústia – um
medo de perda: logo uma afeição. É preciso a
impossibilidade, o inalcançável, o risco de não mais rever, a
não-posse do ser amado para aumentar o que chamamos de amor.
A nova rotina de Marcel era ir à
praia para vislumbrar as moças, conseguir encontrá-las, ao menos
uma vez, “Amando-as a todas, não amava a nenhuma, e contudo o
seu possível encontro era para os meus dias o único elemento
delicioso, a única coisa que fazia nascer em mim essas esperanças
que desafiam todos os obstáculos [...]”
(p. 360) e “Era a elas que meu pensamento agradavelmente
se prendia, quando supunha pensar em outra coisa ou em nada.”
(p. 360)
“A aurora de juventude que coloria
ainda a face daquelas meninas, e que a mim, na minha idade, não mais
alcançava, iluminava tudo diante delas e, da mesma forma que a
fluida pintura de alguns primitivos, destacava sobre um fundo de ouro
os mais insignificantes detalhes da sua vida.” (p. 421)
Onde poderia Marcel encontrá-las e
iniciar uma conversa socialmente aceitável? Acontece que em noitada
em Rivebelle, ele conhecera um artista, o pintor Elstir, que o
convidara a visitar o ateliê. Lá, Marcel se entrega a divagações
sobre a Arte, “Não há progresso nem descobertas na arte, cada
artista recomeça, por sua conta” (p. 364), a arte depois de
reconhecida, divulgada perde a originalidade – daí novo artista
rompe com o antigo e recomeça... Assim a alternância de realismo,
impressionismo, expressionismo...
De repente, uma das moças em flor
aparece no ateliê... fato inesperado ! E é a Srta. Albertine
Simonet, cuja origem social está na pequena burguesia, de
industriários, não a sociedade nobre que Marcel desejava. Contudo,
Albertine se impõe no romance como a nova obsessão: bem mais
forte que a aquela pela cantora Berma ou a jovem Gilberte Swann. Pois
Albertine será a prisioneira e a fugitiva, assim a figura central no
ciúme que corrói o narrador – tal qual Swann por Odette. A vida
e as vicissitudes da paixão de Marcel por Albertine estão mais
detalhadas em dois volumes: A Prisioneira e
A Fugitiva.
“Que conhecia eu de Albertine? Um ou
dois perfis destacados sobre o mar, por certo muito menos belos que
os das mulheres de Veronese, as quais deveriam ser preferidas no caso
em que eu obedecesse a razões puramente estéticas. E que outras
razões podia ter se, uma vez que minha angústia arrefecia, não me
encontrava com outra coisa a não ser esses mudos perfis, e não
possuía nada mais?” (p. 381)
“Essa Albertine quase se reduzia a
uma silhueta; tudo o que se lhe sobrepunha era da minha invenção,
pois em amor acontece que as contribuições originárias de nós
mesmos suplantam aquelas que nos vêm da criatura amada.” (p. 382)
Quando a vida torna-se novela,
matéria de romance, seguindo de vulgar à memorável, as alegrias
recordadas podem ser descritas, não mais sentidas, “O que
apanhamos na presença da criatura amada não passa de um negativo;
revelamo-lo mais tarde, uma vez em casa, quando encontramos a nossa
disposição essa câmara escura interior cuja entrada é proibida
enquanto há gente à vista.” (p. 393)
Enfim Marcel é apresentado à
Albertine – é quando os Outros nos percebem – ela que foi
idealizada, enquanto, para ela, ele é indiferente. Acontece que
Albertine para ele não será uma passante, 'beleza fugaz', mas
alguém a marcar a sua vida. E ela sempre parece diferente – ora
com Marcel, com o pintor, ora com as outras moças. Quem será sua
persona real? Não sera mera impressão? “De resto, eu
deveria tê-lo adivinhado, pois a moça da praia fora fabricada por
mim.” (p. 396) Assim, várias Albertines, entre imaginárias e
a real, a inacessível. Então, é de se pensar, de quem ele se
enamora? E por que não outra das amigas? Por que ela seria especial?
O que a diferencia? Qual a Albertine de suas lembranças? “Nossa
memória se assemelha a essas lojas que expõem na vitrina, de uma
mesma pessoa, uma vez uma fotografia, depois outra. E em geral a mais
recente continua exposta sozinha.” (p. 408) e acontece que
“recordar uma criatura é na realidade esquecê-la.' (p.
431) pois a memória flutua, cria e recria, “toda criatura se
destrói quando deixamos de vê-la; seu aparecimento seguinte é uma
criação nova, diversa da imediatamente anterior, senão de todas.”
(p. 432)
Certamente Albertine vem lembrar algo
de Gilberte, pois há uma semelhança entre os seres amados, “de
modo que um romancista poderia, no curso da vida de seu herói,
pintar quase exatamente iguais os seus sucessivos amores, e dar com
isso a impressão, não de imitar-se a si mesmo, mas de criar, pois
há menos força numa inovação artificial que numa repetição
destinada a sugerir uma verdade nova.” (p. 412)
Mas o desejo de Marcel se deixa vagar
por entre as moças, sem se fixar, flertando com Albertine, ou
Andrée, criando ciúmes, aguardando prazeres, sofrendo com as
expectativas não realizadas. Depois de conviver com as belas e
enigmáticas, descobrimos que nada há de belo ou misterioso, apenas
idealizações nossas. A estação de veraneio acabou, a bela época
se foi, as moças em flor seguem para desabrochar em outras paragens,
outras paisagens. “As moças em flor vão casar e não é com
você.”, como diz o poema do mineiro Carlos Drummond de
Andrade, de inspiração proustiana.
>> parte 2
[continua...]
mar/16
Leonardo de Magalhaens
Referências
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Walter. “A imagem de Proust”. Magia, técnica, arte e
política. In Obras Escolhidas, I. São Paulo:
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. O Caminho de Guermantes. Trad. Mário Quintana. 11ª ed.
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. Sodoma e Gomorra. Trad. Mário Quintana. 14ª ed. rev. São
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. A Prisioneira. Trad. Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de
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13ª
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. A Fugitiva. Trad. Carlos Drummond de Andrade. 12ª ed. São
Paulo: Globo, 1995. (Em Busca do Tempo Perdido, 6)
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. O Tempo Redescoberto. Trad. Lúcia Miguel Pereira. 13ª ed.
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SARTRE,
Jean-Paul. Diário de uma Guerra Estranha. (Les
Carnets de la Drôle de
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