Sobre
Em busca do Tempo Perdido ( À la recherche du temps perdu)
(1913-1927)
do
escritor francês Marcel Proust (1871-1922)
A
Escrita enquanto investigação e reconquista do passado
>> parte 2
O Tempo Redescoberto
Onde estão as lembranças do
narrador? De onde brota toda a narrativa caudalosa na qual navegamos?
De súbitos transbordares de uma memória involuntária que habita o
corpo, que ativa e possui o corpo, deixando o agora recheado de
ontem. Que lembranças ele resguarda? de tudo o que acontecera nos
volumes anteriores - as moças em flor, a amizade com Saint-Loup, a
Albertine que é conquistada e aprisionada, os casos nebulosos de
homoafetividade, a fuga da cativa - em Sodoma e Gomorra, A
prisioneira e A
Fugitiva.
"Minha memória perdera o amor de
Albertine, mas parece existir uma memória involuntária dos membros,
pálida e estéril imitação da outra, que lhe sobrevive, como
certos animais ou vegetais ininteligentes vivem mais do que o homem.
as pernas, os braços, estão cheios de lembranças embotadas."
(OTR, p. 12)
Em O Tempo Redescoberto temos
uma 'volta ao passado' quando Marcel adentra o salão dos Guermantes,
assunto de O Caminho de Guermantes, que deve ser relido
juntamente para melhor delinear as personagens - que são muitas e
com os títulos nobiliárquicos mais variados - , com destaque para o
Sr. de Charlus, o barão que aparecera em À Sombra das Raparigas
em flor. O nobre é uma voz dissonante e polêmica, causa
incômodo em todas as castas - tanto pelo que diz quanto pelo que faz
- e através dele pode-se extrair da 'vida mundana' quadros líricos,
assim como Charles Baudelaire foi o lírico dos quadros parisienses,
e justamente o que Proust pretendia, ao transformar as banalidades
das cenas sociais, nos salões aristocratas e burgueses, em páginas
da literatura.
"O Sr. de Charlus fora de algum
modo seu poeta, soubera extrair da ambiência mundana uma espécie de
poesia onde entravam a história, a beleza, o pitoresco, o cômico da
elegância frívola." (p. 66)
Figura ambígua e contraditória, o
barão de Charlus vive entre as dinastias de germânicos e franceses,
numa identidade um tanto dividida. Como pode ele ser patriota, se
admira os alemães?, "O Sr. de Charlus, dotado de raras
qualidades moais, acessível à piedade, generoso, capaz de afeição,
era em compensação, por motivos diversos - entre outros o de ser
filho de uma duquesa da Baviera - destituído de patriotismo.
Pertencia, por conseguinte, ao corpo-França tanto quanto ao
corpo-Alemanha." (p. 73)
Novamente franceses e alemães se
confrontariam numa guerra, agora de grandes proporções - daí
Grande Guerra, depois Primeira Guerra Mundial - uma
terrível calamidade que se prolongou demais e foi a ruínas das
dinastias e impérios europeus, com a derrocada das aristocracias,
que cederam lugar à repúblicas instáveis. Foi o fim do Império
Alemão (fragmentado entre conservadores e socialistas), do Império
Austro-Húngaro (responsável pelo ultimato que iniciou a guerra),
abalo do Reino da Itália (que se rendeu aos fascistas), fim do
Império Otomano (com a separação dos árabes), abalo do Império
Britânico (que durou apenas mais três décadas), fim do Império
Russo (que se afundou numa guerra civil entre monarquistas e
socialistas / comunistas). Os únicos vencedores foram os Estados
Unidos da América, que despontou como superpotência no século 20,
o século americano'.
Podemos
ver as marcas da guerra em várias obras da época, sejam de
vencedores ou vencidos, assim nos relatos de Nada de novo
no front ocidental [1929] , do
alemão E. M. Remarque (1898-1970) ou O Grande Meaulnes
[1913], do francês Alain Fournier (1886-1914), também em Adeus
às Armas [1929] do norte-americano Ernst Hemingway (1899-1961),
autor do clássico Por quem os Sinos dobram? (sobre a Guerra
Civil Espanhola, 1936-1939), para mencionar alguns.
A guerra: cada lado julga ser o certo,
o patriótico, o digno por excelência, e sacrificam as juventudes
num morticínio contínuo, durante anos. Quem seria culpado? o
militarismo francês, com seu revanchismo? o militarismo alemão, com
seu imperialismo tardio? "Para voltar à guerra em si, quem
a desencadeou foi mesmo o imperador Guilherme? tenho grandes
dúvidas." (p. 90), confessa o Sr. de Charlus, que não tem
a mente lavada pelo revanchismo. Outro francês, o filósofo e
romancista Jean-Paul Sartre aborda a pessoa e o cargo, a
personalidade e a figura histórica, do Imperador germânico
Guilherme II, e todo o processo histṕrico do 'homem-na-situação',
em seu diário [Drôle de Guerre], no caderno XIV, de março
de 1940, em plena II Guerra Mundial, onde ressalta que “A
dignidade de rei da Prússia dá a esse reinado um caráter militar.
O rei é rei-soldado.” (1983, p. 371) e lembra o caráter
'familiar e sagrado' das famílias nobres, tal como longamente
abordado nos volumes de Em Busca, “Há uma
geografia familiar e sagrada desde a origem, em Guilherme II, análoga
aos famosos No Caminho de Swann e O caminho de Guermantes de Proust.”
(1983, p. 379)
O ambiente aristocrático,
hierarquizado, onde o rei é o centro. A vida pessoal sufocada pelos
ritos da realeza, com as vantagens da influência e do poder. O
militarismo prussiano soma-se à insegurança do Imperador, com seu
complexo de inferioridade, devido a uma deformação física. Ainda
mais agravado pelo antiliberalismo e pela anglofobia. Acontece que
Guilherme era descendente de britânicos e de prussianos, estava
dividido em sua 'lealdade' tal qual o Sr. De Charlus, entre a glória
alemã e o sacrifício francês.
Neto da rainha Vitória da
Grã-Bretanha, primo do rei George V, parente dos czares russos,
Guilherme se indispôs com todos, gerando um conflito europeu, depois
mundial. Começou por dispensar o primeiro-ministro Otto von
Bismarck, responsável pela unificação do Império Germânico, em
1870 / 71, depois mostrou seu antissemitismo, seu despotismo,
aumentando a rivalidade franco-germânica, a gerar a crise marroquina
em 1905, e apoiar os austríacos contra os sérvios em 1914, a
ambicionar uma expansão para leste, tudo a explodir numa Grande
Guerra. Com a derrota alemã, com a guerra civil entre
social-democratas, conservadores e comunistas, o imperador foi
exilado. Guilherme morreu na Holanda, em 1941, ciente dos delírios
nazistas, aos quais desprezava, aliás, o ex-imperador dizia ter
vergonha de ser alemão, ao ver a regressão de seu país nas mãos
dos líderes nazistas sem escrúpulos.
Voltando a Grande Guerra, a França
acusa a Prússia de militarismo, mas se esquece do revanchismo,
depois a derrota de 1870. O que desejam os franceses? Nada menos que
a fragmentação da Alemanha... "A França não mostraria
tanto empenho em prolongar a guerra se se houvesse mantido fraca, nem
a Alemanha em terminá-la se ainda dispusesse da mesma força."
(OTR, p. 91), o Sr. de charlus faz um diagnóstico do conflito. Uma
hecatombe humana e ambiental que afetou os Guermantes, quando
acontece a destruição de Méséglise durante uma série de
batalhas, como Marcel então lamenta.
A guerra continuava, ano após ano, e
os vícios e as futilidades também, com os salões cheios,
indiferentes às ameaças do avanço alemão, "Assim
procediam os Verdurin dando seus jantares e o Sr. de Charlus correndo
a seus prazeres, deslembrados de que os alemães estavam -
imobilizados, é verdade, por uma barreira sangrenta, sempre renovada
- a uma hora de automóvel de Paris." (OTR, p. 71), num
conflito de impasses e trincheiras, quando ocorriam "milhões
de perdas diárias, que o governo procurava ocultar." (p.
131). Continuava Charlus: "As festas enchem o que talvez
seja, se os alemães continuarem a avançar, os últimos dias de
nossa Pompeia." (p. 97) Enquanto os jovens morrem nas
batalhas, os arrivistas e os decadentes continuam nas farras,
enquanto toda uma época chega ao fim - 'depois de nós, o dilúvio'.
"Eu dizia a mim mesmo: Pena que o
Sr. de Charlus não ser romancista ou poeta, não para descrever suas
experiências, mas porque a posição assumida por um Charlus
relativamente ao desejo suscita-lhe em torno os escândalos, força-o
a levar a vida a sério, a misturar emoção ao prazer, impede-o de
parar, de imobilizar-se na apreciação irônica e exterior das
coisas, faz-lhe jorrar incessantemente no seio uma corrente dolorosa.
Cada declaração sua implica a possibilidade de ser agredido, senão
preso." (OTR, pp. 116-117)
Ser uma testemunha de sua época é
justamente o que Proust faz ao observar, descrever, com ironia ou
amargura, as suas vivências, suas impressões quanto aos outros. E
naquela época, sua sensibilidade era posta à prova, quando
acompanhava as vicissitudes do conflito, que vem ceifar a vida de seu
amigo Robert de Saint-Loup, o nobre oficial, o marido de Gilberte. o
que é a morte de um diante de milhões? Vejamos as matanças nas
Batalhas do Somme, de Verdun, de Marne, de Ypres, de Arras, de
Tannenberg, de Capuletto, onde as mortes de milhares de Saint-Loups
encerraram uma época.
Ao fim de uma época, Proust, após
um tempo numa casa de saúde, lembra e medita, ainda a hesitar quanto
aos seus 'dons literários'. longa ausência de Paris, e do círculo
de amigos, ele retorna para constatar as mudanças, a corrosão do
tempo. Reencontra as personagens de No Caminho de Swann e
do À Sombra das Raparigas em flor, todas com os mesmos
nomes, mas agora retratos da decadência. Para Marcel resta observar,
comentar e interligar os fios da memória. Quem é a viúva de
Saint-Loup? Quem agora frequenta o salão dos Verdurin? Assim, no
final, ele volta ao início. É o fenômeno do Proust-escritor a
olhar o Marcel-artista. "E, como o aviador até então
penosamente preso á terra decola de pronto, eu subia aos poucos para
as alturas silenciosas da memória." (OTR, p. 142)
As personagens dos seis volumes
anteriores se reencontram sob o olhar de Marcel, entre irônico e
amargurado, os aristocratas frequentam salões da burguesia, que
casara filhas com filhos de barões e marqueses arruinados. Charlus,
em estado decrépito, relembra os mortos, do passado de esnobe,
"continuando a falar do passado, sem dúvida para melhor
mostrar-se que não perdera a memória, evocava-o de modo fúnebre,
porém sem tristeza." (p. 145) Charlus, vítima de
depressão, deixa-se confessar opiniões que escandalizam família e
classe.
Marcel confessa seu estado de
espírito, "ruminando as tristes reflexões a que acabo de
aludir, entrara eu no pátio da residência dos Guermantes"
(p. 148) Ele resolve guiar-se pela memória e entregar-se à Escrita.
"Desta vez eu estava bem resolvido a não mais me resignar,
como no dia em que saboreava a madeleine molhada no chá a ignorar
por que, sem haver eu feito nenhum novo raciocínio nem achado nenhum
argumento decisivo, perderam toda importância as dificuldades,
insolúveis minutos antes." (p. 149) Ele enumera as chaves
de suas recordações: os arredores de Balbec, os sinos de
Martinville, a madeleine no chá de tília, as sonatas de Vinteuil.
O conteúdo de sua obra, fruto de seu
talento, será a própria vida. uma obra de arte tecida de
recordações - o hoje deslizando sobre o ontem, o agora colhendo
impressões que evocam o passado - duas dimensões se dando
simultaneamente. "O sabor da madeleine fazendo o passado
permear o presente a ponto de me tornar hesitante, sem saber em qual
dos dois me encontrava; [...] repartido entre o dia antigo e o
atual." (p. 152) assim extratemporal, fora do tempo, a
escapar do presente, ser possuído pelo passado. Uma fusão da
'observação do presente' com a investigação do 'passado ressecado
pela inteligência', quando ele, assim decepcionado com o presente,
procura a beleza pela idealização (imaginação), "Um mundo
livre da ordem do tempo recriou em nós, para o pdermos sentir, o
homem livre da ordem do tempo." (p. 154)
"Certamente podem-se prolongar os
espetáculos da memória voluntária, não demandando esforço maior
do que o de folhear um livro de figuras.' (p. 154)
"Com prazer egoísta de
colecionador, dissera a mim mesmo, ao catalogar as estampas de minha
memória: 'Afinal, vi muita coisa bela em minha vida'. A memória me
afirmara sem dúvida então as diferenças de sensações, mas nada
fazia além de combinar entre si elementos homogêneos." (p.
154)
Envolto em suas memórias, Marcel
precisa saber lidar com as impressões, que podem se desencadear, que
desejam vencer o presente, repondo o passado (a "ressonância da
sensação passada"), "E se o lugar presente não fosse
logo vitorioso, creio que desfaleceria; pois essas ressurreições do
pretérito, durante sua fugaz duração, são tão totais que não se
limitam a impedir nossos olhos de ver o quarto onde se acham para
contemplar uma estrada ladeada de árvores ou a maré subindo."
(OTR, p. 155)
Onde está o 'tempo perdido'? No
íntimo? Lá fora? No mesmo lugar onde moramos ou para onde viajamos?
"O único modo de apreciá-las [as impressões] melhor seria
tentar conhecê-las mais completamente lá onde se achavam, isto é,
em mim mesmo, torná-las claras até em suas profundezas." (p.
157)(acréscimo nosso) As impressões estão além da superfície,
como ressurgimentos do recalcado (para pensarmos em termos
freudianos) baseadas numa impressão física - paisagem ou perfume -
que, tal um símbolo, recebe uma interpretação (que pode ser
psicanalítica...), "era mister tentar interpretar as
sensações como signos de outras tantas leis e ideias, procurando
pensar, isto é, fazer sair da penumbra o que sentia, convertê-lo em
seu equivalente espiritual." (p. 158), pois seriam "verdades
escritas por figuras cujo sentido eu buscava em minha cabeça"
(idem), e "verdade
do passado que ressuscitava, das imagens que desencadeava, pois
percebemos seu esforço para aflorar à luz, sentimos a alegria do
real recapturado." (p. 158)
"Do livro subjetivo composto por
esses sinais desconhecidos, ninguém me poderia, com regra alguma,
facilitar a leitura, consistindo esta num ato criador que não admite
suplentes nem colaboradores. muitos, por isso, deixam de escrevê-lo,
substituem-nos por tarefas várias." (OTR, p. 159)
De modo que Marcel elabora muito a
questão da 'impressão', que seria um momento privilegiado de
revelação, que o artista deve reter e recriar em sua obra-prima.
Seria algo como a epifania, ou insight, que veremos nas
escritas de James Joyce, Virginia Woolf, Marguerite Duras, Clarice
Lispector, Lúcio Cardoso, João Gilberto Noll, dentre outros. "A
impressão é para o escritor o mesmo que a experimentação para o
sábio, com a diferença de ser neste anterior e naquele posterior o
trabalho da inteligência." (p. 159) Seria tal fenômeno
derivado de uma 'manifestação' do inconsciente? "Só vem de
nós o que tiramos da obscuridade reinante em nosso íntimo, o que os
outros não conhecem." (p.159) Pois a obra seria
inconsciente e involuntária, ao realizar-se o escrever é que se dá
a Escrita, em momento posterior o autor poderá se reencontrar ao se
ler.
"Chegara eu assim à conclusão
de que não somos de modo algum livres diante da obra de arte, que
não a fazemos como queremos, mas que, sendo preexistente,
compete-nos, porque é necessária e oculta e porque o faríamos se
se tratasse de uma lei da natureza, descobrí-la." (OTR, p. 160)
Daí a valorização do subjetivo, eis
um psicologismo, em reação ao realismo / naturalismo, cuja
literatura é vista como falsa e inautêntica. Estavámos em uma
época de valorização do irracionalismo, como se percebe na
fenomenologia, no surrealismo, no existencialismo, que partem das
percepções do sujeito, cujas impressões nunca são mensuráveis ou
previsíveis. Proust suspeita das obras intelectuais, que se guiam
por teorias, esquemas, lógica, de escolas literárias. A literatura
falsa seria um mero jogo, um desfile de imagens. muita descrição,
pouca verdade existencial.
É através das percepções - em
fulminantes impressões - que o sujeito tem contato com seus Eus - o
eu-de-ontem se corporifica, a ressurgir no eu-de-agora, "Era
uma remota impressão, onde se misturavam suaves reminiscências de
infância e de família, e que eu não reconhecera de pronto.
Indagara com raiva que estranho me vinha perturbar, e o estranho era
eu mesmo, a criança que fora, logo suscitada pelo livro que só dela
tomava em mim conhecimento, só a ela invocava, não querendo ser
visto senão por seus olhos, amado senão por seu coração, ouvido
senão por seus ouvidos. por seu lado, este livro [Francis
le champi, 1848, de George Sand,
pseudônimo da baronesa francesa Amandine Dupin, 1804 -1876],
cuja leitura minha mãe me fizera em Combray até alta madrugada,
guardara para mim todo o encanto daquela noite." (pp.
162/163) [nota nossa], como podemos lembrar das primeiras páginas de
No Caminho de Swann, daí o caráter circular da obra, por se
lembrar da infância no último capítulo, ele escreve o primeiro do
primeiro volume...
O que ele quer dizer é que não se
trata da qualidade do livro, ou outra obra de arte, mas o fato da mãe
ter lido para ele, em sua infância, por isso tornar-se memorável,
não por estética, mas por afeto. Assim "qualquer objeto
outrora visto, se o revemos, nos devolve, com o primeiro olhar nele
pousado, todas as imagens que então o enchiam." (p. 163),
pois, afinal, "Revendo eu algum objeto de outro período,
outro rapaz surgirá. E minha pessoa de hoje não passa de uma
pedreira abandonada, que julga igual e monótono tudo quanto encerra,
mas de onde cada recordação, como um escultor grego, tira inúmeras
estátuas." (p. 164)
Então o fenômeno da recordação
quando o eu-de-ontem revela ao eu-de-hoje o que este não mais
conhece pois foi aquele que vivenciou. Ao atravessar camadas do
tempo, num dado momento, vem 'perfurar' com sensações todos os Eus
temporalmente dispersos, "Uma imagem oferecida pela vida nos
traz de fato, num momento, sensações múltiplas e diversas."
(p. 166), pois diversos são aquele que viveu e o este que relembrou.
por isso o descritismo - farto no dito objetivismo do romance
realista / naturalista vem romper as cadeias de relações entre
vivência e memória. "O valor objetivo das artes é para
isso de somenos valor; o que importa desvendar, tornar claro, são
nossos sentimentos, nossas paixões, isto é, os sentimentos e
paixões de todos." (p. 181)
Somente a Escrita, do sujeito e seus
vários Eus, é capaz de traduzir o livro íntimo, de onde o escritor
deve extrair a obra a partir das próprias impressões,
"Eu veria que, para exprimir tais
sensações, para escrever esse livro essencial, o único verdadeiro,
um grande escritor não precisa, no sentido corrente da palavra,
inventá-lo, pois já existe em cada um de nós, e sim traduzi-lo. o
dever e a tarefa do escritor são as do tradutor." (OTR, p. 168)
"Captar a nossa vida, e também a
dos outros; pois o estilo para o escritor como para o pintor é um
problema não de técnica, mas de visão. [...] Só pela arte podemos
sair de nós mesmos, saber o que vê outrem de seu universo que não
é o nosso [...] Graças à arte, em vez de contemplar um só mundo,
o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e dispomos de tantos mundo quantos
artistas originais existem [...]" (p. 172)
A Escrita enquanto Arte de conhecer-se
e transmitir nosso mundo aos outros, que conhecerão além de seus
próprios mundos, mas para tal empreitada é preciso registrar os Eus
sucessivos ao longo da vida, os "diversos 'eus' que morrem
sucessivamente em nós e por egoísmo o quereriam reter" (p.
173); é necessário buscar a verdade da Arte na penumbra, no
profundo do sujeito, "os livros verdadeiros se geram não na
diurna luz e nas palestras, mas no escuro e no silêncio."
(p. 174); é preciso escrever não só com a inteligência, mas com o
frescor dos sentidos, com a recriação a partir das impressões,
"Então, menos brilhante sem
dúvida do que a que me fizera vislumbrar na obra de arte o único
meio de reaver o Tempo perdido, nova luz se fez em mim. E compreendi
que a matéria da obra literária era, afinal, minha vida passada;
que tudo me viera nos divertimentos frívolos, na indolência, na
ternura, na dor, e eu acumulara como a semente os alimentos de que se
nutrirá a planta [...] Assim minha existência até este dia poderia
e não poderia resumir-se neste título: uma vocação. Não poderia
porque a literatura não desempenhara nela o menor papel." (OTR,
p. 175)
"O literato inveja o pintor,
gostaria de tomar instantâneos, notas, e estará perdido se o fizer.
Mas quando escreve, não há um só gesto de suas personagens, um
tique, um modo de falar que não lhe sejam ditados á inspiração
pela memória; [...] Verifica então o escritor que, se seu sonho de
ser pintor era irrealizável de modo consciente e voluntário,
cumpriu-se entretanto, e o caderno de esboços se encheu à sua
revelia..." (p. 175)
"E quando buscamos extrair de
nossa dor a generalidade, escrever a seu respeito, sentimo-nos
consolados, por outro motivo talvez além dos enumerados, proveniente
de que pensar de maneira geral, escrever, é para o escritor uma
função sadia e necessária, cujo cumprimento lhe comunica a mesma
satisfação que aos homens esportivos os exercícios físicos, o
suor e o banho." (p. 177)
Necessário é escrever a partir da
perda, dos desamores, das mágoas, não apenas como desabafo, mas
conhecimento de si mesmo, em introspecção, a visar uma superação,
nem que seja através da obra de Arte, "se se afirma, com
efeito, que os amores, as mágoas do poeta o serviram, ajudando-o a
edificar sua obra, que, sem sequer o suspeitarem, muitas
desconhecidas contribuíram, esta pela crueldade, pela zombaria
aguda, com pedras para um monumento que não chegarão a ver,
[...] " (pp. 178-179), e que o leitor se encontre na obra,
vendo-a tal um espelho, não atento a qualquer 'biografismo' - o que
o autor realmente viveu - mas lendo além do autor, cuja obra é uma
lupa, "Na realidade, todo leitor é, quando lê, o leitor de
si mesmo." (OTR, p. 184)
Novamente Marcel entre os
Guermantes
Ao reencontrar os Guermantes, Proust
tem a concepção da obra - e percebe a 'dívida' com Charles Swann,
o protótipo do ciumento. Daí o 'caminho de Swann' que acabou por
levar - via Balbec - aos Guermantes de Combray. De volta aos
encontros de sociedade, com seus saraus, concertos, bailes de
máscaras, Proust finalmente encontra o tema sobre o qual aplicar sua
vocação. Mesmo meio aos convivas ele resguarda sua capacidade de
observação e ironia, "parecia-me que saberia resguardar a
minha solidão no meio da mais numerosa assistência." (OTR,
p. 190)
Então Proust reencontra suas
personagens, um pouco mais cheias de rugas e amarguras, figuras
solenes, agora decadentes; máscaras sobre máscaras. ele tenta
reconhecer os convivas - não sabe se será reconhecido... São
comparados a 'velhos fantoches' num 'teatro de bonecos', a sofrerem a
ação do Tempo, ali perceptível, em seres deformados por mudanças.
"Por todos os motivos, uma recepção como esta fazia-se mais
preciosa do que uma visão do passado, oferecendo-me todas as imagens
sucessivas, por mim nuca vistas, que separavam o passado do presente,
ou, melhor, a relação entre ambos; era o que outrora se chamava um
'panorama', mas um panorama dos anos, á vista não de um monumento,
mas de alguém situado fora da perspectiva deformante do Tempo."
(OTR, p. 195)
Aqui Proust já é tratado com
deferência e respeito pelos jovens, como se percebesse ser um
'senhor idoso', e ele custa a rconhecer seu amigo de outrora, o
polêmico Bloch, com novo nome, além de nova figura, "bem
conservado para sua idade." Quando dizem 'tão moço', ou 'mudou
nada', é com expressão melancólica, pois é notória a "ação
destrutiva do Tempo", quando outrora conhecidos pouco se
reconhecem: ele não liga os nomes às pessoas. "Breve, o
artista Tempo interpretara todos esses modelos de modo a torná-los
reconhecíveis, mas não parecidos, não que os embelezasse, mas
porque os envelhecera. Esse artista trabalha, aliás, muito
lentamente." (OTR, p. 204)
"Envelhecendo, pareciam ganhar
uma personalidade nova, como as árvores às quais o outono,
alternando as cores, parece mudar a essência." (p. 205) e
"Velhos de feições deformadas buscavam não obstante reter,
fixa e permanentemente, uma dessas expressões que, para tirar
partido de um dote físico ou disfarçar um defeito, se assumem
diante dos retratistas; eram definitivos e imutáveis instantâneos
de si mesmos." (OTR, p. 210)
Para melhor relembrar tais figuras
precisamos reler o volume terceiro, O Caminho de Guermantes, onde
Marcel idealizara os nobres, quase deidades, agora meio a todos, na
decadência, na velhice, a encontrarem apenas melancolia. Antes, ele
sequer poderia imaginar as reuniões da aristocracia, "A vida
que eu supunha levarem naquele meio derivava de uma fonte tão
diversa da experiência e parecia-me que havia de ser tão peculiar,
que não podia imaginar nas reuniões da duquesa [de Guermantes] a
presença de pessoas que eu houvesse outrora frequentado, de pessoas
reais." (OCG, p. 27; 1996, trad. Mário Quintana)
Marcel outrora frequentava os salões
com a intenção de fazer contato com escritores, mesmo tão jovem e
franzino para frequentar a sociedade. Havia ainda muita distinção
entre os aristocratas e os novos ricos (os burgueses das finanças e
empresas). Distinção que se perdera com o fim da Belle Époque,
com o 'terra arrasada' da Primeira Grande Guerra. vemos que
casamentos entre famílias de nobres decadentes e burgueses
arrivistas não seriam incomuns - exemplo é Gilberte Swann, futura
Sra. de Saint-Loup.
Outrora os nobres, em seus camarotes
na Ópera, eram como "a assembleia dos deuses a contemplar o
espetáculo dos homens, [...] entre dois pilares do céu."
(OCG, p. 52) Havia diferença entre o idealizado e o vivenciado - as
imagens da aristocracia flutuavam entre tradição e expectativas.
Assim Marcel deixara as 'moças em flor' e concentrara sua obsessão
na nobreza - principalmente na Sra. de Guermantes. É que ele ainda
não distinguira a realidade...
Antes de atrair e cativar
(literalmente) a sua Albertine, marcel espera um minuto de atenção
da Duquesa de Guermantes, a quem ele daria asilo, caso ela descesse
do pedestal da aristocracia. O mais próximo é o jovem Robert de
Saint-Loup, sobrinho da duquesa, que ele conhecera nas praias de
Balbec, aquele "insolente", de "olhar implacável",
"temperamento orgulho e mau", como é descrito em À
Sombra das Raparigas em flor, antes que artista e oficial se
ligassem por amizade. Saint-Loup, que seguia carreira militar, não
vivia em Paris, mas na guarnição em Doncières, contudo mantinha
contatos - cartas, telefone (a grande novidade!), e recebia visitas
do jovem escritor. Afinal, Robert adorava falar sobre arte e guerra,
sendo favorável aos modernistas, desprezando a própria classe, a
ponto de apoiar a revisão do caso Dreyfus, o oficial judeu condendo
injustamente.
Sendo oficial, Saint-Loup será outra
vítima da Grande Guerra, mas por enquanto, vinte anos antes, vive a
discursar sobre as táticas militares, os complôs contra os judeus,
o revanchismo francês, junto aos jovens nobres, que até toleram
plebeus - como é o caso de Marcel - desde que ricos, influentes, bem
relacionados, e talentosos. Robert admira o talento intelectual,
literário de Marcel, com quem não hesita em discutir suas leituras.
e o escritor sabe que o oficial é a favor da inocência de Dreyfus,
enquanto a maioria dos oficias - clericalistas, antissemitas - é
antidreyfusista. A esquerda, apoiadora da República, se inclina à
defender o acusado judeu. Enquanto não há guerra declarada, os
jovens oficias se deixam divagar sobre teorias militares, táticas e
estratégias.
Teorias militares que, na prática,
conduzem às devastações e mortandades irrecuperáveis, o que faz
da guerra não uma arte, mas auto-destruição. Vinte anos depois,
então toda essa geração de Saint-Loup será massacrada nas
trincheiras, numa guerra que imaginavam seria curta (mas que durou 4
sangrentos anos...), "Com os terríveis progressos da
artilharia, as guerras futuras, se ainda as houver, serão tão
curtas que, antes que se tenha pensado em tirar partido de
ensinamentos, será firmada a paz." (OCG, p. 105)
Antes de obcecado pela Sra. de
Guermantes, Marcel era apaixonado por Gilberte, que seria a esposa de
Robert. É justamente a viúva que Marcel reencontra na recepção
dos Guermantes. De início, ele a confunde com a Sra. de Forcheville,
i.e., a ex-Sra. Swann, "ela desposara um aventureiro de nome
Swann, mas depois se casra com um homem de prol, o conde de
Forcheville." (OTR, p. 222), comentam nas rodas sociais. Mas
a imagem dos Guermantes seguira no imaginário de Proust, "Mas
enfim, apesar de tudo, os Guermantes, assim como Gilberte, diferiam
dos outros grã-finos, por lançarem fundas raízes em meu passado,
na época em que fora sonhador e acreditara nos homens."
(OTR, p. 236)
Junto a Gilberte de Saint-Loup,
Marcel lembra-se de Robert e das várias conversas sobre livros e
arte militar, que estão em O Caminho de Guermantes, e de como
o falecido oficial enxergava a guera sem-tréguas, a arrastar-se cada
vez mais tropas para a morte nas trincheiras. "É fora de
dúvida que a guerra não é estratégica, mas antes patológica."
(OTR, p. 241) No mais, deixam-se comentar os casamentos
(mésalliances) entre nobres e parvenus (arrivistas),
tipo a Sra. Verdurin, viúva, a casar com um Guermantes.
Gilberte se admira que Marcel deixe a
'torre de marfim' do artista para ir a reuniões de sociedade. Para
que ele escreva é melhor se recolher à solidão? Ele quer se
dedicar ao trabalho, entregar-se à obra. Assim nada de cortesias, ou
aceitar convites para jantares - antes deve recolher-se. Conservar
amigos, frequentar festas banais, ou recolher-se para criar a obra de
arte? Mas haverá mesmo tempo? (Sim, sabemos que houve tempo hábil,
justamente com os últimos volumes sendo publicados postumamente.)
E qual versão das personagens? Qual
Sra Swann? Qual Gilberte - das tantas ao longo dos anos? A jovem
amiga de Bergotte? A amiga de Marcel ? A viúva de Robert? Todas as
personalidades exumadas - reconstruídas - pelas recordações. Em O
Caminho de Guermantes, Marcel tem o foco na família dos
Guermantes, principalmente a duquesa, presente em suas obsessões.
Qual o contato ele tem com os nobres? A única é a amizade com
Robert, que ele visitava em Doncières, entre os nobres oficiais, a
notar as diferenças entre a nobreza antiga e a do Império [aquela
bonapartista, pós-Revolução], e de como as mudanças agem
sobre os comportamentos de aristocratas e plebeus. Como os
nacionalistas se alimentavam de revanchismos e perseguições, e de
como sempre eram precisos 'bodes expiatórios'. Vimos como foi o caso
Dreyfus que deixou em foco as questões sociais e de identidade.
"É verdade que o caleidoscópio
social estava em vias de virar e que o caso Dreyfus ia precipiar os
judeus no último degrau da escala social. Mas, por um lado, por mais
que raivasse o ciclone dreyfusista, não é no princípio de uma
tempestade que as vagas atingem a maior violência." (OCG, p.
170)
As figuras sociais são variadas,
devido às propriedades e ao nível cultural, com nobres cultos e
aristocratas ignorantes, com burgueses arrivistas e jovens estudantes
que vivem na pobreza. Ter posses nem sempre é ter status ou bens
culturais, ainda que quem seja rico pense que pode comprar
conhecimento, que pode ser a posse de um estudante numa mansarda.
Assim a distância entre um Sr. de Charlus, nobre de casta, e
parvenus, tais como as figuras de judeus, o bon-vivant
Swann e o literato Bloch. Mas, no salão da Sra. de Villeparisis se
encontravam muitos outros, entre nobres, parvenus, artistas,
negociantes, bajuladores, hipócritas, rivais, pedantes, e outros
seres banais, mas é assim mesmo que é a 'sociedade'.
Naquela época, Marcel já desejava
escrever, mas ainda não era o momento, "não force a Escrita a
sair do nada", exortaria um Drummond, ciente das 'lutas com as
palavras'. "Se ao menos eu pudesse começar a escrever! Mas
quaisquer que fossem as condições em que abordasse esse projeto
[...] com arrebatamento, com método, com prazer, [...] o que acabava
sempre de sair de meus esforços era uma página em branco, virgem de
qualquer escrita, [...]" (OCG, p. 134)
É num almoço, por convite de
Robert, que Marcel é apresentado à amante do jovem oficial, a
suposta atriz Rachel. No entanto, o narrador sabe quem ela era, uma
'dama da noite', ou uma 'mulher da vida', com ares de atriz, que
ilude o nobre. A elegância de Rachel só é possível na imaginação
de Robert, o enamorado (assim como Swann idealizara a Odette, ou
Marcel imaginava 'as moças em flor', e a duquesa de Guermantes), que
vê o que deseja ver. Rachel é a mesma, mas é diversa para Marcel e
Robert,
"Via tudo quanto a imaginação
humana pode por atrás de um palminho de cara como o daquela mulher,
se foi a imaginação que a conheceu primeiro; [...] Era sem dúvida
o mesmo rosto fino e miúdo que víamos Robert e eu. Mas tínhamos
chegado a ele pelos dois caminhos opostos que jamais se comunicarão
e nunca lhe veríamos a mesma face." (OCG, p. 142)
A ex-prostituta conquistara o
sentimental nobre com um 'jogo terrível', a oferecer-se, a
prometer-se, enquanto Robert era vítima do amor platônico, a cair
na "loucura de fazer de
uma mulher da vida um ídolo inacessível", pois a
beleza de Rachel é percebida, por Robert, "através dos
sonhos que formara", uma vez que é incrível o poder da
imaginação, "a ilusão em que se apoiavam as dores do amor
que se me afiguravam grandes." (OCG, p. 144)
Robert, um nobre, por tradição
preocupado com um casamento rico, se ocupava com uma amante de classe
e posição inferior. Assim, como o Dorian Gray, do romance de Oscar
Wilde, que tinha prazeres com a classe baixa, tal uma forma de
fetiche. Afinal, por que Robert não encontra prazeres em 'seu
mundo'? Ele se encontra deslocado meio a nobreza - status que
muitos burgueses querem alcançar, frequentando os salões, os
saraus, as óperas, para receberem atenção e consideração das
classes altas. O jovem nobre nascido na aristocracia não idealiza a
própria classe, com a qual convive e tolera, mas aquela dos artistas
e literatos. Robert conhecera Rachel nos espetáculos, quando, vendo
a atriz iniciante, ele criara uma ilusão - a figura da 'atriz', ser
da encenação - e não da Rachel das casas de rendez-vous. Ao vê-la
representar, Robert passou a idealizá-la, e esforçar-se por
conquistar a atriz.
Não é diferente Marcel e a duquesa,
figura idealizada. Desde a aparição no balcão da Ópera, a duquesa
é vista como a inalcançável. Mas finalmente acontece que uma
oportunidade se afigura ao jovem escritor: justamente numa reunião
na casa da Villeparisis - a qual a avó de Marcel conhecera em Balbec
-, a tia de Robert. Mesmo que o status de Villeparisis não
seja tão alto quanto de outros Guermantes, mas os salões aceitam
figuras de status variados - até artistas de sucesso
momentâneo. No mais, a própria Sra. de Villeparisis tem pretensões
artísticas (até publicará volumes de suas memórias...), no que é
desprezada por outros nobres - mesmo que não se neguem a
frequentarem seus saraus.
Marcel, enquanto narrador, tem noção
do idealismo desperdiçado com a duquesa Oriane, que ele encontra
diante de si, "Mais tarde, quando ela se me tornou
indiferente, vim a conhecer muitas das particularidades da duquesa e
sobretudo [...] os seus olhos, onde estava cativo como num quadro o
céu azul de uma tarde de França, largamente descoberto, banhado de
luz mesmo quando ele não brilhava;" (OCG, p. 183), enquanto
ele idealizava até a conversação da nobre, "a sua
conversa, profunda, misteriosa, teria uma estranheza de tapeçaria
medieval, de vitral gótico. [...] seria preciso que refletissem
aquela cor de amaranto da última sílaba de seu nome, aquela cor que
desde o primeiro dia me espantara de não encontrar na sua pessoa e
que eu fizera refugiar-se ao seu pensamento." (p. 187)
Os artistas querem conviver com os
nobres, que querem conhecer os artistas, assim a duquesa desejava
conhecer o escritor Bergotte, a quem Marcel conhecera, desde os
tempos em que frequentara a casa dos Swann, em amizade sentimental
com Gilberte. Assim, seria fácil conseguir a atenção da duquesa,
cujos julgamentos em arte causam repercussão. Aliás, os nobres
adoram falar de arte, assim como os burgueses gostam de discutir
política e os políticos amam finanças. Banalidades não faltam -
nem faltarão - nas conversas de salão. Jogadas políticas, fofocas
diplomáticas, caso Dreyfus, revanchismo, lançamentos literários,
peças teatrais em cartaz, mais amores idealizados, e logo Marcel
percebia que a duquesa não era tão espirituosa, aliás sendo até
banal. Ela pouco compreendia das obras literárias e teatrais, "É
por uma mulher dessas que todas as manhãs faço tantos quilômetros!
Sou até bom demais! Agora sou eu que não quero saber dela"
(OCG, p. 206)
Entre rancores e idealizações,
amores e facções partidárias passam-se as gerações. Ora
nacionalistas, ora cosmopolitas, ou modernistas, ou conservadores,
ora monarquistas, ora republicanos, os frequentadores de salões
adoram elaborar teorias e divagações sobre tudo, defendendo ou
atacando, com boas pitadas de ironia e de humor espirituoso. Os
monarquistas não podem estar entre os dreyfusistas, os
antidreyfusistas devem odiar os socialistas, que devem desconfiar dos
revanchistas, que detestam os revisionistas, que adoram polêmica,
enquanto os anarquistas armam suas bombas, para novos atentados.
Com o tempo, do Caminho de
Guermantes ao Tempo
redescoberto, evidencia-se a ascensão dos parvenus:
Rachel, a atriz, a amante de Robert de Saint-Loup, a declamar nos
saraus - com certa afetação - da princesa de Guermantes, a ex-Sra.
Verdurin! Gilberte Swann, a burguesa, filha de um arrivista, é
desprezada pelos Guermantes tradicionais, ao mesmo tempo em que a
viúva de Saint-Loup despreza a atriz Rachel, do mesmo modo que a
ex-cocote Odette, ex-Sra. Swann, atual Sra. de Forcheville, atual
amante do Sr. de Guermantes, é desprezada pela nobreza de linhagem -
não de mésalliance. Os caminhos de Swann e o de Guermantes
se confundem num mosaico de casamentos entre castas, numa troca de
favores e posições.
"Assim, no faubourg
Saint-Germain, as posições aparentemente inexpugnáveis do duque e
da duquesa de Guermantes, do barão de Charlus haviam perdido sua
inviolabilidade, do mesmo modo por que mudam todas as coisas neste
mundo, [...] Assim se altera a configuração de tudo, assim o centro
dos impérios, e o cadastro das fortunas, e a carta dos privilégios,
o que parecia definitivo, é perpetuamente reformado, e um homem
vivido vê com seus olhos a transformação mais completa justamente
onde a crera impossível." (OTR, p. 268)
A srta. de Saint-Loup, a filha de
Gilberte, é apresentada a Marcel. A moça é a união visível e
corporificada dos caminhos que percorrem todo o ciclo de romances. "E
a ela conduziam os dois grandes 'caminhos' de meus passeios e dos
sonhos - por seu pai Robert, o de Guermantes, por Gilberte, sua mãe,
o de Méséglise, que era o de Swann." (pp. 276-277)
A reconstituída 'geografia
sentimental' de Marcel é delineada em Paris, Combray, Balbec,
Donciéres, Tansonville, os nomes das terras, as evocações de
juventude, num mosaico de citações e recordações, que possibilita
a tessitura das narrativas, a mudanças - ascensão ou queda - de
cada personagem,
"Não poderíamos descrever
nossas relações, ainda superficiais, com alguém, sem evocar os
mais diversos sítios de nossa vida. Assim cada indivíduo - eu
inclusive - dava-me a medida da duração pelo giro que realizava em
torno não só de si mesmo como dos outros, e notadamente pelas
oposições que sucessivamente ocupara em relação a mim.
E, sem dúvida, todos esses planos
diferentes, segundo os quais o Tempo, desde que, nesta festa, eu o
recapturara, dispunha minha vida, aconselhando-me a recorrer, pata
narrar qualquer existência humana, não à psicologia plana em regra
usada, mas a uma espécie de psicologia no espaço, acrescentavam
nova beleza ás ressurreições por minha memória, pela introdução,
na atualidade, do passado intato, tal qual fora quando era presente,
suprime precisamente a grande dimensão do Tempo, a que permite à
vida realizar-se." (OTR, p. 278)
É então que Marcel se entregará a
realização de sua obra, a justificar-se, a vida enquanto narrativa,
a "realizá-la num livro", ainda que as dificuldades sejam
imensas, e a obra almeje grandes alturas, "como seria feliz
quem pudesse escrever tal livro, pensava eu; e que trabalho teria
diante de si!" (p. 279), e "Nos grandes livros dessa
natureza, há partes apenas esboçadas, que não poderiam ser
terminadas, dada a própria amplidão da planta arquitetônica.
Muitas catedrais permanecem inacabadas." (OTR, p. 279)
O autor não pretende negar-se à
obra, mesmo que esta seja infinda - é lembrar a própria vida! - mas
está ciente de que é a obra que consagra - e justifica - o autor,
que deve ser metódico e modesto. "Pregando aqui e ali uma
folha suplementar, eu construiria meu livro, não ouso dizer
ambiciosamente como uma catedral, mas modestamente como um vestido."
(OTR, p. 280)
A Arte - ele bem sabe - se alimenta
do sofrer, assim como a Memória metaboliza o Tempo, numa "lei
cruel da arte", "Era a noção do Tempo incorporado, dos
anos escoados porém inseparáveis de nós que eu tencionava fazer
ressaltar em minha obra." (OTR, p. 291) Obra que ora temos
em mãos, para ler e reler, a recolher pérolas entre os caminhos que
são traçados, ora paralelos ora superpostos, de vida e escrita,
ontem e hoje, vivido e idealizado. Em Busca do Tempo perdido,
de Marcel Proust, é uma conquista constante, a cada leitura e
releitura, sempre dizendo algo que não tínhamos ouvidos para ouvir
antes. Há tempo para cada coisa, cada aprendizado.
mar/16
Leonardo
de Magalhaens
Referências
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Walter. “A imagem de Proust”. Magia, técnica, arte e
política. In Obras Escolhidas, I. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
BLOOM,
Harold. O Cânone Ocidental. (The
Western Canon, 1994) trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro:
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PROUST,
Marcel. No Caminho de Swann. Trad. Mário Quintana. 19ª ed.
rev. São Paulo: Globo, 1998. (Em Busca do Tempo Perdido, I)
____________
. À Sombra das raparigas em flor. Trad. Mário Quintana. 13ª
ed. rev.
São
Paulo: Globo, 1996. (Em Busca do Tempo Perdido, 2)
____________
. O Caminho de Guermantes. Trad. Mário Quintana. 11ª ed.
rev. São Paulo: Globo, 1996. (Em Busca do Tempo Perdido, 3)
____________
. Sodoma e Gomorra. Trad. Mário Quintana. 14ª ed. rev. São
Paulo: Globo, 1998. (Em Busca do Tempo Perdido, 4)
____________
. A Prisioneira. Trad. Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de
Alencar.
13ª
ed. Rev. São Paulo: Globo, 1998. (Em Busca do Tempo Perdido, 5)
____________
. A Fugitiva. Trad. Carlos Drummond de Andrade. 12ª ed. São
Paulo: Globo, 1995. (Em Busca do Tempo Perdido, 6)
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. O Tempo Redescoberto. Trad. Lúcia Miguel Pereira. 13ª ed.
rev.
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SARTRE,
Jean-Paul. Diário de uma Guerra Estranha. (Les
Carnets de la Drôle de
Guerre,
1983) trad. Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro : Nova Fronteira,
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SHATTUCK,
Roger. Marcel Proust. New York: Viking, 1975.
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. As Ideias de Proust. Trad. Eliane F. Pereira. São Paulo:
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