terça-feira, 5 de abril de 2016

sobre Em Busca do Tempo perdido - de Marcel Proust / parte 2


 



Sobre Em busca do Tempo Perdido ( À la recherche du temps perdu)
(1913-1927)
do escritor francês Marcel Proust (1871-1922)


A Escrita enquanto investigação e reconquista do passado



>> parte 2


O Tempo Redescoberto

     Onde estão as lembranças do narrador? De onde brota toda a narrativa caudalosa na qual navegamos? De súbitos transbordares de uma memória involuntária que habita o corpo, que ativa e possui o corpo, deixando o agora recheado de ontem. Que lembranças ele resguarda? de tudo o que acontecera nos volumes anteriores - as moças em flor, a amizade com Saint-Loup, a Albertine que é conquistada e aprisionada, os casos nebulosos de homoafetividade, a fuga da cativa - em Sodoma e Gomorra, A prisioneira e A Fugitiva.

"Minha memória perdera o amor de Albertine, mas parece existir uma memória involuntária dos membros, pálida e estéril imitação da outra, que lhe sobrevive, como certos animais ou vegetais ininteligentes vivem mais do que o homem. as pernas, os braços, estão cheios de lembranças embotadas." (OTR, p. 12)

Em O Tempo Redescoberto temos uma 'volta ao passado' quando Marcel adentra o salão dos Guermantes, assunto de O Caminho de Guermantes, que deve ser relido juntamente para melhor delinear as personagens - que são muitas e com os títulos nobiliárquicos mais variados - , com destaque para o Sr. de Charlus, o barão que aparecera em À Sombra das Raparigas em flor. O nobre é uma voz dissonante e polêmica, causa incômodo em todas as castas - tanto pelo que diz quanto pelo que faz - e através dele pode-se extrair da 'vida mundana' quadros líricos, assim como Charles Baudelaire foi o lírico dos quadros parisienses, e justamente o que Proust pretendia, ao transformar as banalidades das cenas sociais, nos salões aristocratas e burgueses, em páginas da literatura.

"O Sr. de Charlus fora de algum modo seu poeta, soubera extrair da ambiência mundana uma espécie de poesia onde entravam a história, a beleza, o pitoresco, o cômico da elegância frívola." (p. 66)

Figura ambígua e contraditória, o barão de Charlus vive entre as dinastias de germânicos e franceses, numa identidade um tanto dividida. Como pode ele ser patriota, se admira os alemães?, "O Sr. de Charlus, dotado de raras qualidades moais, acessível à piedade, generoso, capaz de afeição, era em compensação, por motivos diversos - entre outros o de ser filho de uma duquesa da Baviera - destituído de patriotismo. Pertencia, por conseguinte, ao corpo-França tanto quanto ao corpo-Alemanha." (p. 73)

     Novamente franceses e alemães se confrontariam numa guerra, agora de grandes proporções - daí Grande Guerra, depois Primeira Guerra Mundial - uma terrível calamidade que se prolongou demais e foi a ruínas das dinastias e impérios europeus, com a derrocada das aristocracias, que cederam lugar à repúblicas instáveis. Foi o fim do Império Alemão (fragmentado entre conservadores e socialistas), do Império Austro-Húngaro (responsável pelo ultimato que iniciou a guerra), abalo do Reino da Itália (que se rendeu aos fascistas), fim do Império Otomano (com a separação dos árabes), abalo do Império Britânico (que durou apenas mais três décadas), fim do Império Russo (que se afundou numa guerra civil entre monarquistas e socialistas / comunistas). Os únicos vencedores foram os Estados Unidos da América, que despontou como superpotência no século 20, o século americano'.

     Podemos ver as marcas da guerra em várias obras da época, sejam de vencedores ou vencidos, assim nos relatos de Nada de novo no front ocidental [1929] , do alemão E. M. Remarque (1898-1970) ou O Grande Meaulnes [1913], do francês Alain Fournier (1886-1914), também em Adeus às Armas [1929] do norte-americano Ernst Hemingway (1899-1961), autor do clássico Por quem os Sinos dobram? (sobre a Guerra Civil Espanhola, 1936-1939), para mencionar alguns.

     A guerra: cada lado julga ser o certo, o patriótico, o digno por excelência, e sacrificam as juventudes num morticínio contínuo, durante anos. Quem seria culpado? o militarismo francês, com seu revanchismo? o militarismo alemão, com seu imperialismo tardio? "Para voltar à guerra em si, quem a desencadeou foi mesmo o imperador Guilherme? tenho grandes dúvidas." (p. 90), confessa o Sr. de Charlus, que não tem a mente lavada pelo revanchismo. Outro francês, o filósofo e romancista Jean-Paul Sartre aborda a pessoa e o cargo, a personalidade e a figura histórica, do Imperador germânico Guilherme II, e todo o processo histṕrico do 'homem-na-situação', em seu diário [Drôle de Guerre], no caderno XIV, de março de 1940, em plena II Guerra Mundial, onde ressalta que “A dignidade de rei da Prússia dá a esse reinado um caráter militar. O rei é rei-soldado.” (1983, p. 371) e lembra o caráter 'familiar e sagrado' das famílias nobres, tal como longamente abordado nos volumes de Em Busca, “Há uma geografia familiar e sagrada desde a origem, em Guilherme II, análoga aos famosos No Caminho de Swann e O caminho de Guermantes de Proust.” (1983, p. 379)

     O ambiente aristocrático, hierarquizado, onde o rei é o centro. A vida pessoal sufocada pelos ritos da realeza, com as vantagens da influência e do poder. O militarismo prussiano soma-se à insegurança do Imperador, com seu complexo de inferioridade, devido a uma deformação física. Ainda mais agravado pelo antiliberalismo e pela anglofobia. Acontece que Guilherme era descendente de britânicos e de prussianos, estava dividido em sua 'lealdade' tal qual o Sr. De Charlus, entre a glória alemã e o sacrifício francês.

     Neto da rainha Vitória da Grã-Bretanha, primo do rei George V, parente dos czares russos, Guilherme se indispôs com todos, gerando um conflito europeu, depois mundial. Começou por dispensar o primeiro-ministro Otto von Bismarck, responsável pela unificação do Império Germânico, em 1870 / 71, depois mostrou seu antissemitismo, seu despotismo, aumentando a rivalidade franco-germânica, a gerar a crise marroquina em 1905, e apoiar os austríacos contra os sérvios em 1914, a ambicionar uma expansão para leste, tudo a explodir numa Grande Guerra. Com a derrota alemã, com a guerra civil entre social-democratas, conservadores e comunistas, o imperador foi exilado. Guilherme morreu na Holanda, em 1941, ciente dos delírios nazistas, aos quais desprezava, aliás, o ex-imperador dizia ter vergonha de ser alemão, ao ver a regressão de seu país nas mãos dos líderes nazistas sem escrúpulos.

     Voltando a Grande Guerra, a França acusa a Prússia de militarismo, mas se esquece do revanchismo, depois a derrota de 1870. O que desejam os franceses? Nada menos que a fragmentação da Alemanha... "A França não mostraria tanto empenho em prolongar a guerra se se houvesse mantido fraca, nem a Alemanha em terminá-la se ainda dispusesse da mesma força." (OTR, p. 91), o Sr. de charlus faz um diagnóstico do conflito. Uma hecatombe humana e ambiental que afetou os Guermantes, quando acontece a destruição de Méséglise durante uma série de batalhas, como Marcel então lamenta.

     A guerra continuava, ano após ano, e os vícios e as futilidades também, com os salões cheios, indiferentes às ameaças do avanço alemão, "Assim procediam os Verdurin dando seus jantares e o Sr. de Charlus correndo a seus prazeres, deslembrados de que os alemães estavam - imobilizados, é verdade, por uma barreira sangrenta, sempre renovada - a uma hora de automóvel de Paris." (OTR, p. 71), num conflito de impasses e trincheiras, quando ocorriam "milhões de perdas diárias, que o governo procurava ocultar." (p. 131). Continuava Charlus: "As festas enchem o que talvez seja, se os alemães continuarem a avançar, os últimos dias de nossa Pompeia." (p. 97) Enquanto os jovens morrem nas batalhas, os arrivistas e os decadentes continuam nas farras, enquanto toda uma época chega ao fim - 'depois de nós, o dilúvio'.

"Eu dizia a mim mesmo: Pena que o Sr. de Charlus não ser romancista ou poeta, não para descrever suas experiências, mas porque a posição assumida por um Charlus relativamente ao desejo suscita-lhe em torno os escândalos, força-o a levar a vida a sério, a misturar emoção ao prazer, impede-o de parar, de imobilizar-se na apreciação irônica e exterior das coisas, faz-lhe jorrar incessantemente no seio uma corrente dolorosa. Cada declaração sua implica a possibilidade de ser agredido, senão preso." (OTR, pp. 116-117)


Ser uma testemunha de sua época é justamente o que Proust faz ao observar, descrever, com ironia ou amargura, as suas vivências, suas impressões quanto aos outros. E naquela época, sua sensibilidade era posta à prova, quando acompanhava as vicissitudes do conflito, que vem ceifar a vida de seu amigo Robert de Saint-Loup, o nobre oficial, o marido de Gilberte. o que é a morte de um diante de milhões? Vejamos as matanças nas Batalhas do Somme, de Verdun, de Marne, de Ypres, de Arras, de Tannenberg, de Capuletto, onde as mortes de milhares de Saint-Loups encerraram uma época.

     Ao fim de uma época, Proust, após um tempo numa casa de saúde, lembra e medita, ainda a hesitar quanto aos seus 'dons literários'. longa ausência de Paris, e do círculo de amigos, ele retorna para constatar as mudanças, a corrosão do tempo. Reencontra as personagens de No Caminho de Swann e do À Sombra das Raparigas em flor, todas com os mesmos nomes, mas agora retratos da decadência. Para Marcel resta observar, comentar e interligar os fios da memória. Quem é a viúva de Saint-Loup? Quem agora frequenta o salão dos Verdurin? Assim, no final, ele volta ao início. É o fenômeno do Proust-escritor a olhar o Marcel-artista. "E, como o aviador até então penosamente preso á terra decola de pronto, eu subia aos poucos para as alturas silenciosas da memória." (OTR, p. 142)

     As personagens dos seis volumes anteriores se reencontram sob o olhar de Marcel, entre irônico e amargurado, os aristocratas frequentam salões da burguesia, que casara filhas com filhos de barões e marqueses arruinados. Charlus, em estado decrépito, relembra os mortos, do passado de esnobe, "continuando a falar do passado, sem dúvida para melhor mostrar-se que não perdera a memória, evocava-o de modo fúnebre, porém sem tristeza." (p. 145) Charlus, vítima de depressão, deixa-se confessar opiniões que escandalizam família e classe.

     Marcel confessa seu estado de espírito, "ruminando as tristes reflexões a que acabo de aludir, entrara eu no pátio da residência dos Guermantes" (p. 148) Ele resolve guiar-se pela memória e entregar-se à Escrita. "Desta vez eu estava bem resolvido a não mais me resignar, como no dia em que saboreava a madeleine molhada no chá a ignorar por que, sem haver eu feito nenhum novo raciocínio nem achado nenhum argumento decisivo, perderam toda importância as dificuldades, insolúveis minutos antes." (p. 149) Ele enumera as chaves de suas recordações: os arredores de Balbec, os sinos de Martinville, a madeleine no chá de tília, as sonatas de Vinteuil.

     O conteúdo de sua obra, fruto de seu talento, será a própria vida. uma obra de arte tecida de recordações - o hoje deslizando sobre o ontem, o agora colhendo impressões que evocam o passado - duas dimensões se dando simultaneamente. "O sabor da madeleine fazendo o passado permear o presente a ponto de me tornar hesitante, sem saber em qual dos dois me encontrava; [...] repartido entre o dia antigo e o atual." (p. 152) assim extratemporal, fora do tempo, a escapar do presente, ser possuído pelo passado. Uma fusão da 'observação do presente' com a investigação do 'passado ressecado pela inteligência', quando ele, assim decepcionado com o presente, procura a beleza pela idealização (imaginação), "Um mundo livre da ordem do tempo recriou em nós, para o pdermos sentir, o homem livre da ordem do tempo." (p. 154)


"Certamente podem-se prolongar os espetáculos da memória voluntária, não demandando esforço maior do que o de folhear um livro de figuras.' (p. 154)

"Com prazer egoísta de colecionador, dissera a mim mesmo, ao catalogar as estampas de minha memória: 'Afinal, vi muita coisa bela em minha vida'. A memória me afirmara sem dúvida então as diferenças de sensações, mas nada fazia além de combinar entre si elementos homogêneos." (p. 154)


Envolto em suas memórias, Marcel precisa saber lidar com as impressões, que podem se desencadear, que desejam vencer o presente, repondo o passado (a "ressonância da sensação passada"), "E se o lugar presente não fosse logo vitorioso, creio que desfaleceria; pois essas ressurreições do pretérito, durante sua fugaz duração, são tão totais que não se limitam a impedir nossos olhos de ver o quarto onde se acham para contemplar uma estrada ladeada de árvores ou a maré subindo." (OTR, p. 155)

     Onde está o 'tempo perdido'? No íntimo? Lá fora? No mesmo lugar onde moramos ou para onde viajamos? "O único modo de apreciá-las [as impressões] melhor seria tentar conhecê-las mais completamente lá onde se achavam, isto é, em mim mesmo, torná-las claras até em suas profundezas." (p. 157)(acréscimo nosso) As impressões estão além da superfície, como ressurgimentos do recalcado (para pensarmos em termos freudianos) baseadas numa impressão física - paisagem ou perfume - que, tal um símbolo, recebe uma interpretação (que pode ser psicanalítica...), "era mister tentar interpretar as sensações como signos de outras tantas leis e ideias, procurando pensar, isto é, fazer sair da penumbra o que sentia, convertê-lo em seu equivalente espiritual." (p. 158), pois seriam "verdades escritas por figuras cujo sentido eu buscava em minha cabeça" (idem), e "verdade do passado que ressuscitava, das imagens que desencadeava, pois percebemos seu esforço para aflorar à luz, sentimos a alegria do real recapturado." (p. 158)

"Do livro subjetivo composto por esses sinais desconhecidos, ninguém me poderia, com regra alguma, facilitar a leitura, consistindo esta num ato criador que não admite suplentes nem colaboradores. muitos, por isso, deixam de escrevê-lo, substituem-nos por tarefas várias." (OTR, p. 159)

De modo que Marcel elabora muito a questão da 'impressão', que seria um momento privilegiado de revelação, que o artista deve reter e recriar em sua obra-prima. Seria algo como a epifania, ou insight, que veremos nas escritas de James Joyce, Virginia Woolf, Marguerite Duras, Clarice Lispector, Lúcio Cardoso, João Gilberto Noll, dentre outros. "A impressão é para o escritor o mesmo que a experimentação para o sábio, com a diferença de ser neste anterior e naquele posterior o trabalho da inteligência." (p. 159) Seria tal fenômeno derivado de uma 'manifestação' do inconsciente? "Só vem de nós o que tiramos da obscuridade reinante em nosso íntimo, o que os outros não conhecem." (p.159) Pois a obra seria inconsciente e involuntária, ao realizar-se o escrever é que se dá a Escrita, em momento posterior o autor poderá se reencontrar ao se ler.

"Chegara eu assim à conclusão de que não somos de modo algum livres diante da obra de arte, que não a fazemos como queremos, mas que, sendo preexistente, compete-nos, porque é necessária e oculta e porque o faríamos se se tratasse de uma lei da natureza, descobrí-la." (OTR, p. 160)

Daí a valorização do subjetivo, eis um psicologismo, em reação ao realismo / naturalismo, cuja literatura é vista como falsa e inautêntica. Estavámos em uma época de valorização do irracionalismo, como se percebe na fenomenologia, no surrealismo, no existencialismo, que partem das percepções do sujeito, cujas impressões nunca são mensuráveis ou previsíveis. Proust suspeita das obras intelectuais, que se guiam por teorias, esquemas, lógica, de escolas literárias. A literatura falsa seria um mero jogo, um desfile de imagens. muita descrição, pouca verdade existencial.

     É através das percepções - em fulminantes impressões - que o sujeito tem contato com seus Eus - o eu-de-ontem se corporifica, a ressurgir no eu-de-agora, "Era uma remota impressão, onde se misturavam suaves reminiscências de infância e de família, e que eu não reconhecera de pronto. Indagara com raiva que estranho me vinha perturbar, e o estranho era eu mesmo, a criança que fora, logo suscitada pelo livro que só dela tomava em mim conhecimento, só a ela invocava, não querendo ser visto senão por seus olhos, amado senão por seu coração, ouvido senão por seus ouvidos. por seu lado, este livro [Francis le champi, 1848, de George Sand, pseudônimo da baronesa francesa Amandine Dupin, 1804 -1876], cuja leitura minha mãe me fizera em Combray até alta madrugada, guardara para mim todo o encanto daquela noite." (pp. 162/163) [nota nossa], como podemos lembrar das primeiras páginas de No Caminho de Swann, daí o caráter circular da obra, por se lembrar da infância no último capítulo, ele escreve o primeiro do primeiro volume...

     O que ele quer dizer é que não se trata da qualidade do livro, ou outra obra de arte, mas o fato da mãe ter lido para ele, em sua infância, por isso tornar-se memorável, não por estética, mas por afeto. Assim "qualquer objeto outrora visto, se o revemos, nos devolve, com o primeiro olhar nele pousado, todas as imagens que então o enchiam." (p. 163), pois, afinal, "Revendo eu algum objeto de outro período, outro rapaz surgirá. E minha pessoa de hoje não passa de uma pedreira abandonada, que julga igual e monótono tudo quanto encerra, mas de onde cada recordação, como um escultor grego, tira inúmeras estátuas." (p. 164)

     Então o fenômeno da recordação quando o eu-de-ontem revela ao eu-de-hoje o que este não mais conhece pois foi aquele que vivenciou. Ao atravessar camadas do tempo, num dado momento, vem 'perfurar' com sensações todos os Eus temporalmente dispersos, "Uma imagem oferecida pela vida nos traz de fato, num momento, sensações múltiplas e diversas." (p. 166), pois diversos são aquele que viveu e o este que relembrou. por isso o descritismo - farto no dito objetivismo do romance realista / naturalista vem romper as cadeias de relações entre vivência e memória. "O valor objetivo das artes é para isso de somenos valor; o que importa desvendar, tornar claro, são nossos sentimentos, nossas paixões, isto é, os sentimentos e paixões de todos." (p. 181)

     Somente a Escrita, do sujeito e seus vários Eus, é capaz de traduzir o livro íntimo, de onde o escritor deve extrair a obra a partir das próprias impressões,

"Eu veria que, para exprimir tais sensações, para escrever esse livro essencial, o único verdadeiro, um grande escritor não precisa, no sentido corrente da palavra, inventá-lo, pois já existe em cada um de nós, e sim traduzi-lo. o dever e a tarefa do escritor são as do tradutor." (OTR, p. 168)

"Captar a nossa vida, e também a dos outros; pois o estilo para o escritor como para o pintor é um problema não de técnica, mas de visão. [...] Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que vê outrem de seu universo que não é o nosso [...] Graças à arte, em vez de contemplar um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e dispomos de tantos mundo quantos artistas originais existem [...]" (p. 172)

A Escrita enquanto Arte de conhecer-se e transmitir nosso mundo aos outros, que conhecerão além de seus próprios mundos, mas para tal empreitada é preciso registrar os Eus sucessivos ao longo da vida, os "diversos 'eus' que morrem sucessivamente em nós e por egoísmo o quereriam reter" (p. 173); é necessário buscar a verdade da Arte na penumbra, no profundo do sujeito, "os livros verdadeiros se geram não na diurna luz e nas palestras, mas no escuro e no silêncio." (p. 174); é preciso escrever não só com a inteligência, mas com o frescor dos sentidos, com a recriação a partir das impressões,

"Então, menos brilhante sem dúvida do que a que me fizera vislumbrar na obra de arte o único meio de reaver o Tempo perdido, nova luz se fez em mim. E compreendi que a matéria da obra literária era, afinal, minha vida passada; que tudo me viera nos divertimentos frívolos, na indolência, na ternura, na dor, e eu acumulara como a semente os alimentos de que se nutrirá a planta [...] Assim minha existência até este dia poderia e não poderia resumir-se neste título: uma vocação. Não poderia porque a literatura não desempenhara nela o menor papel." (OTR, p. 175)

"O literato inveja o pintor, gostaria de tomar instantâneos, notas, e estará perdido se o fizer. Mas quando escreve, não há um só gesto de suas personagens, um tique, um modo de falar que não lhe sejam ditados á inspiração pela memória; [...] Verifica então o escritor que, se seu sonho de ser pintor era irrealizável de modo consciente e voluntário, cumpriu-se entretanto, e o caderno de esboços se encheu à sua revelia..." (p. 175)

"E quando buscamos extrair de nossa dor a generalidade, escrever a seu respeito, sentimo-nos consolados, por outro motivo talvez além dos enumerados, proveniente de que pensar de maneira geral, escrever, é para o escritor uma função sadia e necessária, cujo cumprimento lhe comunica a mesma satisfação que aos homens esportivos os exercícios físicos, o suor e o banho." (p. 177)


Necessário é escrever a partir da perda, dos desamores, das mágoas, não apenas como desabafo, mas conhecimento de si mesmo, em introspecção, a visar uma superação, nem que seja através da obra de Arte, "se se afirma, com efeito, que os amores, as mágoas do poeta o serviram, ajudando-o a edificar sua obra, que, sem sequer o suspeitarem, muitas desconhecidas contribuíram, esta pela crueldade, pela zombaria aguda, com pedras para um monumento que não chegarão a ver, [...] " (pp. 178-179), e que o leitor se encontre na obra, vendo-a tal um espelho, não atento a qualquer 'biografismo' - o que o autor realmente viveu - mas lendo além do autor, cuja obra é uma lupa, "Na realidade, todo leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo." (OTR, p. 184)






Novamente Marcel entre os Guermantes

     Ao reencontrar os Guermantes, Proust tem a concepção da obra - e percebe a 'dívida' com Charles Swann, o protótipo do ciumento. Daí o 'caminho de Swann' que acabou por levar - via Balbec - aos Guermantes de Combray. De volta aos encontros de sociedade, com seus saraus, concertos, bailes de máscaras, Proust finalmente encontra o tema sobre o qual aplicar sua vocação. Mesmo meio aos convivas ele resguarda sua capacidade de observação e ironia, "parecia-me que saberia resguardar a minha solidão no meio da mais numerosa assistência." (OTR, p. 190)

     Então Proust reencontra suas personagens, um pouco mais cheias de rugas e amarguras, figuras solenes, agora decadentes; máscaras sobre máscaras. ele tenta reconhecer os convivas - não sabe se será reconhecido... São comparados a 'velhos fantoches' num 'teatro de bonecos', a sofrerem a ação do Tempo, ali perceptível, em seres deformados por mudanças. "Por todos os motivos, uma recepção como esta fazia-se mais preciosa do que uma visão do passado, oferecendo-me todas as imagens sucessivas, por mim nuca vistas, que separavam o passado do presente, ou, melhor, a relação entre ambos; era o que outrora se chamava um 'panorama', mas um panorama dos anos, á vista não de um monumento, mas de alguém situado fora da perspectiva deformante do Tempo." (OTR, p. 195)

     Aqui Proust já é tratado com deferência e respeito pelos jovens, como se percebesse ser um 'senhor idoso', e ele custa a rconhecer seu amigo de outrora, o polêmico Bloch, com novo nome, além de nova figura, "bem conservado para sua idade." Quando dizem 'tão moço', ou 'mudou nada', é com expressão melancólica, pois é notória a "ação destrutiva do Tempo", quando outrora conhecidos pouco se reconhecem: ele não liga os nomes às pessoas. "Breve, o artista Tempo interpretara todos esses modelos de modo a torná-los reconhecíveis, mas não parecidos, não que os embelezasse, mas porque os envelhecera. Esse artista trabalha, aliás, muito lentamente." (OTR, p. 204)

"Envelhecendo, pareciam ganhar uma personalidade nova, como as árvores às quais o outono, alternando as cores, parece mudar a essência." (p. 205) e "Velhos de feições deformadas buscavam não obstante reter, fixa e permanentemente, uma dessas expressões que, para tirar partido de um dote físico ou disfarçar um defeito, se assumem diante dos retratistas; eram definitivos e imutáveis instantâneos de si mesmos." (OTR, p. 210)

Para melhor relembrar tais figuras precisamos reler o volume terceiro, O Caminho de Guermantes, onde Marcel idealizara os nobres, quase deidades, agora meio a todos, na decadência, na velhice, a encontrarem apenas melancolia. Antes, ele sequer poderia imaginar as reuniões da aristocracia, "A vida que eu supunha levarem naquele meio derivava de uma fonte tão diversa da experiência e parecia-me que havia de ser tão peculiar, que não podia imaginar nas reuniões da duquesa [de Guermantes] a presença de pessoas que eu houvesse outrora frequentado, de pessoas reais." (OCG, p. 27; 1996, trad. Mário Quintana)

     Marcel outrora frequentava os salões com a intenção de fazer contato com escritores, mesmo tão jovem e franzino para frequentar a sociedade. Havia ainda muita distinção entre os aristocratas e os novos ricos (os burgueses das finanças e empresas). Distinção que se perdera com o fim da Belle Époque, com o 'terra arrasada' da Primeira Grande Guerra. vemos que casamentos entre famílias de nobres decadentes e burgueses arrivistas não seriam incomuns - exemplo é Gilberte Swann, futura Sra. de Saint-Loup.

     Outrora os nobres, em seus camarotes na Ópera, eram como "a assembleia dos deuses a contemplar o espetáculo dos homens, [...] entre dois pilares do céu." (OCG, p. 52) Havia diferença entre o idealizado e o vivenciado - as imagens da aristocracia flutuavam entre tradição e expectativas. Assim Marcel deixara as 'moças em flor' e concentrara sua obsessão na nobreza - principalmente na Sra. de Guermantes. É que ele ainda não distinguira a realidade...

     Antes de atrair e cativar (literalmente) a sua Albertine, marcel espera um minuto de atenção da Duquesa de Guermantes, a quem ele daria asilo, caso ela descesse do pedestal da aristocracia. O mais próximo é o jovem Robert de Saint-Loup, sobrinho da duquesa, que ele conhecera nas praias de Balbec, aquele "insolente", de "olhar implacável", "temperamento orgulho e mau", como é descrito em À Sombra das Raparigas em flor, antes que artista e oficial se ligassem por amizade. Saint-Loup, que seguia carreira militar, não vivia em Paris, mas na guarnição em Doncières, contudo mantinha contatos - cartas, telefone (a grande novidade!), e recebia visitas do jovem escritor. Afinal, Robert adorava falar sobre arte e guerra, sendo favorável aos modernistas, desprezando a própria classe, a ponto de apoiar a revisão do caso Dreyfus, o oficial judeu condendo injustamente.

     Sendo oficial, Saint-Loup será outra vítima da Grande Guerra, mas por enquanto, vinte anos antes, vive a discursar sobre as táticas militares, os complôs contra os judeus, o revanchismo francês, junto aos jovens nobres, que até toleram plebeus - como é o caso de Marcel - desde que ricos, influentes, bem relacionados, e talentosos. Robert admira o talento intelectual, literário de Marcel, com quem não hesita em discutir suas leituras. e o escritor sabe que o oficial é a favor da inocência de Dreyfus, enquanto a maioria dos oficias - clericalistas, antissemitas - é antidreyfusista. A esquerda, apoiadora da República, se inclina à defender o acusado judeu. Enquanto não há guerra declarada, os jovens oficias se deixam divagar sobre teorias militares, táticas e estratégias.

     Teorias militares que, na prática, conduzem às devastações e mortandades irrecuperáveis, o que faz da guerra não uma arte, mas auto-destruição. Vinte anos depois, então toda essa geração de Saint-Loup será massacrada nas trincheiras, numa guerra que imaginavam seria curta (mas que durou 4 sangrentos anos...), "Com os terríveis progressos da artilharia, as guerras futuras, se ainda as houver, serão tão curtas que, antes que se tenha pensado em tirar partido de ensinamentos, será firmada a paz." (OCG, p. 105)

     Antes de obcecado pela Sra. de Guermantes, Marcel era apaixonado por Gilberte, que seria a esposa de Robert. É justamente a viúva que Marcel reencontra na recepção dos Guermantes. De início, ele a confunde com a Sra. de Forcheville, i.e., a ex-Sra. Swann, "ela desposara um aventureiro de nome Swann, mas depois se casra com um homem de prol, o conde de Forcheville." (OTR, p. 222), comentam nas rodas sociais. Mas a imagem dos Guermantes seguira no imaginário de Proust, "Mas enfim, apesar de tudo, os Guermantes, assim como Gilberte, diferiam dos outros grã-finos, por lançarem fundas raízes em meu passado, na época em que fora sonhador e acreditara nos homens." (OTR, p. 236)

     Junto a Gilberte de Saint-Loup, Marcel lembra-se de Robert e das várias conversas sobre livros e arte militar, que estão em O Caminho de Guermantes, e de como o falecido oficial enxergava a guera sem-tréguas, a arrastar-se cada vez mais tropas para a morte nas trincheiras. "É fora de dúvida que a guerra não é estratégica, mas antes patológica." (OTR, p. 241) No mais, deixam-se comentar os casamentos (mésalliances) entre nobres e parvenus (arrivistas), tipo a Sra. Verdurin, viúva, a casar com um Guermantes.

     Gilberte se admira que Marcel deixe a 'torre de marfim' do artista para ir a reuniões de sociedade. Para que ele escreva é melhor se recolher à solidão? Ele quer se dedicar ao trabalho, entregar-se à obra. Assim nada de cortesias, ou aceitar convites para jantares - antes deve recolher-se. Conservar amigos, frequentar festas banais, ou recolher-se para criar a obra de arte? Mas haverá mesmo tempo? (Sim, sabemos que houve tempo hábil, justamente com os últimos volumes sendo publicados postumamente.)

     E qual versão das personagens? Qual Sra Swann? Qual Gilberte - das tantas ao longo dos anos? A jovem amiga de Bergotte? A amiga de Marcel ? A viúva de Robert? Todas as personalidades exumadas - reconstruídas - pelas recordações. Em O Caminho de Guermantes, Marcel tem o foco na família dos Guermantes, principalmente a duquesa, presente em suas obsessões. Qual o contato ele tem com os nobres? A única é a amizade com Robert, que ele visitava em Doncières, entre os nobres oficiais, a notar as diferenças entre a nobreza antiga e a do Império [aquela bonapartista, pós-Revolução], e de como as mudanças agem sobre os comportamentos de aristocratas e plebeus. Como os nacionalistas se alimentavam de revanchismos e perseguições, e de como sempre eram precisos 'bodes expiatórios'. Vimos como foi o caso Dreyfus que deixou em foco as questões sociais e de identidade.

"É verdade que o caleidoscópio social estava em vias de virar e que o caso Dreyfus ia precipiar os judeus no último degrau da escala social. Mas, por um lado, por mais que raivasse o ciclone dreyfusista, não é no princípio de uma tempestade que as vagas atingem a maior violência." (OCG, p. 170)

As figuras sociais são variadas, devido às propriedades e ao nível cultural, com nobres cultos e aristocratas ignorantes, com burgueses arrivistas e jovens estudantes que vivem na pobreza. Ter posses nem sempre é ter status ou bens culturais, ainda que quem seja rico pense que pode comprar conhecimento, que pode ser a posse de um estudante numa mansarda. Assim a distância entre um Sr. de Charlus, nobre de casta, e parvenus, tais como as figuras de judeus, o bon-vivant Swann e o literato Bloch. Mas, no salão da Sra. de Villeparisis se encontravam muitos outros, entre nobres, parvenus, artistas, negociantes, bajuladores, hipócritas, rivais, pedantes, e outros seres banais, mas é assim mesmo que é a 'sociedade'.

     Naquela época, Marcel já desejava escrever, mas ainda não era o momento, "não force a Escrita a sair do nada", exortaria um Drummond, ciente das 'lutas com as palavras'. "Se ao menos eu pudesse começar a escrever! Mas quaisquer que fossem as condições em que abordasse esse projeto [...] com arrebatamento, com método, com prazer, [...] o que acabava sempre de sair de meus esforços era uma página em branco, virgem de qualquer escrita, [...]" (OCG, p. 134)

     É num almoço, por convite de Robert, que Marcel é apresentado à amante do jovem oficial, a suposta atriz Rachel. No entanto, o narrador sabe quem ela era, uma 'dama da noite', ou uma 'mulher da vida', com ares de atriz, que ilude o nobre. A elegância de Rachel só é possível na imaginação de Robert, o enamorado (assim como Swann idealizara a Odette, ou Marcel imaginava 'as moças em flor', e a duquesa de Guermantes), que vê o que deseja ver. Rachel é a mesma, mas é diversa para Marcel e Robert,

"Via tudo quanto a imaginação humana pode por atrás de um palminho de cara como o daquela mulher, se foi a imaginação que a conheceu primeiro; [...] Era sem dúvida o mesmo rosto fino e miúdo que víamos Robert e eu. Mas tínhamos chegado a ele pelos dois caminhos opostos que jamais se comunicarão e nunca lhe veríamos a mesma face." (OCG, p. 142)

A ex-prostituta conquistara o sentimental nobre com um 'jogo terrível', a oferecer-se, a prometer-se, enquanto Robert era vítima do amor platônico, a cair na "loucura de fazer de uma mulher da vida um ídolo inacessível", pois a beleza de Rachel é percebida, por Robert, "através dos sonhos que formara", uma vez que é incrível o poder da imaginação, "a ilusão em que se apoiavam as dores do amor que se me afiguravam grandes." (OCG, p. 144)
Robert, um nobre, por tradição preocupado com um casamento rico, se ocupava com uma amante de classe e posição inferior. Assim, como o Dorian Gray, do romance de Oscar Wilde, que tinha prazeres com a classe baixa, tal uma forma de fetiche. Afinal, por que Robert não encontra prazeres em 'seu mundo'? Ele se encontra deslocado meio a nobreza - status que muitos burgueses querem alcançar, frequentando os salões, os saraus, as óperas, para receberem atenção e consideração das classes altas. O jovem nobre nascido na aristocracia não idealiza a própria classe, com a qual convive e tolera, mas aquela dos artistas e literatos. Robert conhecera Rachel nos espetáculos, quando, vendo a atriz iniciante, ele criara uma ilusão - a figura da 'atriz', ser da encenação - e não da Rachel das casas de rendez-vous. Ao vê-la representar, Robert passou a idealizá-la, e esforçar-se por conquistar a atriz.

     Não é diferente Marcel e a duquesa, figura idealizada. Desde a aparição no balcão da Ópera, a duquesa é vista como a inalcançável. Mas finalmente acontece que uma oportunidade se afigura ao jovem escritor: justamente numa reunião na casa da Villeparisis - a qual a avó de Marcel conhecera em Balbec -, a tia de Robert. Mesmo que o status de Villeparisis não seja tão alto quanto de outros Guermantes, mas os salões aceitam figuras de status variados - até artistas de sucesso momentâneo. No mais, a própria Sra. de Villeparisis tem pretensões artísticas (até publicará volumes de suas memórias...), no que é desprezada por outros nobres - mesmo que não se neguem a frequentarem seus saraus.

     Marcel, enquanto narrador, tem noção do idealismo desperdiçado com a duquesa Oriane, que ele encontra diante de si, "Mais tarde, quando ela se me tornou indiferente, vim a conhecer muitas das particularidades da duquesa e sobretudo [...] os seus olhos, onde estava cativo como num quadro o céu azul de uma tarde de França, largamente descoberto, banhado de luz mesmo quando ele não brilhava;" (OCG, p. 183), enquanto ele idealizava até a conversação da nobre, "a sua conversa, profunda, misteriosa, teria uma estranheza de tapeçaria medieval, de vitral gótico. [...] seria preciso que refletissem aquela cor de amaranto da última sílaba de seu nome, aquela cor que desde o primeiro dia me espantara de não encontrar na sua pessoa e que eu fizera refugiar-se ao seu pensamento." (p. 187)

     Os artistas querem conviver com os nobres, que querem conhecer os artistas, assim a duquesa desejava conhecer o escritor Bergotte, a quem Marcel conhecera, desde os tempos em que frequentara a casa dos Swann, em amizade sentimental com Gilberte. Assim, seria fácil conseguir a atenção da duquesa, cujos julgamentos em arte causam repercussão. Aliás, os nobres adoram falar de arte, assim como os burgueses gostam de discutir política e os políticos amam finanças. Banalidades não faltam - nem faltarão - nas conversas de salão. Jogadas políticas, fofocas diplomáticas, caso Dreyfus, revanchismo, lançamentos literários, peças teatrais em cartaz, mais amores idealizados, e logo Marcel percebia que a duquesa não era tão espirituosa, aliás sendo até banal. Ela pouco compreendia das obras literárias e teatrais, "É por uma mulher dessas que todas as manhãs faço tantos quilômetros! Sou até bom demais! Agora sou eu que não quero saber dela" (OCG, p. 206)

     Entre rancores e idealizações, amores e facções partidárias passam-se as gerações. Ora nacionalistas, ora cosmopolitas, ou modernistas, ou conservadores, ora monarquistas, ora republicanos, os frequentadores de salões adoram elaborar teorias e divagações sobre tudo, defendendo ou atacando, com boas pitadas de ironia e de humor espirituoso. Os monarquistas não podem estar entre os dreyfusistas, os antidreyfusistas devem odiar os socialistas, que devem desconfiar dos revanchistas, que detestam os revisionistas, que adoram polêmica, enquanto os anarquistas armam suas bombas, para novos atentados.

     Com o tempo, do Caminho de Guermantes ao Tempo redescoberto, evidencia-se a ascensão dos parvenus: Rachel, a atriz, a amante de Robert de Saint-Loup, a declamar nos saraus - com certa afetação - da princesa de Guermantes, a ex-Sra. Verdurin! Gilberte Swann, a burguesa, filha de um arrivista, é desprezada pelos Guermantes tradicionais, ao mesmo tempo em que a viúva de Saint-Loup despreza a atriz Rachel, do mesmo modo que a ex-cocote Odette, ex-Sra. Swann, atual Sra. de Forcheville, atual amante do Sr. de Guermantes, é desprezada pela nobreza de linhagem - não de mésalliance. Os caminhos de Swann e o de Guermantes se confundem num mosaico de casamentos entre castas, numa troca de favores e posições.

"Assim, no faubourg Saint-Germain, as posições aparentemente inexpugnáveis do duque e da duquesa de Guermantes, do barão de Charlus haviam perdido sua inviolabilidade, do mesmo modo por que mudam todas as coisas neste mundo, [...] Assim se altera a configuração de tudo, assim o centro dos impérios, e o cadastro das fortunas, e a carta dos privilégios, o que parecia definitivo, é perpetuamente reformado, e um homem vivido vê com seus olhos a transformação mais completa justamente onde a crera impossível." (OTR, p. 268)

A srta. de Saint-Loup, a filha de Gilberte, é apresentada a Marcel. A moça é a união visível e corporificada dos caminhos que percorrem todo o ciclo de romances. "E a ela conduziam os dois grandes 'caminhos' de meus passeios e dos sonhos - por seu pai Robert, o de Guermantes, por Gilberte, sua mãe, o de Méséglise, que era o de Swann." (pp. 276-277)

     A reconstituída 'geografia sentimental' de Marcel é delineada em Paris, Combray, Balbec, Donciéres, Tansonville, os nomes das terras, as evocações de juventude, num mosaico de citações e recordações, que possibilita a tessitura das narrativas, a mudanças - ascensão ou queda - de cada personagem,

"Não poderíamos descrever nossas relações, ainda superficiais, com alguém, sem evocar os mais diversos sítios de nossa vida. Assim cada indivíduo - eu inclusive - dava-me a medida da duração pelo giro que realizava em torno não só de si mesmo como dos outros, e notadamente pelas oposições que sucessivamente ocupara em relação a mim.

E, sem dúvida, todos esses planos diferentes, segundo os quais o Tempo, desde que, nesta festa, eu o recapturara, dispunha minha vida, aconselhando-me a recorrer, pata narrar qualquer existência humana, não à psicologia plana em regra usada, mas a uma espécie de psicologia no espaço, acrescentavam nova beleza ás ressurreições por minha memória, pela introdução, na atualidade, do passado intato, tal qual fora quando era presente, suprime precisamente a grande dimensão do Tempo, a que permite à vida realizar-se." (OTR, p. 278)


É então que Marcel se entregará a realização de sua obra, a justificar-se, a vida enquanto narrativa, a "realizá-la num livro", ainda que as dificuldades sejam imensas, e a obra almeje grandes alturas, "como seria feliz quem pudesse escrever tal livro, pensava eu; e que trabalho teria diante de si!" (p. 279), e "Nos grandes livros dessa natureza, há partes apenas esboçadas, que não poderiam ser terminadas, dada a própria amplidão da planta arquitetônica. Muitas catedrais permanecem inacabadas." (OTR, p. 279)

     O autor não pretende negar-se à obra, mesmo que esta seja infinda - é lembrar a própria vida! - mas está ciente de que é a obra que consagra - e justifica - o autor, que deve ser metódico e modesto. "Pregando aqui e ali uma folha suplementar, eu construiria meu livro, não ouso dizer ambiciosamente como uma catedral, mas modestamente como um vestido." (OTR, p. 280)

     A Arte - ele bem sabe - se alimenta do sofrer, assim como a Memória metaboliza o Tempo, numa "lei cruel da arte", "Era a noção do Tempo incorporado, dos anos escoados porém inseparáveis de nós que eu tencionava fazer ressaltar em minha obra." (OTR, p. 291) Obra que ora temos em mãos, para ler e reler, a recolher pérolas entre os caminhos que são traçados, ora paralelos ora superpostos, de vida e escrita, ontem e hoje, vivido e idealizado. Em Busca do Tempo perdido, de Marcel Proust, é uma conquista constante, a cada leitura e releitura, sempre dizendo algo que não tínhamos ouvidos para ouvir antes. Há tempo para cada coisa, cada aprendizado.



mar/16


Leonardo de Magalhaens










Referências


BENJAMIN, Walter. “A imagem de Proust”. Magia, técnica, arte e política. In Obras Escolhidas, I. São Paulo: Brasiliense, 1986.

BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental. (The Western Canon, 1994) trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. Trad. Mário Quintana. 19ª ed. rev. São Paulo: Globo, 1998. (Em Busca do Tempo Perdido, I)

____________ . À Sombra das raparigas em flor. Trad. Mário Quintana. 13ª ed. rev.
São Paulo: Globo, 1996. (Em Busca do Tempo Perdido, 2)

____________ . O Caminho de Guermantes. Trad. Mário Quintana. 11ª ed. rev. São Paulo: Globo, 1996. (Em Busca do Tempo Perdido, 3)

____________ . Sodoma e Gomorra. Trad. Mário Quintana. 14ª ed. rev. São Paulo: Globo, 1998. (Em Busca do Tempo Perdido, 4)

____________ . A Prisioneira. Trad. Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar.
13ª ed. Rev. São Paulo: Globo, 1998. (Em Busca do Tempo Perdido, 5)

____________ . A Fugitiva. Trad. Carlos Drummond de Andrade. 12ª ed. São Paulo: Globo, 1995. (Em Busca do Tempo Perdido, 6)

____________ . O Tempo Redescoberto. Trad. Lúcia Miguel Pereira. 13ª ed. rev.
São Paulo: Globo, 1998. (Em Busca do Tempo Perdido, 7)


SARTRE, Jean-Paul. Diário de uma Guerra Estranha. (Les Carnets de la Drôle de
Guerre, 1983) trad. Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1983.

SHATTUCK, Roger. Marcel Proust. New York: Viking, 1975.

____________ . As Ideias de Proust. Trad. Eliane F. Pereira. São Paulo: Cultrix / EDUSP, 1985.