terça-feira, 27 de setembro de 2016

Meu Cânone -- Clássicos brasileiros







Meu Cânone Ocidental 3


                                                    Clássicos brasileiros


Romances históricos - épicos - míticos




O TEMPO E O VENTO - Érico Veríssimo

dramas da colonização, a política sulista

a figura ambígua de Vargas: estadista ou ditador?


> http://everissimobr.blogspot.com.br/2010/02/trilogia-o-tempo-e-o-vento.html











GRANDE SERTÃO: VEREDAS - Guimarães Rosa

drama da colonização interna, e a amplidão dos sertões
enquanto espaço épico

> http://www.cartaeducacao.com.br/aulas/grande-sertao-veredas-um-jovem-sexagenario/












QUARUP - Antonio Callado

drama da colonização interna

a marginalização dos indígenas [os povos nativos]

política pós-Vargas, a ditadura civil-militar de 1964


> http://lendoaditadura.blogspot.com.br/2015/11/quarup-antonio-callado.html

http://www.passeiweb.com/estudos/livros/quarup











VIVA O POVO BRASILEIRO - J. Ubaldo Ribeiro

drama da História falsificada, mitificada

o mito da cordialidade brasileira a camuflar a luta
entre dominadores e dominados

ver Raízes da Brasil [Sérgio Buarque de Holanda]

http://www.planocritico.com/critica-viva-o-povo-brasileiro-de-joao-ubaldo-ribeiro-1984/

http://www.passeiweb.com/estudos/livros/viva_o_povo_brasileiro












REPÚBLICA DOS SONHOS - Nélida Piñon

dramas dos imigrantes
a questão da identidade - como sentir-se brasileiro?

marginalização do imigrante

ver Anarquista graças a deus [Zélia Gattai]

> http://rascunho.com.br/23893-2/











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segunda-feira, 8 de agosto de 2016

sobre POR QUEM OS SINOS DOBRAM - p 2 - Hemingway






sobre POR QUEM OS SINOS DOBRAM?
[For whom the bell tolls, 1940] romance
do escritor norte-americano Ernest Hemingway [1899-1961]



Missão e paixão num combate entre irmãos




parte 2


    Acontece o ataque aos guerrilheiros liderados pelo partisan chamado El Sordo, que recebera visita de Pilar e Jordan em episódio anterior. O problema é que os guerrilheiros haviam deixado pistas após uma ação para roubarem alguns cavalos. E os guerrilheiros ao lado de Jordan nada puderam fazer - ainda mais com aviões fascistas a patrulharem a região... Não era concebível sacrificar o grupo, tendo em vista a missão de dinamitar a ponte. Nada pode ser feito - as tropas fascistas são superiores em homens e armas.

     Após abater um cavaleiro fascista, Jordan pode ler as cartas recebidas pelo jovem católico monarquista, advindo de regiões ao norte, fortemente anticomunistas (mais do que fascistas...), devido a 'defesa da religiosidade'. A família o exorta a 'enxotar' os perigosos vermelhos... Robert Jordan lê as cartas e discute consigo mesmo, a lamentar ter matado o cavaleiro. Pois é certo matar pela causa, para auto-defesa, ou por necessidade estratégica, mas não matar o próximo, por medo, no que seria um homicídio. Robert não é fanático, não é 'vermelho', mesmo estando sob disciplina destes. Sua educação liberal, seu caráter voluntarista, permite a ele criticar a própria conduta num guerra fraticida, que desrespeita todas as regras - sejam éticas ou bélicas.

Vários intelectuais e idealistas
atuaram no conflito espanhol
ver em
http://www.dw.com/pt/guerra-civil-espanhola-atraiu-artistas-e-intelectuais-de-todo-o-mundo/a-4138474


     Foco desloca-se para a resistência do grupo de El Sordo, que acha difícil aceitar a própria morte, "a morte é inevitável, mas detesto isso", assim, mesmo ferido e encurralado, ele insulta e mata alguns perseguidores fascistas. Fartos insultos em espanhol que resvalam em blasfêmias (pois ferem a austeridade religiosa) de ambos os lados, numa perseguição que somente acaba com a chegada da aviação nacionalista, que bombardeia as posições dos guerrilheiros. Até guerrilheiro comunista começa a rezar... Um massacre! O oficial monarquista vencedor reza para o repouso das almas e manda cortar as cabeças dos mortos!

     A cavalaria nacionalista se afasta após o bombardeio e o velho Anselmo, do grupo de Jordan, pode atravessar a região, onde encontra os restos do massacre, os corpos sem cabeças, e o velho também reza pelos mortos. No fim, a religião concede o único consolo possível. O velho descreve o movimento das tropas fascistas, o quanto se preparam para a contra-ofensiva (não tão secreta assim...) e Jordan resolve escrever um despacho para o comando - afinal, é importante cancelar a implosão da ponte. Enquanto isso, Jordan pensa na estratégia (e blefes) dos nacionalistas - franquistas, falangistas, monarquistas, carlistas - e na complexidade da guerra civil - e lembra-se de outra guerra civil, a americana, sete décadas antes, na qual participara seu avõ, seu exemplo de coragem. Lá os cavalarianos cortavam cabeças, peles-vermelhas tiravam escalpos dos soldados.

     Jordan admira o avô e não o pai, que era um suicida. Será que a segunda geração seria a covarde? O avô conservador tinha um neto democrata que obedece aos comunistas... Jordan não pode pensar apenas na missão, agora que tem o carinho e o calor de Maria ao seu lado, e o amor da mocinha tão ferida no conflito é uma forma de humanizá-lo. Até fazer planos para um futuro incerto - num mundo sem guerras. Antes ele só pensava na 'causa', agora quer saber sobre a vida dos camponeses, dos que resistem ao golpe, dos pais de Maria, republicanos massacrados. O pai de Maria era republicano, um alcaide [prefeito] de cidade interiorana, que, junto com a mãe, foram fuzilados pela Guarda Civil, aliada dos fascistas / falangistas. Jovens da elite da cavalaria espanhola que não hesitam em atos bárbaros, enquanto a violência do povo, e dos 'vermelhos', vem da vingança e da ignorância.

     Jordan medita sobre a grande crueldade, sobre o desejo de domínio, não só em Franco e seus seguidores, mas nos domindaores tias como Cortez ou Pizarro, que massacraram populações da América latina, de cultura pré-colombiana. Como entender tanta cultura e tanta crueldade? E entender é perdoar? Pode-se perdoar os fascistas? Por que um país tão cristão, ao ponto do fanatismo, se fragmentou em tanto sangue? É um país sem reforma - nem religiosa nem social - que vivera sob uma igreja católica corrupta e uma Inquisição incremente. A realidade espanhola é repensada quando de sua chegada ao hotel de Madrid, e seus contatos com comunistas, sejam espanhóis, alemães ou russos. No hotel Gaylord, os comandantes das mais diversas nacionalidades se encontram para decidir o destino da República espanhola, cada vez mais à esquerda. Decisões diante de mapas, ofensivas próximas, avanços ou retiradas em esboço, e a região onde Jordan deve agir. Assim a missão é dada.

     A ação do partisan Jordan é cheia de percalços, desde a precariedade do grupo até a traição de Pablo, que desaparece com os detonadores. Enquanto isso, o mensageiro Andrés segue com o despacho de Jordan para além das frentes de batalha, e passa por momentos de perigo. Jordan indignado com a traição de Pablo, a ponto de amaldiçoar os espanhóis e a guerra fraticida, enquanto o mensageiro coloca vida em risco para cumprir a ordem do partisan enviado pelo comando. Andrés precisa convencer os guardas do governo republicano de que não é um fascista. Não é bem recevido: o exército da República não aprova os grupos guerrilheiros. Não se pode confiar - qualquer descuido e poderá ser morto, fuzilado num paredón.

     Ninguém quer morrer, muito menos Jordan, que deseja uma vida longa, se possível ao lado de Maria, de repente ser um 'homem velho e sábio', pois morrer sem aprender é um um desperdício. Mas ele não hesita nos preparativos para a dinamitação da ponte - mesmo que não tenha certeza sobre as chances de êxito. Ao seguir as ordens, ele poderá colocar todos em risco de morte, e nem conseguir completar a explosão da ponte. Ele sabe que a exaltação é tão inútil quanto a covardia, que se pode ser possuído pela raiva apenas em ação, no combate sem quartel. Então eis que o desordeiro Pablo retorna, arrependido, segundo ele, e com reforços, para provar que não é um covarde. Mas não que o ex-líder Pablo confie no plano e em Jordan, mas apenas quer ação e provar que não tem medo. Nada de agir em prol da 'causa', seja a república ou a revolução.

     Jordan está mais preocupado com a ação, seu êxito, e sua responsabilidade pelos outros - são guerrilheiros que podem morrer por falha dele, ou erro do planejado. Uma coisa é um plano diante de um mapa lá em Madri, outra vem diversa é lidar com vidas em risco. Enquanto Andrés segue com a mensagem, as ordens de Jordan são mantidas, primeiro eliminar os guardas e então dinamitar a ponte. É importante disciplina, e seguir as ordens. O que diminui a responsabilidade pessoal e segue a 'lógica' da guerra. Uma lógica meio desordenada, como pode perceber Andrés que insiste em levar a mensagem até o comando da ofensiva republicana. Sofre com transtornos e congestionamentos do Estado-Maior, o que evidencia a indisciplina do grande exército da República. Mil dificuldades para o despacho chegar às mãos de Golz!

     A cena apresenta as várias divisões dentro das tropas republicanas, com os comunistas atritando stalinistas contra trotskistas, e ambos contra os anarquistas, que diferem dos guerrilheiros (que incluem ciganos, como sabemos), que somente se uniram contra um inimigo comum. Também a chegada das brigadas internacionais tumultua as tropas, uma vez que ocorrem expulsões e até fuzilamentos por motivação política. Ficamos a saber que o Golz tem inimigos no Estado-Maior e nas brigadas, o que fragiliza o comando. Como vencer assim os rebeldes militaristas? As tropas nacionalistas - fascistas e monarquistas - conheciam a geografia espanhola melhor que os estrategistas internacionalistas - assim a tornar inútil qualquer plano traçado sobre mapas que os estrangeiros pouco compreendiam. Os russos discordam entre si, o comandante francês diverge dos russos, e assim por diante, nas oscilações da política. 



 

     O fato é que o ataque não pode mais ser cancelado. A inércia das operações de guerra - deslocamento de tropas, de veículos blindados, de pistas para a aviação, etc - requer longo preparo e logística, em ação cronometrada. Mas Andrés tem uma ajuda, quando a figura do jornalista russo Karkov (lembrado nos flashbacks do americano) aparece para interferir junto ao comando brigadista e liberar o despacho de Jordan. Andrés pode assim seguir até ao comandante Golz, sem a interferência de mais comissários. outro general tenta cancelar a ofensiva republicana, mas é tarde demais, e então o ataque se inicia.


     A ação frenética vem fechar o livro que estendeu três dias de missão e paixão em quarenta capítulos. Tudo se precipita para o fim - na escrita ágil de Hemingway - pois as ordens devem ser cumpridas a qualquer custo. Robert Jordan e os guerrilheiros seguem para matar os guardas e dinamitar a ponte. Com a explosão da estrutura, o guia de Jordan é atingido e morre. Outros guerrilheiros são feridos no tiroteio. Outros conseguem alcançar os cavalos e fugir. Sendo o último da fila indiana, Jordan é atingido por disparos de blindados e tem a perna quebrada sob o peso do cavalo abatido. O que fazer? Se render? Nunca. Antes de morrer - após desesperada despedida de Maria - Robert Jordan precisa alcança forças para abater alguns guardas fascistas que se aproximam. É hora de pagar com a vida o preço do idealismo.


jul/ago/16


Leonardo de Magalhaens



mais info em
https://en.wikipedia.org/wiki/For_Whom_the_Bell_Tolls
http://meialua.gamehall.uol.com.br/por-quem-os-sinos-dobram-resenha-do-livro/



fotos de E. Hemingway [by Robert Capa]
https://pro.magnumphotos.com/C.aspx?VP3=SearchResult_VPage&STID=2TYRYDGO4PBQ


livro on-line em

http://pdbooks.ca/books/english/authors/hemingway-ernest/for-whom-the-bell-tolls/1.html



filme baseado no livro

For whom the bell tolls [1943]
diretor Sam Wood

http://www.imdb.com/title/tt0035896/

http://cinemalivre.net/filme_por_quem_os_sinos_dobram_1943.php


filme sobre a guerra civil espanhola
que mescla realismo e fantasia:
O Labirinto do Fauno [Mex, 2006]
de Guilhermo Del Toro
http://www.imdb.com/title/tt0457430/

https://www.youtube.com/watch?v=0A9TEbbPfik











Referências


HEMINGWAY, Ernest. Por quem os sinos dobram. [For whom the bell tolls] Trad. Luis Paeze. 12ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.




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quinta-feira, 14 de julho de 2016

sobre POR QUEM OS SINOS DOBRAM - Hemingway - parte 1




sobre POR QUEM OS SINOS DOBRAM?
[For whom the bell tolls, 1940] romance
do escritor norte-americano Ernest Hemingway [1899-1961]


Missão e paixão num combate entre irmãos


parte 1

     Nos três primeiros ensaios desta série de Meu Cânone Ocidental (século 20) abordamos obras de autores europeus sobre dramas da realidade europeia, seja a Belle Époque e seu fim, seja o imperialismo britânico sobre os irlandeses, sejam os duelos ideológicos e raciais que levaram à Primeira Grande Guerra, com suas visões universais (são democratas) e particularistas (um francês de ares aristocráticos, um irlandês cosmopolita e um alemão de família burguesa decadente). Agora vamos fazer uma leitura atenta de um romance de autor norte-americano, com um cenário não americano, mas ainda na Europa - cenário importante para o jornalista aventureiro Ernest Hemingway, que lutou na Itália e na Espanha, e deliciou-se em farras na França.

     A diferença de estilos de Hemigway para Proust e James Joyce é semelhante aquela entre a concisão de um Graciliano Ramos e a digressão / invenção de um Guimarães Rosa. (Com a prosa de T. Mann podemos comparar a fase tardia de um Machado de Assis.) A narrativa de Hemingway vai direto ao ponto - com concisão, pouca descrição - apenas quando necessária para a 'cena' - com mais e mais diálogos (e nada de 'tons dissertativos', abundantes nas escritas de Proust e Mann).

     A epígrafe 'Nenhum homem é uma ilha', quem a escreveu foi o poeta inglês John Donne [1572-1631], contemporâneo do bardo William Shakespeare, numa época de conflito de todos contra todos, católicos contra protestantes, cavaleiros contra puritanos, ingleses contra irlandeses. Tudo o que um homem sofre, outro sofre também, pois não estamos isolados, mas numa rede de influências e reações, onde a morte de apenas um diminui a humanidade de todos. 'A morte de apenas um me diminui'. Por quem os sinos dobram? Por cada um de nós.

     Todo o relato se passa em três dias, com diálogos e flashbacks, narrados ou lembrados pelas personagens, durante uma preparação de ofensiva republicana, em maio de 1937, durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). O autor lá esteve e viveu com os combatentes os detalhes militares e psicológicos do estar em conflito. Assim ele pode criar ficcionalmente um protagonista denso, um jovem que tenta manter o 'sangue frio' entre a estratégia da guerra e as vidas que são arrasadas, entre ofensivas e retiradas.

     Robert Jordan, o protagonista, é um jovem de Montana, EUA, professor de espanhol, que visitara antes o país ibérico, sendo criado por família republicana norte-americana, com ideais democratas, antifascistas, mas não de 'esquerda'. É mais um liberal, que admira a disciplina dos comunistas. No momento da narrativa, Jordan está mais preocupado em cumprir a missão que foi dada pelo comando republicano, na figura do general Golz, um soviético. Até onde se deve cumprir as ordens? Em benefício de quem? Como manter os problemas operacionais sob controle e ter disciplina?

     Afinal, as forças da República espanhola estão cercadas por golpistas, sejam fascistas sejam monarquistas, mais armados e disciplinados, enquanto nas fileiras republicanas aumentam as desordens, ordens e contra-ordens, deserções, conflitos entre comunistas e anarquistas, e entre os comunistas, divididos entre stalinistas e trotskistas. haviam também os combatentes voluntários, não necessariamente de 'esquerda', mas todos contra a expansão dos fascismos - apoiados por reforços alemães e italianos (respectivamente sob ordens dos ditadores Hitler e Mussolini), que incluía até aviação de caça e bombardeio.

     Então com a República dividida, poucas armas, com tropas dispersas, contando com apoio soviético - uma vez que outras nações 'democráticas' decidiram não intervir no conflito interno - os guerrilheiros, não alistados no Exército, podem e devem ajudar a articular ataques além das linhas 'oficiais' entre tropas. Guerrilheiros que fizeram sofrer as tropas francesas de Napoleão Bonaparte cerca de cento e poucos anos antes. Muitos guerrilheiros não são ateus - assim como todos os fascistas não eram 'cristãos' - e preservam ideais morais, como 'não devemos matar', pois seria um 'pecado', enquanto os seguidores de Franco, o líder rebelde, desejam conservar justamente a moral e os bons costumes, em nome da fé, da família, da Igreja, do Exército, e do fascismo.

     Robert Jordan encontra-se meio ao conflito, e demora a compreender o jogo de forças e em quem deve confiar. Ele tem ideais e percebe que a guerra não se guia por ideais, mas por interesses. O que ele quer é cumprir com seu dever, cumprir a missão, defender a República, que é democrática, e não aos interesses de grupos - republicanos contra facistas, comunistas contra anarquistas, stalinistas contra trotskistas - que podem fragmentar ainda mais a nação. Muitos guerrilheiros estão com a República, pois odeiam a hegemonia fascista e o poder do clero, mas muitos não confiam nem na 'esquerda', nem na 'direita', assim o exemplo dos ciganos, sempre à margem do processo histórico (assim como os povos indígenas na América, com o avanço dos povos europeus, sejam ibéricos ou anglo-saxões).

     Os guerrilheiros não possuem a necessária ordem hierárquica, centralizada, dos rebeldes fascistas [os falangistas], que acabam por dominar áreas inteiras, a isolarem posições republicanas, que precisam de mais ofensivas, para abrirem 'corredores' para unirem as tropas. Logo, é preciso mais do que 'boa vontade', ou propósito de apoiar o governo legítimo da República, e Robert Jordan sabe bem disso. Enquanto isso, as violências, a crueldade, aumentam em ambos de lados, com assassinatos, chacinas, conflitos entre guardas e camponeses, entre camponeses e clérigos, entre fascistas e anarquistas - numa guerra entre irmãos, entre vizinhos, um corpo a corpo sem quartel - cruel luta de classes !

     Lembrar que o conflito espanhol foi um verdadeiro 'ensaio geral' para a Segunda Grande Guerra, com os campos ideológicos de 'direita' e de 'esquerda' não hesitando em usar as armas as mais mortíferas - rifles automáticos, morteiros, aviação de caça e de bombardeio - que provocou a tragédia na cidade de Guernica, ao norte da Espanha, em abril de 1937, pouco antes da cena que abre o romance, num massacre de civis que inspirou o famoso quadro 'Guernica', de Pablo Picasso.





     No plano narrativo, o Narrador que tudo sabe - antes e depois - ora segue a voz (e a mente) de Robert Jordan, ora a voz de Pilar, uma das guerrilheiras, ora a perspectiva de outras personagens secundárias (sejam guerrilheiros, ou guardas fascistas). Ocorrem assim narrações dentro da narrativa, com as vozes que complementam a voz e os pensamentos do protagonista, que não sabe de tudo, não pode antever seu futuro. Além do mais ele é um estrangeiro, que não participa da luta de classes. Sim, que classes? Temos os padres, os proprietários, os aristocratas, os militares - todos apoiam uma Espanha aos moldes monarquista-fascista - são os 'Dom' alguma coisa, com status e privilégios, que se julgam os 'cruzados' contra os materialistas-marxistas.

     Os camponeses, os assalariados estão seduzidos pelos discursos democratas, socialistas, comunistas e anarquistas - em prol das comunas - e assim são potencialmente revolucionários. Enquanto isso, as classes médias, os pequenos proprietários, os políticos, os demagogos, os moderados de todo tipo - apoaim a República democrática - mas até um determinado ponto - se o governo mostrar fraqueza, estes mudam de lado (muitos burocratas passaram de republicanos para franquistas...) quando o conflito mostra quem está melhor armado. As classes intermediárias estão desarmadas e dispersas, enquanto os radicais - os fascistas e os comunistas - mantêm a disciplina e recebem os apoios de alemães, italianos e de russos, respectivamente.

     Para aumentar a confusão temos os voluntários estrangeiros, os 'brigadistas', que são democratas e anti-fascistas, mas não são todos socialistas ou comunistas (aqui divididos entre stalinistas e trotskistas), nem concordam com o anarquismo, ou com a ação guerrilheira. Todos querem evitar a disseminação irracional dos regimes fascistas. Mas dentro das tropas de 'esquerda' predomina a desconfiança. (Mas, no lado oposto, as várias facções da 'direita' souberam se unir - para defenderem interesses e privilégios próprios!)

     A República legítima lutava contra o fascismo europeu, não apenas contra rebeldes, as tropas de Franco - vindas de além-mar, da África espanhola - e de guarnições internas - que sem apoio de Hitler e Mussolini não teriam vencido, com tamanha barbaridade. Aliás, barbárie de um lado e de outro - tanto republicanos quanto monarquistas, tanto socialistas quanto fascistas - que matam os irmãos em nome de ideologias ! Com uma diferença que se mostrou decisiva: os fascistas mais armados e disciplinados, com amplo apoio aéreo.

     Mas será tudo permitido para evitar a queda da República? Onde os limites da moral? Ou a moral somente atende aos interesses dos conservadores monarquistas? A guerra (e a guerrilha) deve seguir certos ordenamentos e regras - ou mergulharemos na barbárie! Assim é a voz de Pilar, a guerrilheira, ex-amante de toureiro, que vem trazer os relatos das ações revolucionárias, com os camponeses guiados pelos guerrilheiros para o 'justiçamento' dos proprietários fascistas - cena sangrenta e sem disciplina, que culmina no massacre de pessoas condenadas apenas por causa de suas posses (não que não existissem fascistas entre eles, mas não era assim a revolução...).

     Pilar narra para Jordan o caso do 'justiçamento' e o protagonista lamenta que a guerrilheira não possa escrever! ele quer achar sentido em tanta matança, e saber se é possível aprender com a guerra. Ele se sente deslocado naquele conflito fraticida, onde o orgulho espanhol vitima os próprios espanhóis, que têm um desejo de serem mártires. Jordan não é heroi, não tem tendência para ser mártir, sendo desprovido de fanatismo. Tanto que, em plena missão, ele tem tempo para se envolver amorosa e sexualmente com uma moça, resgatada pelos guerrilheiros. Sendo de família republicana, a moça foi espancada e violentada pelos fascistas, que dominaram sua cidade. Há todo um intermezzo amoroso, após a narrativa dentro da narrativa.

     Em seguida, depois da entrega amorosa, Robert se enfrenta num longo desfile de pensamentos, num trecho lírico e intimista, bem introspectivo, do romance. Como é conduzida a guerra? Quem está no comando? Deve se cumprir as ordens, ou zelar pela vida? Afinal, ao continuar com a missão - a de explodir uma ponte - ele deixa em risco sua própria vida e ameaça todos os guerrilheiros da região. Ele sente que deve cumprir a ordem, ter vitória, e voltar para os Estados Unidos, onde voltará a ser professor de espanhol. Mas ele sabe que não será fácil sair vivo do ataque - então, sua paixão deve ser intensa agora, pois será breve. Em três dias, ele deve amar a moça Maria com a intensidade de uma vida inteira.

     Enquanto os guerrilheiros se preparam, com poucas armas e suprimentos, escondidos em cavernas, na região montanhosa, a temerem constantemente a aviação fascista - que não hesita em destruir cidades inteiras! - eles comentam sobre o passado. Pilar é ex-amante de um toureiro e deixa-se a lembrar de touradas, onde os homens desafiam a morte como um jogo - aqui lembramos também de outra obra de Hemingway, seu primeiro romance, O Sol também se levanta [The sun also rises, 1926], a retratar o pós-Grande Guerra, com sua lost generation, em cenas de festas em Paris e touradas na Espanha.

sobre a lost generation [geração perdida]
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lost_Generation
http://www.saraivaconteudo.com.br/Materias/Post/49136
http://www.revistabula.com/2523-eterna-meia-noite-em-paris/
http://anosloucos.blogspot.com.br/2009/11/achados-da-geracao-perdida.html


meu artigo sobre O Grande Gatsby, de Fitzgerald
http://meucanoneocidental.blogspot.com.br/2013/08/sobre-o-grande-gatsby-de-fitzgerald-p1.html


     As cenas de tourada, com paixão, desafio e sangue, muito sangue derramado, é o preâmbulo para as cenas de ação, com os guerrilheiros tomando suas posições, a observarem os movimentos de tropas, próximos aos pontos de guarda fascistas. O guia se sente inseguro, reclama da indisciplina, enquanto os fascistas se sentem confiantes, com uma aviação que julgam 'insuperável'. O velho guia, um republicano, lamenta as tantas mortes, e julga que a matança exige uma expiação, uma reparação. Seu pensar e sentir é ainda religioso, pois o ato de matar seria um 'pecado'. Após a guerra, caso os comunistas vençam, como substituir a Igreja, com sua hierarquia e poder de 'perdoar'?

     No mais, a rebaixada condição da mulher na Espanha, com uma tradição meio islâmica, meio medieval, de fanatismo católico, com tons sombrios de misoginia, onde a mulher cuida da cozinha e da limpeza. A mulher faz a comida e deve comer apenas após a refeição dos homens. Mesmo entre os guerrilheiros é assim. Uma exceção é Pilar, que tem controle, que manda mais que o marido Pablo, ao coordenar as ações do grupo. Quanto aos comunistas, estes pregam a igualdade, e muitas mulheres ocupam cargos em fábricas e nas forças armadas, mas como implantar esta igualdade numa sociedade demasiadamente hierarquizada como a espanhola?

     Jordan não teme os fascistas na América, mas não pode ele prever os nacionalistas exaltados, como os macartistas dos anos 1950, que encontravam 'ameaça comunista' em tudo o que viam. Depois, o aumento do militarismo, com a Guerra do Vietnã, nos anos 1960, e a ascensão dos 'falcões', os belicistas do Pentágono, que, sejam republicanos ou democratas, estão sempre conduzindo as tropas norte-americanas aos campos de batalha. Por ora, ele deve temer pela derrocada das democracias na Europa do pós-Grande Guerra. Assim, é justificado o temor, e a covardia, do guerrilheiro Pablo, líder esquerdista, fanático e cruel, que reconhece a falência da República e a vitória dos fascistas.


     As democracias se implodem por suas incompetências e manias nacionais. Os espanhóis sofrem com a burocracia - e os franceses com a diplomacia, os alemães com o militarismo, e os ingleses com o imperialismo decadente - e as diferenças e antagonismos dentro do próprio governo legítimo. São explícitas e temerosas as diferenças dentro de um pequeno grupo de guerrilheiros ! Imaginemos então dentro de um governo em conflito, cercado por todos os lados, sem apoio das democracias, e a depender dos estrategistas soviéticos!

     Mas Robert Jordan não se pode dar ao luxo de pensar em estratégia ou geopolítica: sua prioridade é cumprir as ordens do soviético Golz, deve dinamitar a ponte, no início da ofensiva republicana. Os partisans, os voluntários, tais como ele, não podem se distrair, de desviar de suas responsabilidades, ainda mais perigosas, pois eles atuam por detrás das linhas inimigas, em espionagem e sabotagens [em breve, veremos esta ação 'por detrás das linhas' com maior amplitude nas ações de resistência dos partisans contra a ocupação nazi-fascista, na Iugoslávia e na França, durante a Segunda Guerra Mundial [1939-1945].

     Num extenso flashback, temos a chegada de Jordan ao 'quartel-general' dos republicanos e comunistas num hotel de Madri, capital espanhola. Lá estão os chefes, em intrigas entre eles mesmos, entre propaganda partidária, em embates entre stalinistas e trotskistas, que refletem as disputas da própria URSS, que em breve teria pouco de 'soviética' e de 'socialista', se concretizando um sistema burocrático, a privilegiar uma 'elite' de funcionários, a Nomenklatura. Jordan percebe as diferenças entre o que os comunistas pregam e o que eles praticam, percebe a teia de mentiras em que se envolveu, apenas para defender uma República democraticamente legítima, mas instável, condenada desde dentro - lembrar que o general rebelde Franco dizia que na capital Madri existia uma 'quinta coluna', os reacionários, os derrotistas, os cínicos, que o apoiariam quando ele chegasse no avanço das outras quatro colunas de tropas.

     Enquanto as preparações da ofensiva republicana se avolumam, e os preparativos do grupo guerrilheiro, outros intermezzos e flashbacks acontecem, ora na mente de Jordan, ora na mente de Pilar, e entre tramas políticas e cenas de touradas, acontecem encontros amorosos, apaixonados e desesperados entre Jordan e a moça Maria. São poucos dias no meio da guerrilha e o partisan sabe que nada pode dar errado - nem individual nem coletivamente. Sua paixão não deve interferir em sua missão. Ele não pode ser um fracassado como fora seu pai, antes deve se guiar pelo exemplo heróico do avô, que lutou na Guerra de Secessão, a guerra civil norte-americana, entre 1861 e 1865.

     No segundo dia, a presença da cavalaria fascista que deixa os guerrilheiros em prontidão. Numa guerra civil, pouco se pode confiar em alianças. Os grupos guerrilheiros precisam ser independentes, agirem por conta própria, sem coordenação com outros grupos. O que tem a desvantagem de impedir 'cadeia de comando' e disciplina. E a guerra civil não poupa ninguém, pois "a guerra veio para todos", e a guerrilha assume a posição defensiva, de não atacar, afinal o armamento dos fascistas é superior. E Jordan deve se pautar pelo 'plano', ora sua ação não tem sentido fora de uma estratégia! Explodir a ponte é parte de um todo - a ofensiva - e a matança (se houver) será apenas um incidente, um desvio do plano.Jordan aceita - e tolera - a violência apenas quando necessária na estratégia. Para os outros, já embrutecidos pela matança, um inimigo morto é um inimigo a menos.

     Não há conflito imediato : os cavaleiros fascistas (vindos da região norte do país) se aproximam, andam em busca de um soldado abatido, não notam os partisans todos camuflados, e os recém-chegados se afastam em outra trilha. Depois passa um corpo de cavalaria de vinte homens. A ação moderada de Jordan manteve a disciplina e evitou derramamento inútil de sangue. Não se deve fanatizar nem idealizar os combates - não se julgar por esquerdismos ou direitismos - no que será um prenúncio de um conflito maior (que sabemos ser a SGM, já mencionada) Não demonizar o inimigo, não fuzilar sem julgamento, evitar a violação de mulheres, tudo para sanear o país após o conflito. A esquerda promete uma reabilitação pelo trabalho, mas foi a direita que aplicou o trabalho forçado, inclusive para a construção de enorme mausoléum.


[continua]









jul/16


Leonardo de Magalhaens



mais info em

https://en.wikipedia.org/wiki/For_Whom_the_Bell_Tolls

http://meialua.gamehall.uol.com.br/por-quem-os-sinos-dobram-resenha-do-livro/


livro on-line em

http://pdbooks.ca/books/english/authors/hemingway-ernest/for-whom-the-bell-tolls/1.html



filme baseado no livro

For whom the bell tolls [1943]
diretor Sam Wood

http://www.imdb.com/title/tt0035896/

http://cinemalivre.net/filme_por_quem_os_sinos_dobram_1943.php








Referências


HEMINGWAY, Ernest. Por quem os sinos dobram. [For whom the bell tolls] Trad. Luis Paeze. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.



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quarta-feira, 29 de junho de 2016

sobre A MONTANHA MÁGICA - de Thomas Mann - P3





sobre A Montanha Mágica [Der Zauberberg] 1924
do escritor alemão Thomas Mann [1875-1955]


Um duelo de ideias e ideologias nas alturas

parte 3

     Continuamos com as 'operações espirituais' [operationes spirituales] onde saberemos mais sobre o professor de origem judaica que se converteu ao catolicismo ao aderir a ordem dos jesuítas. Leo [Leib] Naphta fala sobre seu pai Eliah, um schochet, ou açougueiro ritual, que segue os preceitos do Talmude. A ideia de devoção, de ritualismo, sempre esteve na infância de Naphta, em sua aldeia lá na Galícia [na Europa central, hoje entre a Polônia e a Ucrânia], onde seu pai era rigoroso na tradição. Tanto que a insatisfação popular contra os judeus, numa acesso de fúria, ou pogrom, martirizaram Eliah Naphta, o açougueiro de 'olhos estelares'.

     Leib, ou Leo, é educado no ensino rabínico, no hebraico e nas línguas clássicas, a mostrar dons intelectuais bem elevados. Daí surgiram divergências, muitas críticas, e logo insubmissão. Contatos com o socialismo e a crítica social. Logo, Leib é renegado e expulso por seu mestre rabino. Então com dezesseis anos, Leo trava conhecimento com o padre Unterpertinger, um jesuíta, hábil pedagogo, num banco de parque. Eles falam sobre teologia, Marx, Hegel, sendo que este último, apesar de ser 'oficialmente' um protestante, tem uma filosofia de tom católico, para o jovem Naphta, algo operante, de produzir efeitos exteriores, uma política psicologicamente ligada ao catolicismo.

     E para Naphta no jesuitismo torna-se clara a natureza política e pedagógica do catolicismo. Para ele o tom católico é de objetivismo, de uma doutrina de ação. Até o protestante Goethe mostra-se 'quase jesuíta' no seu papel de educador. Assim, Naphta é convidado pelo jesuíta para visitá-lo no Instituto Stella Matutina. O narrador ressalta as contradições da personagem, um revolucionário com jeito aristocrático, com propostas socialistas, mas ambições elitistas. [Interessante lembrar que o revolucionário bolchevista, depois sangrento ditador, Joseph Stálin foi seminarista, e igualmente expulso.] Naphta prefere ver a religião organizada - aqui o Catolicismo - como uma 'potência espiritual', contrária às ambições mundanas, logo assim 'revolucionária'.

     Naphta considera o judaísmo mais próximo do catolicismo do que do protestantismo, daí ser mais fácil um judeu converter ao papismo que ao subjetivismo luterano. E Naphta, o jovem desamparado e ambicioso, busca essa conversão, por instinto, entrega-se a um misto de disciplina e elegãncia, cultura e espiritualidade, zelo e discrição. Seu desejo é pertencer a Ordem com suas 'operações espirituais', suas ponderações e introspecções. Mas ele não quer contemplação, mas auto-superação, sacrifício, abnegação. Mas, aos vinte e três anos, a doença pulmonar de Naphta se manifesta e ele não pode prosseguir em sua carreira no subdiaconato. Daí sua internação em Davos, estando ali cerca de uns cinco anos.


mais sobre a figura contraditória e cruel de Iossif Stálin
em http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/stalin_uma_lenda_fabricada_sob_medida.html


     Hans Castorp, ao saber da vida de Leo Naphta, suas batalhas contra a sociedade e a doença, associa três pilares que aproximam as ordens militar e jesuíta, a saber, o ascetismo, a hierarquia e a disciplina. Pois, para Hans, os jesuítas nada mais são que uma ordem militar religiosa, onde alunos obedientes seguem uma hierarquia, onde são 'oficiais ambiciosos', cuja intenção é distinguir em serviço. E a luta para a vinda da 'Cidade de Deus' necessita de um 'cosmopolitismo cristão' além de todo patriotismo, e de um ascetismo além de família e do apego à saúde. Tais censuras atingem diretamente a pedagogia humanista de Settembrini.

     Num passeio na neve, os febris interlocutores discorrem sobre a morte recente de outra habitante da 'montanha mágica', e Hans çamenta não ter sido avisado a tempo de comparecer aos funerais, assim ele dedica 'palavras à sua memória' e defende a 'reverência cristã' diante do infortúnio. Surge aí um estopim para o debate entre a caridade religiosa de Naphta e a caridade humanitária de Settembrini. Para o ex-seminarista o importante de haver pobreza é estimular a caridade - e uma reforma social teria privado os afortunados de darem esmolas !

     Então Settembrini, febrilmente, discorda de tal ideia, tudo referente a sagrado, ou reverência, tudo 'engano psicológico', viver de compaixão, conviver com o sofrimento alheio, medo de cair em desgraça. O italiano insiste que não faz sentido uma dignificação do enfermo, devido a sua enfermidade, pois a doença traz apenas vergonha, causada pela debilidade do corpo. A mente não é sã num corpo insano, daí a loucura, que é ocultada [ao se esconder dementes em hospícios].

     Diverso de Settembrini, o religioso aceita a miséria do corpo, o sofrimento que deve levar à expiação, pois sofrer lembra-nos nossa condição decaída. A beleza, o culto estético, é uma ofensa à consciência. É aceitável mortificar o corpo para glorificar a alma. Naphta aceita a violência, enquanto disciplina, que é desprezada por Settembrini, contra o castigo corporal, seja em nome da pedagogia ou da justiça. Naphta defende a flagelação, o sofrimento, e acha que são os prazeres que enfraquecem a alma em sua elevação espiritual. Para Settembrini, no açoite só há indignidade e humilhação. Novamente a discordar do italiano, o judeu-jesuíta lembra que a dignidade, a qual se refere o pedagogo, é aquela que surgiu do individualismo da era liberal burguesa, quando se precisa de mais disciplina e obediência.

     Ainda no assunto morte, o pedagogo prefere a cremação dos cadáveres, e o esvaziamento dos cemitérios, ambiente pouco higiênicos, mantidos apenas por um 'caráter sagrado'. É lugar de luto e morbidez. Mas o jesuíta insiste que sem o culto da morte "não haveria arquitetura, nem pintura, nem escultura, nem música, nem poesia." E Settembrini prefere a estética da vida, a dignidade da arte, não as experiências que sobrecarregam a morte, um mero fenômeno fisiológico. Terrível mesmo é a morte sob torturas - vide a Santa Inquisição... Naphta defende que não havia condenação sem confissão, e que a 'alma obstinada' sofria tortura no corpo como modo legítimo de confissão. Settembrini não aceita a violência para obrigar a uma confissão, como se fosse um 'serviço caridoso' de expiar pelo tormento. O italiano é contrário à pena de morte, um homicídio legalizado, onde o Estado se atribui o uso da violência.

     Naphta não está preocupado com os direitos humanos, com a preservação do indivíduo, pois sua crença é numa coletivismo devocional, suprapessoal, universal [daí católico, do grego καθολικός , 'katholikos'], onde uma vida pode ser sacrificada em nome de algo superior, uma crença, e o culpado deve ser disciplinado, visto que o assassino não deve sobreviver à vítima. O importante é a fé, a reverência, o olhar na infinitude, não se levar por promessas de progresso do mundo burguês, de moralidade aparente e efêmera. Mas Settembrini defende que o indivíduo digno ergue críticas a um coletivismo 'absorvente e nivelador'. Contudo, Naphta acha que a moralidade burguesa é pragmática para alcançar os interesses de satisfação, numa ética meramente de caráter burguês (aqui o aristocrata em Naphta tem um tom de desprezo...). Settembrini não vê vantagens em títulos e hierarquias, mas na distinção do indíviduo digno, "digno de viver e digno de amor".

     Quanto a temática doença, Naphta acha que a condição humana é enferma, que se progresso existe é em aprender com a doença. E que os sadios vivem de descobertas e conquistas feitas pelos enfermiços. E Cristo já dizia que os sãos não precisam de médicos, que a graça vem para os que necessitam de saúde. A enfermidade e a morte trazem a meditação sobre a finitude, portanto são nobres. O viver a vida pela vida é futilidade. No mundo burguẽs importa os interesses individuais, não o transcendental, enquanto o ensino jesuíta vem a favor do ascetismo e do desprezo do Eu. Como defender a dignidade crítica?

     De um lado temos a busca do conhecimento e o método de pensamento, a valorização do humano e da vida utilitária, de outro a espera da Revelação Divina, a ascensão ao Transcendental, a pregação da austeridade, e a vida abnegada e disciplinada. Cada pregador tem suas virtudes e 'pecados', suas ambiguidades e contradições - que tanto o narrador quanto Hans percebem bem. Settembrini é modesto, livre sexualmente, puritano intelectualmente; enquanto Naphta é um puritano sexualmente, e um herege ideologicamente. O comunista cristão num aposento de luxo enquanto o humanista liberal vive num mísero cubículo, debaixo de um telhado. Onde a posição de coerência, de conciliação? Certamente não seria a 'coletividade niveladora' nem o 'individualismo burguês'. Tantos conceitos e ideologias apenas causam a confusão de valores, o declínio da ordem moral, nossa crise da modernidade.


     Eis a chegada do inverno, com o mundo das alturas envolto em neve, um frio glacial a entorpecer a paisagem. Hans, no seu 'hábito de não se habituar', insiste em seus passeios pela montanha, agora devidamente equipado com seus esquis. E o jovem recebe o apoio do pedagogo, pois Hans não deve se deixar abater pela doença. Mesmo um moço civilizado, filho da planície apressada e ambiciosa, Castorp se simpatiza com os elementos naturais, onde encontra solidão - e certa angústia no isolamento e no silêncio. O que o espera além de uma 'solidão cheia de aventuras'?

     Hans admira o mundo da neve, sua presença, sua dança, sua arquitetura minúscula, que pode ser tão belo e tão hostil a vida. A natureza pode ser bela e ameaçadora - ainda mais nos ambientes extremos como aqueles de selva, de deserto ou de desolação gélida. Assim, de repente, a dança dos flocos de neves se acelera, se adensa, e eis a nevasca a surpreender o jovem, que se vê em 'trevas brancas', num atitude de desafio, quando excitado e cansado, admirado e revoltado com a fúria dos golpes de neve. [Lembramos dos contos do norte-americano Jack London (1876-1916) na fúria gélida do Alasca, onde qualquer descuido ou erro humano pode ser fatal num ambiente hostil - lá o ser humano se potencializa e se supera, caso contrário sua perdição é imediata...]

     Hans encontra-se realmente perdido na neve, em círculos, em esforço constante e inútil, e passa a sofrer devaneios e delírios, como num caleidoscópio de fatos já vividos, em sonhos e pesadelos, a visualizar um paraíso às margens do mar do Sul, o mediterrâneo, com um belo templo, onde ocorrem abominações. [Assim lembramos do delírio de agonia do escritor-póstumo Brás Cubas, em Memórias Póstumas, a obra-prima do brasileiro Machado de Assis (1839-1908), que galopa num hipopótamo, rumo ao encontro com a figura da Natureza, que tudo absorve, sem clemência.] No sonho-pesadelo de Hans, ele encontra a 'Grande Alma', da qual ele é mera partícula, fagulha de vida num mundo de doença e morte.

     Não apenas Hans, mas o ser humano, é 'filho enfermiço da vida', de modo que qualquer teoria ou ideologia se perde em garbosa retórica, assim como a medicina usa um latim pomposo para se referir às fisiologias e às enfermidades. Hans resolve não aderir nem à devoção de Naphta nem ao moralismo liberal de Settembrini, mas viver longe de oposições, de extremos, mas a decidir, em respeito a si mesmo. Não só a coletividade mística nem o individualismo sem rumos. O ser humano deve se erguer acima de suas condições, ser mais nobre que suas misérias, a fundamentar sua liberdade a partir de suas limitações. Diante da morte - mesmo um grande poder - deve se valorizar a vida, através do amor, não só da razão. Não devemos dar espaço para pensamento de morte.

Não concederei à morte nenhum domínio sobre meus pensamentos. Pois se mantém a bondade e a caridade, e em nada mais. A morte é um grande poder. Tira-se o chapéu e se anda nas pontas dos pés em sua presença. [...] Amor e morte - eis uma rima ruim, uma rima falsa e ultrajante! O amor permanece no caminho da morte, apenas ele, não a razão, é mais forte que ela. Apenas ele, não a razão, concede bons pensamentos. Também forma é apenas a partir do amor e da bondade: forma e comportamento civilizado de uma comunidade fraterna e sensível e correto estado humano - na calma visão diante de um repasto sangrento. Oh, assim está claramente sonhado e bem regido! Eu quero pensar nisso. Eu quero à morte manter lealdade em meu coração, mas bem me lembrar que lealdade entre a morte e o passado é apenas maldade e sombria volúpia e hostilidade, a dominar ela o nosso pensamento e governo. O ser humano, pela bondade e pelo amor, não deve conceder à morte qualquer domínio sobre seu pensamento. [pp. 661-662]


[Ich will dem Tode keine Herrschaft einräumen über meine Gedanken! Denn darin besteht die Güte und Menschenliebe, und in nichts anderem. Der Tod ist eine große Macht. Man nimmt den Hut ab und wiegt sich vorwärts auf Zehenspitzen in seiner Nähe. [...] Tod und Liebe, – das ist ein schlechter Reim, ein abgeschmackter, ein falscher Reim! Die Liebe steht dem Tode entgegen, nur sie, nicht die Vernunft, ist stärker als er. Nur sie, nicht die Vernunft, gibt gütige Gedanken. Auch Form ist nur aus Liebe und Güte: Form und Gesittung verständig-freundlicher Gemeinschaft und schönen Menschenstaats – in stillem Hinblick auf das Blutmahl. Oh, so ist es deutlich geträumt und gut regiert! Ich will dran denken. Ich will dem Tode Treue halten in meinem Herzen, doch mich hell erinnern, daß Treue zum Tode und Gewesenen nur Bosheit und finstere Wollust und Menschenfeindschaft ist, bestimmt sie unser Denken und Regieren. Der Mensch soll um der Güte und Liebe willen dem Tode keine Herrschaft einräumen über seine Gedanken.]



Reunindo suas forças, Hans começa seu regresso, donde segue até a aldeia, onde se reencontra com o Sr. Settembrini, a quem narra suas aventuras na neve, e depois volta ao repouso do sanatório.

     As mudanças na vida de Hans na 'montanha mágica' são motivadas principalmente pelo retorno de seu primo Joachim, acompanhado pela mãe, após manobras do exército lá na 'planície'. Parece que o estado de saúde de Joachim se agravou devido aos exercícios militares e ele deve ser novamente habituado ao regime comer e repousar lá no sanatório. Agora é Hans que o recebe fraternalmente. Joachim precisa aderir novamente à rotina dos comensais, aquelas conversas de civis, enquanto mantém sua discrição e boa educação. Seu formalismo aumenta com o agravamento da doença - e ele pouco acompanha das discussões entre os professores com suas retóricas, a empolgação humanista do italiano - que descobrem ser franco-maçom, com todas as suas sutilezas e mistérios - e o tom solene do comunista-jesuíta, descrente na capacidade humana de progresso.

     A recaída doentia de Joachim - e a reação de Hans - é o tema deste tópico final do extenso capítulo VI, um fim de vida para um e fim de etapa para outro, com seus aprendizados para o primo sobrevivente, que descobre o quanto o militar manteve coerente e disciplinado mesmo diante da morte que se aproxima. O Dr. Behrens ressalta esta característica do caráter viril do 'tenente' Ziemssen, que falta à personalidade de Hans, que é ambíguo e até hipócrita. Joachim sabe que sua morte é certa e mantém sua disciplina, sua visão de mundo ordenado, sem se desesperar. A única diferença é que ele se deixa em diálogo com uma certa senhorita, a quem nunca ousara abordar antes. Diante da morte ele perde a discrição e a timidez - e será sua última oportunidade. Logo, Hans informa a tia dos avanços danosos da doença, e esta vem ajudar o filho em seus últimos dias.

     Joachim mantém a dignidade até o fim, e quando começa a delirar sobre sua carreira e patente, sobre as manobras do exército, e em seu momento de agonia, de olhos vidrados. O primo Hans se adianta para fechar-lhe as pálpebras. Enquanto, nos funerais, o italiano lamenta a perda de um tão digno companheiro, o jesuíta lembra da seriedade da morte, e o Dr. Behrens polemiza que o militar se excedeu, ao não ouvir os conselhos, e voltar para as manobras militares. Ele desafiou a morte, e como bom soldado, aceitou-a como prẽmio ao final.

     O capítulo VII é também longo e vem fechar o romance, com a adição de uma personagem importante, a figura excẽntrica e dionisíaca do comerciante holandês Pieter Peeperkorn, a acompanhar a sedutora Madame Chauchat. Mas o que ocorre antes? Vejamos. Indagações, divagações, meditações e mais devaneios sobre o tempo e sua real irrealidade, nossas mudanças na percepção do tempo, as transformações na 'visão de mundo' de Hans Castorp, entre leituras, refeições e repouso. Pois "o tempo é o elemento da narrativa" [p. 721] O tempo passa pontualmente, com certa marcação, mas aos nossos sentidos ele pode ser elástico, se contrair ou estender - e nem entremos em questões de física da relatividade einsteiniana. Hans lembra-se de andanças pela praia, em divagações sobre a imensidão do mar, a infinitude... O tempo avança e recua com as ondas do mar... Vastidão: eternidade ... No mais, podemos comparar estas lembranças, e pensamentos profundos, com a cena do meditativo Stephen Dedalus, ao longo da praia dublinense, no episódio 3 [Proteus] de Ulysses, de James Joyce.

artigo sobre Ulisses em
http://meucanoneocidentaltres.blogspot.com.br/2016/05/sobre-ulisses-de-james-joyce-parte-1.html


À espera do retorno de Clawdia Chauchat - em suas viagens pela Europa, de oriente a ocidente, longe dos olhares do povo da 'montanha' - Hans não pode prever que sua musa voltará em companhia de uma 'personalidade' a galvanizar todos os comensais. Chamado de Mynheer Peeperkorn, o holandês logo se apresenta em modéstia ou discrição a atrair admiração ou inveja de todos, mas nunca indiferença. Ele fala sobre si mesmo em terceira pessoa e não poupa palavras para elogiar a vida - suas belezas e suas comidas. A volta de Clawdia, com o excêntrico senhor, surpreende o ansioso Hans, mas ele se mantém calmo e não se humilha. 
 




     Hans tenta sufocar seu desdém por Mynheer Peeperkorn, e é abordado pela Madame Chauchat, a trocarem palavras ambíguas, para que então o jovem seja apresentado a semelhante 'personalidade'. O holandês então propõe uma imensa mesa de jogo para reunir os hóspedes - e alegrar o ambiente. Todos se animam diante da presença radiante de Peeperkorn, sua alegria em viver, em gozar as delícias da vida, mesmo com suas doenças e limitações. Nunca se sente derrotado, nunca se perde em metafísicas. Mesmo embriagado, o Mynheer é espirituoso, majestoso e grandioso. Ele é dionisíaco [segundo os critérios de Nietzsche] diante dos professores cheios de retórica, os eruditos Settembrini e Naphta, sendo mesmo um 'contraponto' a ambos.

     Por fim, Hans procura agradar ao Mynheer, a tropeçar em racionalismos, pois além do intelecto e do 'espírito', da solenidade e da retórica, a vida pede entusiasmo, exige ebriedade, como já dizia o poeta francês Charles Baudelaire, "embriagai-vos, é preciso estar embriagado". Como Peeperkorn se dedica mais a animar Hans, o ainda racionalista, os demais comensais se esfriam, afasados da 'fonte de ânimo', pois não há bacanais sem a generosa figura de Baco, a ser o milorde a compartilhar benesses com seus vassalos. Um alarme falso encerra o festim às duas da madrugada, quando Hans ajuda Clawdia a carregar o ébrio senhor.

     Sabemos que a 'montanha mágica' está distante da vida produtiva-consumista da planície, onde a guerra é gerada e nutrida, o que propicia a Hans um ambiente de conforto e discussão, para o aprendizado e o desenvolvimento, como se o jovem fosse uma espécie de Alice num mundo de descobertas, o País das Maravilhas. Com as devidas diferenças, por analogia, acompanhando o mundo das alturas de Mann com a leitura prévias das alegorias-fantasias de Lewis Carroll, se Hans é a curiosa Alice, então Joachim é o Coelho Branco, preocupado com os formalismos; e Settembrini lembra o Chapeleiro Louco, com sua figura de 'velho do realejo', com suas perguntas imprevistas e provocativas; assim como Naphta é uma espécie de Lagarta Azul a questionar identidades alheias, e o vitalismo hilárico e zombeteiro de Myheer Peeperkorn é próximo daquele do Gato Sorridente, o de Cheshire. É de se perguntar se Clawdia seria uma espécie de rutilante Rainha de Copas...

sobre Alice no País das Maravilhas [1865]
http://leoleituraescrita.blogspot.com.br/2009/12/leitura-de-alice-no-pais-das-maravilhas.html


     Mynheer recebe a visita de Hans, e o assunto é remédios, a cura e o venenos, de que o veneno pode ser remédio, a depender da dose. Interessante assunto, que depois se revelará trágico. Doente, acamado, Mynheer não pode falar muito. Hans, ao longo dos meses, faz outras visitas, sempre sob os olhares atentos de Clawdia Chauchat. Também, ocorrem cenas de passeios, onde Hans apresenta o holandês e a russa aos professores Settembrini e Naphta. Clawdia é hostil ao italiano irônico, mas conversa com Naphta. Ambos os pedagogos desdenham Mynheer, minguado em retóricas, pouco imponente ao ar livre.

     O Sr. Peeperkorn é cortês e respeitoso, não irônico, pois é grandioso, sem retóricas. Mas o professor Settembrini ressalta a estupidez de Mynheer, contudo Hans admira a 'personalidade', a vitalidade do holandês. O que é estupidez? Quem a define? E o ser espontâneo não é uma inteligência apenas diferente da meditativa? A grandiosidade de Peeperkorn é corporal, é física e vital. Assim, ele se impõe, com sua vontade, sobre a especulação intelectual. "A personalidade é um valor positivo", defende. Mas não se deve idolatrar, avisa Settembrini, o carisma. Hans considera o carisma um mistério de atração, para além da razão. A presença de Mynheer atrai mais que a retórica de um Naphta. Mas, irritado, o humanista 'toma o partido' do jesuíta, por mais que deteste suas contradições. O que não pode aceitar é o 'mistério' da personalidade. O que o italiano admira são a 'objetividade e a cama de espírito'. Ao admirar o carisma do holandês, Hans não o vê como 'rival', não pretende mostrar-se agora 'viril', em disputas. Não se sente ofendido.

     Os debates entre os intelectuais 'perdem força' quando na presença da personalidade 'magnética' de Mynheer Peeperkorn. O humanista defende as Ideias, as Luzes, o Progresso, o jesuíta prega a abnegação, a devoção, a reforma da Igreja, e Peeperkorn exalta a vitalidade, o comer bem, a embriaguez, a sensualidade. Volúpia que Settembrini defende, Naphta condena, mas quem a viveu, e vive, é o hedonista Peeperkorn. Ele observa o duelo intelectual, faz comentários, e a retórica se esfria. A 'personalidade' não tem um 'caráter educador', pois quando fala é por entusiasmo. Depois, Clawdia e Hans se encontram no sanatório e conversam sobre a condição acamada do grandioso Mynheer. Ela reconhece a reverência de Hans diante da 'personalidade', e solicita apoio para cuidar do enfermo. Em seguida, por gratidão, Clawdia sela o pacto de amizade com um beijo.

     Um tempo depois, Hans faz uma visita ao acamado Peeperkorn, quando falam sobre os passeios, os banquetes e as bebedeiras, os professores retóricos, e, claro, as mulheres. O que sabe Hans sobre mulheres? Banalidades (ou convencionalismos?). Que mulher não tem vontade própria, é reativa, são objetos, submissas ao amor masculino. Mynheer declara que o homem tem o desejo e a mulher espera ser conquistada pelo desejo dele. É próprio do homem, com sua 'força viril' despertar a vida. "O nosso dever de sentir" [p. 807] e nada de especulações sobre a 'mulher' - Mynheer quer saber o que Hans sente por Clawdia. Assim, súbito e cortante. Hans se perturba, sem retóricas. Por que prefere o jovem ficar à cabeceira do velho enfermo a fazer companhia à madame? Peeperkorn percebera que o comportamento de Hans diante de Clawdia é um tanto formal, uma 'atitude forçada'. De modo que o Sr. Peeperkorn é nada estúpido - percebe bem o comportamento alheio, o que é espontâneo, o que é 'forçado'. Hans está sem reação - perplexo.

     Mynheer Peeperkorn desconfia que Clawdia e Hans foram 'amantes' na temporada passada. Então, o jovem confessa ao velho a paixão - vertida na noie canavalesca - pela madame. No dia seguinte, ela foi embora para a 'planície', para as viagens. E quando ela retorna, não estava sozinha - mas acompanhada por uma 'personalidade'. Hans sabe que a madame não pode amar um jovem tão inexperiente quanto ele, que a considera uma mulher 'genial', caprichosa, pois 'a doença a deixa livre'. Hans se sente decepcionado, mas não tem hostilidade contra Mynheer, o que incomoda Clawdia. "As mulheres não gostam de que os seus amantes se entendam." [p. 817] Castorp lembra que está muito tempo - quantos anos? - ali na montanha, que perdeu o primo, que não tem contato com a 'planície', que não é homem 'de personalidade', é, sim, um 'filho enfermiço da vida' - como dizia o pedagogo italiano -, que estava a espera de Clawdia, que ele se entregou à doença. Mynheer compreende a condição de Hans e decide ser fraternal, e não um rival, sendo assim propõe usarem o 'tu' sem formalidades. Hans considera a amizade de Mynheer uma honra.

     O tempo passa. Passa o inverno, chega a primavera. Tempo em que Mynheer Peeperkorn passara acamado - somente 'regendo' as refeições noturnas. Hans tenta agradar tanto Clawdia quanto Mynheer, ainda que deslize em 'formalismos' no convívio social. Um belo dia, desejam seguir em passeio até uma cascata na floresta. Na saída, Hans se encontra com o outro 'rival', outro apaixonado pela madame. Ambos apagados diante da 'personalidade'. Mas o 'rival' Wehsal, o pianista, está ainda mais atormentado, em cobiça insaciável. Hans se recusa a ouvir as confissões indiscretas do 'mísero' rival. Na aldeia, os dois retóricos se unem aos internos de Berghof e seguem todos floresta adentro, onde podem contemplar a exuberante cachoeira, mais abundante e ruidosa devido ao degelo nas montanhas. Mynheer decide onde todos devem parar para o farto lanche. Mynheer discursa mas somente se ouve os estrondos da queda d'água, mas ele não se importa. ele bebe em honra ao esplendor da Natureza. Depois da ceia, voltam para a aldeia.

     Na noite que se segue, alteração na rotina do sanatório. Hans é despertado para prestar auxílio à madame. Ao chegar aos aposentos de Peeperkorn, o jovem o encontra morto. O Dr. Behrens atesta como suicídio por uso de substância venenosa (quinino?) Assim, lembramos da cena discursiva sobre remédios e venenos. De modo que Mynheer Pieter Peeperkorn abdicou, segundo a declaração de madame Chauchat, a 'viúva', que recebe as condolências de Hans Castorp.


     A narrativa se estendeu, longa e digressiva, e o romance se precipita para o fim ( faltam ainda metade do capítulo, ou 120 páginas ... ) e Hans está bem entediado, de mau humor, como vem notou o Dr. Behrens. Para o médico, a cura do jovem é 'progressiva', as 'manchas úmidas' do pulmão estão a diminuir. Mas é possível que bacilos se alojassem no sangue (será isso? ou anemia? ou linfoma?) O Dr. deseja experimentar novos tratamentos, e o paciente se diz disposto. A indolência toma conta do protagonista, ainda mais com a ausência da madame - sua angústia constante.

     Na 'montanha mágica' as ocupações e manias para afastar o tédio - fotografias, filatelia, guloseimas, jogos, artesanato - que podem se tornar caprichos e obsessões. O caso do promotor preocupado com a quadratura do círculo - atormentado por equações matemáticas, entre a melancolia e o desespero. Hans ouve a todos aqueles de ideias fixas, mesmo as mais elaboradas. Projetos de reciclagem, aprendizado de idiomas, carteados, paciências, etc. Enquanto isso, o Sr. Settembrini vive preocupado com a política europeia (em vésperas da Grande Guerra de 1914-18), com o paneslavismo em reação ao pangermanismo (e o italiano odeia a hegemonia austríaca...), enquanto isso Hans vive sob o 'Grande Tédio'. Em breve virá a Catástrofe - a matança, os genocídios, o fim dos Impérios. Hans se submete aos tratamentos - sangrias, desintoxicações, vacinas - em sua rotina de paciente, enquanto continua a 'tirar paciências'.

     Para distrair os internos, é instalado no salão um aparelho de som, um toca-discos de baú, espécie de gramofone, com uma coleção de discos ('discoteca'), com sontas, árias, Lieder, valsas, tangos, sinfonias, óperas. Um simulacro de orquestra. Logo, Hans se encarrega do aparelho de som, e sua 'discoteca', como uma nova paixão, pela invenção de 'nova época'. O jovem torna-se possessivo, até 'ciumento' com relação ao novo aparelho, não ouve passivamente, como por comodidade, mas 'investiga' a invenção, se informa sobre as peças musicais, ordenava os discos, pois ele não quer ser parte do 'auditório', mas o produtor do espetáculo (hoje diríamos, ele não é plateia, é o DJ...), ele organiza tudo, a zelar pelo bom funcionamento, torna-se o 'técnico' de som. A sós, ele sofre com as óperas, delicia-se com as valsas. - Barbeiro de Sevilla - "Figaro!"-, de Rossini, Aida, de Verdi, a Carmen, de Bizet, Fausto, de Gounod, A Tília, de Schubert, verdadeiros 'sustos e êxtases' para Hans, que repousa entre melodias, fantasias e sonhos, de amor e morte. [Lembramos que música será tema de outra obra-prima de Thomas Mann, o romance Doktor Faustus (1947), onde o protagonista é um músico atormentado.]


sobre primeiros aparelhos toca-discos
http://www.paulistando.com.br/2013/04/furo-1913-primeira-reuniao-audiofila.html





    Quanto à morte, nova mania se apossa dos internos, aquela dos fenômenos psíquicos, sobrenaturais: hipnotismo, sonambulismo, telepatia, comunicação com os mortos (as 'mesas giratórias'), uma diluição do espiritualismo 'hermético' na forma de espiritismo. Do inconsciente ao 'superconsciente', assim como se vai dos estudos de Freud às alquimias de Jung. Do mais íntimo da personalidade ao saber que transcende o indivíduo. De onde o patológico, a histeria, o oculto dentro de nós mesmos? Vem o 'espírito' da própria dinâmica da matéria? Ou a matéria (o corpo) é movida pela presença do espírito (a alma)?

     Uma paciente 'paranormal' adentra a cena, para perplexidade dos internos, que adoram jogos de adivinhação. Mas a nova paciente tem auxílios 'sobrenaturais', não previstos pela lógica. O Dr. psiquiatra se ocupa do caso misterioso - com sua 'dissecação da alma' (uma proto-sessão de análise...). Também Hans Castorp se interessa pelos fenômenos sobrenaturais, com sua 'viva curiosidade'. Que espírito será este que sussurra ao ouvido da jovem paciente? Que fenômenos cercam a jovem existência? Telecinese, visão de falecidos, telepatia?


     Os internos organizam sessões de 'mesa giratória' para sondar o desconhecido. Tentativas de 'diálogo' com os espíritos do mundo-do-além. Que espécie de 'oráculo' podem invocar? Um espírito faceiro a responder - e se irritar - e a usar um alfabeto para expressar poemas. Imagens simbolistas da vastidão marítima a confundir-se com a eternidade. Onde o humano e o divino se comunicam em 'palavras sonhadoras' (e a 'poesia do onírico' se apresentaria nas formas de Expressionismo e de Surrealismo nas vanguardas de início de século 20). Alguns se assustam, outros nauseados, ao se manifesar a presença 'do além', que se despede em pancadas.

     O Sr. Settembrini reprova tais experiências como impostura, e mostra-se discontente com o 'discípulo'. E Hans não sabe quais os limites entre realidade e ilusão. Settembrini alerta contra o ceticismo e contra os misticismos. Hans promete se afastar das sessões 'espíritas'. Fora as 'experiências' do Dr. Krokowski, com hipnotismo, junto com melodias, iluminação baixa, para a produção de fenômenos telecinéticos. Também 'materializações' de projeções mentais, com fluídos emanados do corpo do/a médium. Ou manifestações de entidades desencarnadas. Hans é informado, mas mantém-se isolado.

     Finalmente, após insistências, Hans acompanha outra sessão sobrenatural no laboratório do psiquiatra. Na penumbra, se reúnem os internos, entre curiosos e tensos. Após o transe da médium, se manifesta o espírito, que antes prometera trazer outra entidade, à escolha do grupo. Hans deseja a presença do falecido primo Joachim. O transe é profundo, após algum tempo, a médium repete gestos de Joachim no momento da morte... Depois de uma pausa, nova peça musical, surge a figura de Joachim, formal, fardada, soturna! Ilusão ou realidade? Aparição ou delírio? Manifesação ou sugestionamento? Nunca saberemos. Hans se levanta e sai da sala.


     Antes do conflito aberto, a irritação, a hostilidade, os debates nada amistosos. A época de paz e tédio se apaga - acabava assim a Belle Époque, tão bem descrita por Marcel Proust em sua obra Em Busca do Tempo Perdido - para a entrada de um século de violências e genocídios, de massacres e morte sistemática. Os internos e seus acessos de fúria, suas crises súbitas e imprevistas. Discussões, brigas, duelos, tribunais de honra. Também Settembrini e Naphta acham-se em estado de irritação, não suportam ironias quando a retórica perde efeito, quando sentem-se reféns de uma doença crônica, que enfraquece o corpo e entorpece a mente. O italiano se envergonha, melancólico, e o jesuíta se entrega à doença, a desprezar o corpo frágil. Parece mesmo um irascível desejo de guerra, que tudo acabe e seja refeita a política. A fragilidade humana e as falhas da ciência e da técnica: a tragédia do navio britânico Titanic, que naufraga na viagem inaugural em abril de 1912. Sim, uma insegurança geral, o sentimento de um fim de uma época.

     Settembrini menciona a justiça, e Naphta diz não passar de retórica, e zomba da ciência, do evolucionismo, da filosofia natural, do monismo, das leis da física, do domínio da natureza, do éter, do aomo, do espaço-tempo, do realismo, do niilismo, em suma, do conhecimento humano. Cada vez mais antipático, Naphta ataca as revoluções iluminista, liberal, romântica - para a irritação do italiano. É o limite - é o impasse - o desafio para um duelo. Naphta havia irritado Settembrini ao ponto de trocarem ofensas - e o jesuíta insiste num duelo - nem Hans consegue apaziguar os professores. Por que levam a discussão ideológica para o lado pessoal? Por que se matarem por causa de ideias? O Sr. Settembrini declara que se deve estar pronto para arriscar a vida por um ideal.


     O duelo Naphta versus Settembrini é a confirmação do debate que leva ao conflito armado - que acontece na Europa, de 1914 a 1918, que levou ao declínio do continente (e a ascensão de domínios políticos e militares na Ásia - União Soviética - e na América - os Estados Unidos) - quando a diplomacia se rende ao belicismo. O que é um duelo? É uma instituição 'cavalheiresca' para domar uma luta corporal bestial. Hans espera que os ãnimos se esfriem para uma reconciliação. Hans é convocado para ser o árbitro... Wehsal e Fege são os 'padrinhos' de Naphta e Settembrini. Ao amanhecer, chegam ao limite da aldeia, e o jovem tenta dissiadi-los - em vão. Então o italiano atira para o alto, e o jesuíta, transtornado, atira contra a própria cabeça! Fim de cena.


     Sete anos - eis o tempo de Hans Castorp na 'montanha mágica' de Berghof, em Davos, nos alpes suiços. Longe se vão as planejadas três semanas ao lado do primo Joachim, já falecido. Hans é um paciente resignado, vive sua rotina. Até que um 'trovão' - ou tiro de canhão - ressoa na Europa: as alianças entre os países leva a uma guerra generalizada, é a Grande Guerra [depois será a Primeira Guerra Mundial, pois haverá a Segunda, de 1939 a 1945] que deixará o continente em ruínas e revoluções, com a implosão dos Impérios Centrais - alemão e austro-húngaro - além do russo e otomano - com a civilização europeia num impasse - toda a educação humanista para quê? Para tudo terminar numa guerra total a massacrar a juventude?

     Sim, pois Hans deixa o mundo paralelo da montanha e desce até a planície para ser um voluntário a lutar por seu país. O Narrador reconhece o protagonista durante uma ofensiva - que deve ser a da Primeira Batalha de Ypres, em outubro de 1914 - quando estudantes voluntários, com pouco treinamento são enviados para o destroçado front. Somos observadores do massacre, onde o jovem Hans, após todo o estudo, toda meditação, e o desenvolvimento intelectual na 'montanha mágica', não tem outro fim que aquele do campo de batalha. Não sabemos se ele morreu ou sobreviveu, o Narrador deixa a cena se esfumaçar, caótica, num bombardeio de artilharia, e os jovens tombam ou avançam num cenário de terror, produzido pela própria ciência e pela insensatez política.

Batalha de Langemarck, 22 outubro 1914
na Primeira Batalha de Ypres [out - nov 1914]
estudantes e recrutas sem experiência na ofensiva alemã fracassada
http://veja.abril.com.br/historia/primeira-grande-guerra-mundial/1915-abril-batalha-galipoli/morte-ar-primeiro-ataque-gas-ypres.shtml

[por sua vez os britânicos sofreram as maiores na
Batalha de Paschendale, 31 julho 1917 na
Terceira Batalha de Ypres, jul - nov 1917 ]
http://entrandonahistoria.blogspot.com.br/2009/02/1-guerra-mundial-passchendaele.html


ver obra de E. M. Remarque, Nada de novo no front ocidental, 1929,
onde professor orienta estudantes para se alistarem
[o livro inspirou filme em 1930...]
https://pt.wikipedia.org/wiki/Im_Westen_nichts_Neues
http://www.imdb.com/title/tt0020629/
https://www.youtube.com/watch?v=OQc_Gj8Q-FE






     Assim como lamentamos a morte do oficial Robert de Saint-Loup, o nobre francês, refinado e elegante, da obra de Proust, aqui pranteamos a morte gratuita de Hans Castorp, após sua vida narrada como um 'romance de formação', para progresso algum, exceto aquele da barbárie militarista. Eis o aviso de Thomas Mann, que viu seu país invadido pelos radicalismos, tanto de esquerda como de direita, que levaram ao conflito interno, e ao surgimento de um dos maiores pesadelos da humanidade: o Estado totalitário e seus genocídios. Mann, com sua verve humanista, em seu exílio, bem que avisara em seus discursos na BBC contra o ditador Hitler, o quanto a Alemanha - e a Europa - haviam decaído ao abandonarem os ideais de liberdade e fraternidade.


alguns discursos de Thomas Mann na BBC de Londres
durante a Segunda Guerra Mundial

http://sgmsegundaguerramundialww2.blogspot.com.br/2011/09/mais-discursos-de-thomas-mann.html

http://sgmsegundaguerramundialww2.blogspot.com.br/2012/01/apelo-de-t-mann-ao-povo-alemao-nazismo.html

http://sgmsegundaguerramundialww2.blogspot.com.br/2013/07/thomas-mann-contra-hitler-queda-do.html

http://sgmsegundaguerramundialww2.blogspot.com.br/2013/09/quem-salvara-alemanha-discurso-contra.html




mai / jun 16


by Leonardo de Magalhaens



mais info em

http://www.e-biografias.net/thomas_mann/

http://www.jornalopcao.com.br/colunas/imprensa/sergio-buarque-de-holanda-entrevista-thomas-mann-e-descobre-origem-brasileira-da-mae-do-autor-de-a-montanha-magica


https://felipepimenta.com/2013/10/02/resenha-de-a-montanha-magica-de-thomas-mann/

https://espectral.wordpress.com/2011/01/12/leituras-de-2011-thomas-mann-a-montanha-magica-1924/


http://antoniocicero.blogspot.com.br/2008/04/apresentao-de-montanha-mgica-de-thomas.html

http://www.ocampones.com/?p=6346

http://www.pmannia.com/2011/04/zauberberg-woodcuts-to-thomas-manns.html





original Der Zauberberg em alemão

http://pdbooks.ca/books/deutsch/authors/thomas-mann/der-zauberberg/vorsatz.html




Referências


MANN, Thomas. A Montanha Mágica. [Der Zauberberg] Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. (Coleção 40 anos, 40 livros)




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