sobre
Ulisses [Ulysses, 1922]
do
autor irlandês James Joyce [1882-1941]
A
antiepopeia dos dramas cotidianos do homem comum
>
parte 3
No
episódio 16, ou Eumeu, Leopold Bloom, a amparar
Stephen Dedalus, tenta chamar a atenção de alguém no Hotel Estrela
do Norte, mas, devido a farra lá dentro, não foi ouvido, daí
seguir adiante. Passam pela estação ferroviária, próximo ao
cemitério, onde Bloom, sóbrio, vem aconselhar o jovem Dedalus sobre
os excessos da vida boêmia.
Bloom
lembra-se da intervenção providencial de Corny Kelleher junto aos
policiais, e comenta a dispersão dos tão alardeados amigos de
Stephen. Sob os arcos da ponte, alguém cumprimenta Stephen. É
Corley, o filho do inspector, que reclamando de problemas
financeiros, pede um empréstimo a Stephen, que também comenta suas
necessidades. Mas, ao fim, Stephen lhe arranja algumas moedas. Bloom,
prudentemente à distância, a observar.
Corley,
vendo Bloom à penumbra, pede a Stephen que solicite a ele uma
indicação de emprego junto a B. Boylan. Bloom estranha o estado de
Corley, que decaiu a ponto de ficar até altas horas a pedir dinheiro
a conhecidos. Bloom quer saber porque Stephen abandonou o lar, junto
a família de miséria crescente, com a ausência da mãe, com um pai
alcóolatra. Bloom faz de tudo para cativar o amargurado rapaz.
Um
grupo de italianos discutem sobre dinheiro, próximo ao abrigo dos
cocheiros. Bloom a solicitar café e pãezinhos, e a comentar sobre
idiomas, a melodiosa e lírica língua italiana,a linguagem e os
nomes. Dentro do possível, um lanchinho é servido. Um marinheiro
puxa conversa, a narrar uma façanha de Simon Dedalus, na qual Bloom
não acredita muito. O marinheiro se apresenta, é Murphy, de
Carrigaloe, Porto de Queenstown. Murphy e sua saudade da mulher, que
o espera em sua terra. Bloom imagina o marinheiro longe do lar, a
pensar na amada, tal um Ulisses / Odisseu, em navegações e
peripécias, com saudades de sua Penélope... O marinheiro narra suas
viagens, enquanto Bloom, e seu frustrado coração de aventureiro,
mostra-se cético. O marujo mostra-se cansado da vida no mar, e um
desânimo pesa sobre os interlocutores. Um sonolento tom arrastado
contagia a narrativa...
Bloom
pensa no mar, as aventuras, as descobertas, e o marinheiro fala sobre
seu filho, a exibir uma tatuagem. Uma prostituta passa por ali, mas
os homens não se animam, antes alegam prudência diante das 'doenças
do amor', ou seja, as venéreas. E Stephen medita sobre a alma e o
corpo. Um dos interlocutores aborda Stephen com questões sobre a
natureza da alma, se algo espiritual ou se fenômeno do cérebro
humano. Stephen crê numa alma de 'substância simples e
incorruptível', aí Bloom discorda, não tão simples, antes capaz
de invenções complexas, tais como os raios-X, o telescópio, e
outros avanços científicos. Mas não faz sentido partir da
complexidade da alma inteligente para provar a existência de um deus
sobrenatural.
Stephen
apoia seus argumentos na Bíblia e na tradição, e Bloom, retórico,
mostra sua desconfiança quanto a veracidade dos textos ditos
sagrados. Por exemplo: quem escreveu as obras que aceitamos ser de um
tal William Shakespeare? Um só autor, ou vários, a usar pseudônimo?
Não suspeitam do Conde Verulâmio, Francis Bacon? Daí as primeiras
discordâncias, enquanto Bloom experimenta ao café, a insistir para
que o jovem coma alguma coisa.
É
um episódio de densidade morosa, realmente é para ser lido de
madrugada, após um dia cansativo, com o olhar sonolento, com as
pálpebras pesadas, a atenção a cochilar, num insinuante sono
convidativo. Assim, se pode sentir inteiramente o tom de fadiga que
percorre a narrativa, com os olhos pesados de sono. Aliás, cada
episódio é melhor compreendido se for lido em horários semelhantes
aos do enredo. Os seis primeiros, de vivacidade juvenil e plena
maturidade, de manhã; os episódios de 7 a 12, mais complexos, à
tarde; o episódio 13 ao crepúsculo; e os restantes à noite e de
madrugada...
O
Sr. Bloom, a observar o marinheiro, indaga a si mesmo se não se
trata de um ex-prisioneiro, um homicida. Ele divaga sobre outras
terras e culturas, peculiaridades e atos bizarros. A impetuosidade
dos espanhóis, pensa o cientificista. Também sobre as estátuas do
museu e suas formas ideais, esteticamente perfeitas, em contraste
com as formas das mulheres que observamos em nosso cotidiano. Pouco
interesse nas palavras de Bloom - o que já percebemos no episódio
7, e também nos 12 e 14.
Narrativas
sobre aventuras e perigos no mar. Casos de naufrágios. uma breve
ausência do marinheiro. Um pouco sobre a política do comércio
marítimo a Irlanda: os ânimos se exaltam. Bloom pensa nas relações
entre a Irlanda e a Inglaterra. Temores de crimes e traições, sejam
conjugal ou política. Bloom comenta com Stephen o incidente, desta
tarde, no bar do Kiernan, aquele narrado no episódio 12, com o
antissemitismo de um cidadão nacionalista, pois Bloom sabe que é
preciso olhar os dois lados de uma questão, sem intolerância sem
violências. E comenta a questão dos judeus, e o êxito econômico e
financeiro destes, e de como a inquisição espanhola foi um atraso,
ao perseguir judeus, e de como as medidas de Cromwell favoreceu a
Grã-Bretanha ao incentivar os judeus.
Stephen,
que atordoado deixava-se a ficar ali, a ouvir o Sr. Bloom, em seu
monólogo, desperta ao ser aconselhado ao trabalho - entenda-se; o
trabalho literário. É trabalho - e importante! Mas Stephen, que a
nada se apega, pede que mudem de assunto, num tom áspero, sob os
'vapores da orgia'. Bloom o observa, a divagar sobre excentricidades
do meio social. Bloom vê no jovem Dedalus um incentivo intelectual,
a ser um companheiro para discussões filosóficas e científicas.
Ele até se entusiasma, a imaginar um conto, que supere aquele do Sr.
Purefoy - que ele lê e descarta no episódio 4 - e começa a folhear
um jornal abandonado por ali, uma edição extra do Telegraph. A
notícia do funeral de Patrick Dignam. R.I.P. Erros de impressão:
seu nome grafado L. Boom.
Curioso,
Stephen pergunta sobre o texto do Sr. Deasy. A notícia da corrida de
cavalos. O cocheiro agurada a notícia 'O retorno de Parnell'. Bloom
a meditar sobre este tipo de 'sebastianismo' - a espera da volta o
herói, o triunfo final do rei morto. Enquanto sobre o adultério de
Parnell com uma mulher casada surgem zombarias, Bloom reflete na fato
histórico do pecado que desgraçou o líder nacionalista.
Bloom,
já que falavam de mulheres sedutoras e traiçoeiras, mostra a
Stephen uma (sensual) foto de Molly, e volta a questão das formas
perfeitas, a lembrar as estátuas helênicas do Museu Nacional, em
divagações sobre o adultério - de Molly e Boylan? de Parnell com a
espanhola? (Bloom, junto a multidão, a ouvir Parnell: a história
quis que fosse Bloom aquele a devolver ao líder o chapéu que,
devido ao tumulto, caíra ao chão.) Cansado, se sente incomodado com
o gosto duvidoso dos interlocutores, uns sacanas-zombadores, que
julgam saber de tudo, mas vivem em preconceitos. E ele percebe o
drama conjugal que o adultério significa, a lamentar que um jovem,
culto e interessante, tal qual Stephen, se deixe perverter por
mulheres promíscuas.
Algumas
semelhanças e diferenças entre Stephen e Bloom, quando este se
lembra de suas aspirações políticas, a expulsão dos
arrendatários, a questão agrária, as lutas em vão. Percebemos o
quanto Bloom é um homem frustrado, um homem de mil planos, mil
existências possíveis e frustradas, que sonhou com uma vida
aventureira, em escrever contos policiais, em ter uma mulher
apaixonada e fiel, em ter uma destacada voz política. O homem,
quando é jovem, sonha umas mil existências, tem todas diante dele,
mas vê-se obrigado a seguir apenas uma e lamentar a perda de todas
as demais possibilidades!
Bloom
a ponderar se é oportuno convidar Stephen para dormitar em sua casa,
na rua Eccles. O importante é seguir adiante, perambular, até
navegar. "Navegar é preciso", dissera Fernando
Pessoa, homem e artista que também idealizou mais do que se
aventurou. E mil coisas passam pela mente de Bloom - será o excesso
de informações do mundo moderno? E ainda estamos em 1904... Os
vultos seguem pelas ruas, Bloom a amparar Stephen, e a divagar sobre
a música, uma arte pura para Bloom, que prefere a música sacra
católica. Ele relembra as canções ouvidas no bar do Ormond,
inclusive na voz de Simon, o pai de Stephen. As vozes das sereias,
que ouvimos no episódio 11, depois de passarem pelas erudições
literárias na Biblioteca. Mais planos de Bloom: apresentar Stephen
em círculos de artistas e músicos - será que o jovem Dedalus tem o
talento vocal do pai? Aí o jovem artista canta o verso final de uma
balada...
Vamos
para a narrativa 'técnico-científica' na forma de questionário, ou
catecismo erudito, numa extensa 'recapitulação' de toda a obra, com
explicações de referências nas entrelinhas, ou detalhes que nós,
os leitores, deixamos escapar, ou consideramos sem relevância. É o
episódio 17, cujo cenário é Ítaca, o lar que abriga
o viajante em seu retorno.
Leopold
Bloom e Stephen Dedalus seguem pelas ruas, em conversas sobre os
assuntos os mais diversos, seja música, literatura, política, etc ,
em pontos convergentes e divergentes entre eles, enquanto Bloom se
lembra de outras discussões semelhantes...
Quais percursos paralelos seguiram
Bloom e Stephen retornando?
Começando unidos ambos ao passo
normal de caminhada desde a praça Beresford eles seguiram na ordem
as ruas chamadas Lower e Middle Gardiner e a praça Mountjoy, oeste :
então, no passo reduzido, cada marcação à esquerda, a praça
Gardiner por uma inadvertência tão distante quanto a mais distante
esquina da rua do Templo, norte: então em passo reduzido com
interrupções de parada, marcação à direita, rua Templo, norte,
tão distante quanto a praça Hardwicke. Aproximando, diferentes, em
passo relaxado de caminhada eles cruzaram ambos a circular, diante da
igreja de São George diametralmente, a corda em qualquer círculo
sendo menos que o arco que a subtende.
Sobre o que o duunvirato deliberou
durante este itinerário deles?
Música, literatura, Irlanda, Dublin,
Paris, amizade, mulher, prostituição, dieta, a influência da luz
de gás ou a luz de arco e lampiões no crescimento das adjacentes
árvores paraheliotrópicas, expostos baldes-de-areia da emergência
de corporação, a Igreja Católica Romana, celibato eclesiástico, a
nação irlandesa, educação jesuíta, carreiras, o estudo da
medicina, o dia anterior, a maléfica influência do pré-sabbath,
o desmaio de Stephen.
Bloom descobriu fatores comuns de
similaridade entre suas respectivas iguais e desiguais reações à
experiência?
Ambos eram sensíveis às artísticas
impressões musicais em preferência às plásticas e pictóricas.
Ambos preferiam um modo de vida continental a um modo insular, um
lugar de residência cisatlântico a um transatlântico. Ambos
endurecidos por um madrugador treino doméstico e uma herdade
tenacidade de resistência heterodoxa professava a descrença deles
em muitas doutrinas ortodoxas sejam religiosas, nacionais, sociais e
éticas. Ambos admitiam a alternadamente estimulante e desestimulante
influência de magnetismo heterossexual.
[trad. LdeM] em
http://leoleituraescrita.blogspot.com.br/2012/06/ulisses-episodio-17-itaca-james-joyce.html
Chegam
diante do nº 7 da rua Eccles, e o anfitrião percebe estar sem a
chave, esquecida em outra calça. Então pula a grade e, munido de
uma vela, convida Stephen para entrar. Rapidamente, ele acende a
lareira. (Stephen lembra-se de anteriores gestos semelhantes - o
homem inclina-se para a lareira, a providenciar o fogo, a luz e o
calor, tal qual o deão em Retrato do Artista quando Jovem.
O
anfitrião Bloom ajeita as vasilhas na cozinha, lava a chaleira sob a
corrente de água - há toda uma dissertação técnica sobre a água,
suas características químicas, seu armazenamento e sistema de
distribuição - na forma de uma breve tratado científico na mente
de Bloom, que deixa a chaleira com água para ferver, e vai
relembrando os fatos do dia, até que mal-entendido, com a vitória do
azarão Jogafora.
Bloom
oferece a Stephen uma xícara de chocolate quente, e insiste em
'puxar assunto', em comentários sobre literatura, a abordar
experiências que nos ensinam e preparam para a vida real. Parece que
Bloom também é frustrado não sendo poeta... Lembra-se de
anteriores encontros com Stephen, quando garoto, ao visitar o Sr.
Dedalus. As vidas paralelas deles, as formações religiosas e
educacionais de ambos, sendo Bloom mais inclinado ao científico e
Stephen com talento mais artístico.
A
mente de Bloom é repleta de anúncios, slogans e clichês de
propagandas. Slogans que geram imagens diversas na mentes de Stephen
(a lembar de um crepúsculo num hotel solitário) e Bloom (a lembrar
do suicídio de seu pai Rudolph Virag, depois renomeado Bloom) Outras
divagações sobre a ocupação das mulheres, sobre idiomas (no caso,
o irlandês e o hebraico), com Bloom a pedir a Stephen que cante uma
canção, uma cancioneta, sobre um garoto peralta sacrificado por uma
garota judia. Bloom fica a meditar sobre a predestinação e o
sacrifício, e lembra da adolescência de sua filha Milly.
Bloom
propõe que Stephen descanse no quarto do segundo andar, mas Stephen
agradece, cordialmente a recusar. Então Bloom devolve ao jovem o
dinheiro resguardado, segundo mostra o episódio 15. Daí outros
planos reiterados e refutados entre eles, e o anfitrião acompanha o
visitante até a porta. Ficam a contemplar o céu estrelado, em
especulações com dados astronômicos, e influências astrológicas.
Afinidades entre a lua e a mulher? Afinal, ambas são cíclicas,
atravessam fases.
Mãos
apertadas, em cordial despedida, e ressoa o badalar das duas horas, e
Bloom vê-se sozinho, sob o espaço interestelar, em meditares sobre
a aurora vindoura, um novo dia, do qual não seremos informados, como
fomos devidamente sobre esta quinta-feira, 16 de junho de 1904. Bloom
atravessa o jardim e adentra ao lar.
Toda
uma descrição do mobiliário da sala, e Bloom contempla, ao
espelho, a imagem de um homem sozinho a sofrer mudanças, ali entre
tantos livros, dentre os quais as Obras Completas do bardo
Shakespeare, entre volumes de História, Filosofia, Astronomia e
Geometria. Daí Bloom faz o balanço financeiro do dia (2 libras, 19
xelins e 3 pences) e fica a pensar em suas ambições, a concorrerem
com as de outrora, por exemplo, uma propriedade, uma mansão, um
chalé Bloom, ou Flowerville, e também um reconhecimento social, uma
formação intelectual. E quando for devidamente proprietário, ele
apoiará a ordem pública e a repressão aos abusos.
Em
suas lembranças, principalmente sobre o pai falecido, Bloom recorda
quando, ainda adolescente, declara sua descrença nos ensinos da
igreja irlandesa protestante a qual seu pai, judeu oriundo da
Hungria, se convertera. Posteriormente renegada em favor do
catolicismo romano, quando Bloom era jovem, e advogava tendências
políticas colonialistas e teorias evolucionistas darwinianas. O
preço a se pagar pela propriedade, pela opulência. Planos para
adquirir riqueza - como se fosse um costume de Bloom de se entregar a
tais devaneios, antes do sono, como uma compensação por suas
frustrações.
Ele
vai abrindo gavetas, onde enxameiam envelopes, cartas, cartões de
natal, papeis para cartas, além de moedas, fotos eróticas, recortes
de jornal. Ao guardar a carta de Martha, Bloom lembra-se de outras
mulheres que o admiraram ao longo do dia, a Sra. Breen, a enfermeira
Callan, a jovem Gerty. E outra gaveta: documentos, apólices,
cadernetas, títulos de ações. Uma notícia da mudança de nome de
Rudolf Virag para R. Bloom. Encontram-se fotos de Rudolf e Leopold,
a carta de despedida do suicida. Percebemos os remorsos de Bloom
filho. Seu pai lhe contara sobre peregrinações e migrações pela
Europa. A senilidade e a decadência de Bloom: após a euforia, com
planos de riquezas vem a depressão, com o medo da miséria.
Há
um desejo de mudança, de viajar na Irlanda e no mundo, a vagar por
terras, a ser conhecido por uns como 'todo-mundo' e por outros como
'ninguém' - tal qual o truque usado por Ulisses / Odisseu diante da
ameaça do ciclope Polifermo, na Odisseia. Em sua própria odisseia
pessoal, Leopold recapitula as peripécias do dia, o jornal, os
funerais, e então ele se deita, como a tomar posse do leito, a
recuperar a mulher, sua Penélope infiel, ali adormecida, ou quase, a
defendê-la de todos os 'pretendentes'. Em Leopold fluem sentimentos
confusos, numa inveja da virilidade de Boylan e uma gratidão pelos
favores dele, um certo ciúme do apego de Molly, e certa
generosidade. Afinal, o que ele pode fazer quanto ao adultério?
Antes de dormir Bloom dá um beijo em cada nádega de Molly, e tece
um breve relato de seu dia, a excluir, claro, seu affair via
cartas.
O
episódio final, Penélope, se passa como um longo,
extenso, verborrágico, desconexo, aleatório, digressivo, monólogo
de Molly Bloom, consigo mesma, com suas lembranças, ao longo da
noite. Molly, nascida Marion, é filha do major Brian Tweedy, que
serviu em Gibraltar, onde a filha nasceu, em 1870, meio espanhola.
Assim, Leopold fala sobre a esposa aos marinheiros, no episódio 16,
que ela é um tipo espanhol, amorenada, de cabelos escuros. Ela tem
toda uma conotação sensual, e explicita isto em seu fluxo de
lembranças, onde surgem suas aventuras amorosas, tal uma Moll
Flanders, de Daniel Defoe (aliás, com referência ao clássico
inglês de 1722).
Temos
vários flashbacks sobre namoro, casamento, crise conjugal,
nascimento dos filhos, que explicam ou contextualizam vários eventos
apenas mencionados ao longo dos episódios. Aqui há o acesso ao que
Molly realmente pensa do marido em sua volta ao lar, tal qual um
Ulisses de retorno a Ítaca. O ciúme que corrói a esposa infiel. Os
casos do marido errante, o affair com a Sra. Breen, as
suspeitas de um novo caso amoroso de Leopold, que anda a escrever
cartas de modo suspeito, sem saber disfarçar.
Molly
e seu ressentimento com relação aos homens, que ela vê como
egoístas e dissimulados, arrogantes e vulneráveis, ainda que
desejáveis. Assim como eles tem prazer, ela quer prazer. Não aceita
ser submissa, não quer ser dominada. Não quer ser objeto de prazer
alheio, nem uma matriz procriadora, a sofrer dores do parto, para dar
descendência a um homem dominador. Ela sabe que Leopold desconfia
sobre Boylan e tal, e não se importa, já desiludida com o marido,
que lhe seduzira com tantas promessas.
Ela
acha que ele não a merece, que não a valoriza o tanto que ela
merece e tal, e por isso se deixou seduzir pelo galã bon vivant
Boylan, que acompanha sua carreira musical. Ela é ambígua quanto ao
descaramento dos homens, obcecados pela intimidade das mulheres, pois
ela gosta de ser observada e desejada. Molly lembra das primeiras
seduções de Leopold, suas manias e fixações eróticas, que a
constrangiam e a excitavam, de fetiches solicitados em sussurros ou
cartas, que prendem a mulher pela curiosidade e sensualidade.
As
expectativas e as frustrações com o casamento - as fantasias com o
marido (e o amante...) - e os cuidados com a saúde e a beleza, com
a admiração e o desdém das outras mulheres. A mulher de trinta
anos, balzaquiana, a conservar a beleza, a prever a transição da
maturidade para a velhice. Quanto a questão financeira do casal,
Molly não está contente com o serviço de Leopold para o Freeman's,
com seus 'míseros xelins', e espera que ele tenha emprego regular,
renda confiável, ao invés de perambular por aí. Ela se lembra das
dificuldades financeiras que já enfrentaram, das vezes que ele
perdia um emprego - até pensar em posar nua para um artista, ela
pensou. Ela compara o marido com o amante, as taras e performances
eróticas.
Lembranças
da Espanha, os homens, os toureiros, as touradas, as descobertas
sexuais, as primeiras carícias, os beijos e os toques, as negações
e os consentimentos, as seduções avançadas e limitadas. Os homens
que passaram por sua vida, e que foram obrigados a viajar, para todos
os vastos domínios do Império Britânico, e eles não voltaram, por
ambição ou guerra, por promoção ou morte. Ela julga que o
casamento com Leopold é um atraso para a carreira dela, que
compartilha os concertos, em duetos ao piano, com o amante Boylan,
que é quem realmente a deixa excitada e satisfeita.
Pois
Leopold é cheio de planos que nunca concretiza, desde a lua-de-mel,
e projetos para empresas, que nunca saem do mundo das ideias, apenas
geram expectativas, que geram decepções e ressentimentos. Que ele
não explica as coisas, as ideias de modo que ela possa entender,
como se ele fizesse pouco da inteligência dela. Desprezo pelos
maridos possessivos, ciumentos, desconfiados, mas cegos para a
traição.
Em
contraponto ao clima cinzento da provinciana Eire, o mundo
mediterrâneo enquanto sedução, com as paisagens espanholas, no
extremo da Europa, e suas belas mulheres, suas danças, flores nos
cabelos, vestidos coloridos, seduções andaluzas, em festas
mouriscas, observadas por mouros de turbantes. É com este espírito
de sensualidade que ela finaliza seu solilóquio, a terminar tudo
numa cena amorosa em que predomina o Sim ao se entregar ao sedutor, a
mulher que se deixa seduzir, ao aceitar a posse masculina. Sua
entrega ao seu destino e condição é uma antecipação - ou
inspiração - para o final do próximo livro, Finnegans Wake,
de 1939, onde há o monólogo terminal de Anna Livia Plurabelle, a
figura do rio Liffey, ao entregar-se a imensidão do mar, no
fim-início de tudo.
Assim,
o irlandês-europeu-cosmopolita James Joyce consegue em sua densa e
complexa obra religar os cenários dos dublinenses, os sonhos do
jovem artista com as alegorias da noite-pesadelo do tempo circular,
através de um romance-anti-romance, que é travessia. Ulisses
deve ser lido num crescendo, mesmo que nos deixe com fadiga. Deve ser
degustado junto com os contos de Dublinenses e os diários de
Stephen Dedalus, como introduções aos pensamentos de Leopold Bloom
e os devaneios de Molly, numa obra que se fecha sobre si mesma, assim
como ao dia se sucede a noite, e, depois desta, o novo dia. Há morte
e nascimento ao longo do dia, a sono e traumas dutante a noite. E
como única testemunha de nossas vidas entre o sim e o não está a
Escrita.
abr/
mai16
by
Leonardo de Magalhaens
mais
info em
http://www.shmoop.com/ulysses-joyce/summary.html
http://revistacult.uol.com.br/home/2013/09/finnegans-wake-finnicius-revem/
Referências
ELLMANN,
Richard. James Joyce. São Paulo: Globo, 1989.
JOYCE,
James. ULISSES. trad. Antonio Houaiss. São Paulo: Abril
Cultural, 1980.
Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
___________
. ULISSES. trad. Bernardina Pinheiros. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2005
___________
. ULISSES. trad. Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin
Companhia das Letras, 2012
___________
. Ulysses. London, Penguin books, 1971.