segunda-feira, 23 de maio de 2016

sobre Ulisses - parte 3 - de James Joyce






sobre Ulisses [Ulysses, 1922]
do autor irlandês James Joyce [1882-1941]


A antiepopeia dos dramas cotidianos do homem comum


> parte 3

     No episódio 16, ou Eumeu, Leopold Bloom, a amparar Stephen Dedalus, tenta chamar a atenção de alguém no Hotel Estrela do Norte, mas, devido a farra lá dentro, não foi ouvido, daí seguir adiante. Passam pela estação ferroviária, próximo ao cemitério, onde Bloom, sóbrio, vem aconselhar o jovem Dedalus sobre os excessos da vida boêmia.

     Bloom lembra-se da intervenção providencial de Corny Kelleher junto aos policiais, e comenta a dispersão dos tão alardeados amigos de Stephen. Sob os arcos da ponte, alguém cumprimenta Stephen. É Corley, o filho do inspector, que reclamando de problemas financeiros, pede um empréstimo a Stephen, que também comenta suas necessidades. Mas, ao fim, Stephen lhe arranja algumas moedas. Bloom, prudentemente à distância, a observar.

     Corley, vendo Bloom à penumbra, pede a Stephen que solicite a ele uma indicação de emprego junto a B. Boylan. Bloom estranha o estado de Corley, que decaiu a ponto de ficar até altas horas a pedir dinheiro a conhecidos. Bloom quer saber porque Stephen abandonou o lar, junto a família de miséria crescente, com a ausência da mãe, com um pai alcóolatra. Bloom faz de tudo para cativar o amargurado rapaz.

     Um grupo de italianos discutem sobre dinheiro, próximo ao abrigo dos cocheiros. Bloom a solicitar café e pãezinhos, e a comentar sobre idiomas, a melodiosa e lírica língua italiana,a linguagem e os nomes. Dentro do possível, um lanchinho é servido. Um marinheiro puxa conversa, a narrar uma façanha de Simon Dedalus, na qual Bloom não acredita muito. O marinheiro se apresenta, é Murphy, de Carrigaloe, Porto de Queenstown. Murphy e sua saudade da mulher, que o espera em sua terra. Bloom imagina o marinheiro longe do lar, a pensar na amada, tal um Ulisses / Odisseu, em navegações e peripécias, com saudades de sua Penélope... O marinheiro narra suas viagens, enquanto Bloom, e seu frustrado coração de aventureiro, mostra-se cético. O marujo mostra-se cansado da vida no mar, e um desânimo pesa sobre os interlocutores. Um sonolento tom arrastado contagia a narrativa...

     Bloom pensa no mar, as aventuras, as descobertas, e o marinheiro fala sobre seu filho, a exibir uma tatuagem. Uma prostituta passa por ali, mas os homens não se animam, antes alegam prudência diante das 'doenças do amor', ou seja, as venéreas. E Stephen medita sobre a alma e o corpo. Um dos interlocutores aborda Stephen com questões sobre a natureza da alma, se algo espiritual ou se fenômeno do cérebro humano. Stephen crê numa alma de 'substância simples e incorruptível', aí Bloom discorda, não tão simples, antes capaz de invenções complexas, tais como os raios-X, o telescópio, e outros avanços científicos. Mas não faz sentido partir da complexidade da alma inteligente para provar a existência de um deus sobrenatural.

     Stephen apoia seus argumentos na Bíblia e na tradição, e Bloom, retórico, mostra sua desconfiança quanto a veracidade dos textos ditos sagrados. Por exemplo: quem escreveu as obras que aceitamos ser de um tal William Shakespeare? Um só autor, ou vários, a usar pseudônimo? Não suspeitam do Conde Verulâmio, Francis Bacon? Daí as primeiras discordâncias, enquanto Bloom experimenta ao café, a insistir para que o jovem coma alguma coisa.

     É um episódio de densidade morosa, realmente é para ser lido de madrugada, após um dia cansativo, com o olhar sonolento, com as pálpebras pesadas, a atenção a cochilar, num insinuante sono convidativo. Assim, se pode sentir inteiramente o tom de fadiga que percorre a narrativa, com os olhos pesados de sono. Aliás, cada episódio é melhor compreendido se for lido em horários semelhantes aos do enredo. Os seis primeiros, de vivacidade juvenil e plena maturidade, de manhã; os episódios de 7 a 12, mais complexos, à tarde; o episódio 13 ao crepúsculo; e os restantes à noite e de madrugada...

     O Sr. Bloom, a observar o marinheiro, indaga a si mesmo se não se trata de um ex-prisioneiro, um homicida. Ele divaga sobre outras terras e culturas, peculiaridades e atos bizarros. A impetuosidade dos espanhóis, pensa o cientificista. Também sobre as estátuas do museu e suas formas ideais, esteticamente perfeitas, em contraste com as formas das mulheres que observamos em nosso cotidiano. Pouco interesse nas palavras de Bloom - o que já percebemos no episódio 7, e também nos 12 e 14.

     Narrativas sobre aventuras e perigos no mar. Casos de naufrágios. uma breve ausência do marinheiro. Um pouco sobre a política do comércio marítimo a Irlanda: os ânimos se exaltam. Bloom pensa nas relações entre a Irlanda e a Inglaterra. Temores de crimes e traições, sejam conjugal ou política. Bloom comenta com Stephen o incidente, desta tarde, no bar do Kiernan, aquele narrado no episódio 12, com o antissemitismo de um cidadão nacionalista, pois Bloom sabe que é preciso olhar os dois lados de uma questão, sem intolerância sem violências. E comenta a questão dos judeus, e o êxito econômico e financeiro destes, e de como a inquisição espanhola foi um atraso, ao perseguir judeus, e de como as medidas de Cromwell favoreceu a Grã-Bretanha ao incentivar os judeus.

     Stephen, que atordoado deixava-se a ficar ali, a ouvir o Sr. Bloom, em seu monólogo, desperta ao ser aconselhado ao trabalho - entenda-se; o trabalho literário. É trabalho - e importante! Mas Stephen, que a nada se apega, pede que mudem de assunto, num tom áspero, sob os 'vapores da orgia'. Bloom o observa, a divagar sobre excentricidades do meio social. Bloom vê no jovem Dedalus um incentivo intelectual, a ser um companheiro para discussões filosóficas e científicas. Ele até se entusiasma, a imaginar um conto, que supere aquele do Sr. Purefoy - que ele lê e descarta no episódio 4 - e começa a folhear um jornal abandonado por ali, uma edição extra do Telegraph. A notícia do funeral de Patrick Dignam. R.I.P. Erros de impressão: seu nome grafado L. Boom.

     Curioso, Stephen pergunta sobre o texto do Sr. Deasy. A notícia da corrida de cavalos. O cocheiro agurada a notícia 'O retorno de Parnell'. Bloom a meditar sobre este tipo de 'sebastianismo' - a espera da volta o herói, o triunfo final do rei morto. Enquanto sobre o adultério de Parnell com uma mulher casada surgem zombarias, Bloom reflete na fato histórico do pecado que desgraçou o líder nacionalista.

     Bloom, já que falavam de mulheres sedutoras e traiçoeiras, mostra a Stephen uma (sensual) foto de Molly, e volta a questão das formas perfeitas, a lembrar as estátuas helênicas do Museu Nacional, em divagações sobre o adultério - de Molly e Boylan? de Parnell com a espanhola? (Bloom, junto a multidão, a ouvir Parnell: a história quis que fosse Bloom aquele a devolver ao líder o chapéu que, devido ao tumulto, caíra ao chão.) Cansado, se sente incomodado com o gosto duvidoso dos interlocutores, uns sacanas-zombadores, que julgam saber de tudo, mas vivem em preconceitos. E ele percebe o drama conjugal que o adultério significa, a lamentar que um jovem, culto e interessante, tal qual Stephen, se deixe perverter por mulheres promíscuas.

     Algumas semelhanças e diferenças entre Stephen e Bloom, quando este se lembra de suas aspirações políticas, a expulsão dos arrendatários, a questão agrária, as lutas em vão. Percebemos o quanto Bloom é um homem frustrado, um homem de mil planos, mil existências possíveis e frustradas, que sonhou com uma vida aventureira, em escrever contos policiais, em ter uma mulher apaixonada e fiel, em ter uma destacada voz política. O homem, quando é jovem, sonha umas mil existências, tem todas diante dele, mas vê-se obrigado a seguir apenas uma e lamentar a perda de todas as demais possibilidades!

     Bloom a ponderar se é oportuno convidar Stephen para dormitar em sua casa, na rua Eccles. O importante é seguir adiante, perambular, até navegar. "Navegar é preciso", dissera Fernando Pessoa, homem e artista que também idealizou mais do que se aventurou. E mil coisas passam pela mente de Bloom - será o excesso de informações do mundo moderno? E ainda estamos em 1904... Os vultos seguem pelas ruas, Bloom a amparar Stephen, e a divagar sobre a música, uma arte pura para Bloom, que prefere a música sacra católica. Ele relembra as canções ouvidas no bar do Ormond, inclusive na voz de Simon, o pai de Stephen. As vozes das sereias, que ouvimos no episódio 11, depois de passarem pelas erudições literárias na Biblioteca. Mais planos de Bloom: apresentar Stephen em círculos de artistas e músicos - será que o jovem Dedalus tem o talento vocal do pai? Aí o jovem artista canta o verso final de uma balada...

     Vamos para a narrativa 'técnico-científica' na forma de questionário, ou catecismo erudito, numa extensa 'recapitulação' de toda a obra, com explicações de referências nas entrelinhas, ou detalhes que nós, os leitores, deixamos escapar, ou consideramos sem relevância. É o episódio 17, cujo cenário é Ítaca, o lar que abriga o viajante em seu retorno.





     Leopold Bloom e Stephen Dedalus seguem pelas ruas, em conversas sobre os assuntos os mais diversos, seja música, literatura, política, etc , em pontos convergentes e divergentes entre eles, enquanto Bloom se lembra de outras discussões semelhantes...

Quais percursos paralelos seguiram Bloom e Stephen retornando?

Começando unidos ambos ao passo normal de caminhada desde a praça Beresford eles seguiram na ordem as ruas chamadas Lower e Middle Gardiner e a praça Mountjoy, oeste : então, no passo reduzido, cada marcação à esquerda, a praça Gardiner por uma inadvertência tão distante quanto a mais distante esquina da rua do Templo, norte: então em passo reduzido com interrupções de parada, marcação à direita, rua Templo, norte, tão distante quanto a praça Hardwicke. Aproximando, diferentes, em passo relaxado de caminhada eles cruzaram ambos a circular, diante da igreja de São George diametralmente, a corda em qualquer círculo sendo menos que o arco que a subtende.


Sobre o que o duunvirato deliberou durante este itinerário deles?

Música, literatura, Irlanda, Dublin, Paris, amizade, mulher, prostituição, dieta, a influência da luz de gás ou a luz de arco e lampiões no crescimento das adjacentes árvores paraheliotrópicas, expostos baldes-de-areia da emergência de corporação, a Igreja Católica Romana, celibato eclesiástico, a nação irlandesa, educação jesuíta, carreiras, o estudo da medicina, o dia anterior, a maléfica influência do pré-sabbath, o desmaio de Stephen.


Bloom descobriu fatores comuns de similaridade entre suas respectivas iguais e desiguais reações à experiência?

Ambos eram sensíveis às artísticas impressões musicais em preferência às plásticas e pictóricas. Ambos preferiam um modo de vida continental a um modo insular, um lugar de residência cisatlântico a um transatlântico. Ambos endurecidos por um madrugador treino doméstico e uma herdade tenacidade de resistência heterodoxa professava a descrença deles em muitas doutrinas ortodoxas sejam religiosas, nacionais, sociais e éticas. Ambos admitiam a alternadamente estimulante e desestimulante influência de magnetismo heterossexual.

[trad. LdeM] em http://leoleituraescrita.blogspot.com.br/2012/06/ulisses-episodio-17-itaca-james-joyce.html



     Chegam diante do nº 7 da rua Eccles, e o anfitrião percebe estar sem a chave, esquecida em outra calça. Então pula a grade e, munido de uma vela, convida Stephen para entrar. Rapidamente, ele acende a lareira. (Stephen lembra-se de anteriores gestos semelhantes - o homem inclina-se para a lareira, a providenciar o fogo, a luz e o calor, tal qual o deão em Retrato do Artista quando Jovem.

     O anfitrião Bloom ajeita as vasilhas na cozinha, lava a chaleira sob a corrente de água - há toda uma dissertação técnica sobre a água, suas características químicas, seu armazenamento e sistema de distribuição - na forma de uma breve tratado científico na mente de Bloom, que deixa a chaleira com água para ferver, e vai relembrando os fatos do dia, até que mal-entendido, com a vitória do azarão Jogafora.

     Bloom oferece a Stephen uma xícara de chocolate quente, e insiste em 'puxar assunto', em comentários sobre literatura, a abordar experiências que nos ensinam e preparam para a vida real. Parece que Bloom também é frustrado não sendo poeta... Lembra-se de anteriores encontros com Stephen, quando garoto, ao visitar o Sr. Dedalus. As vidas paralelas deles, as formações religiosas e educacionais de ambos, sendo Bloom mais inclinado ao científico e Stephen com talento mais artístico.

     A mente de Bloom é repleta de anúncios, slogans e clichês de propagandas. Slogans que geram imagens diversas na mentes de Stephen (a lembar de um crepúsculo num hotel solitário) e Bloom (a lembrar do suicídio de seu pai Rudolph Virag, depois renomeado Bloom) Outras divagações sobre a ocupação das mulheres, sobre idiomas (no caso, o irlandês e o hebraico), com Bloom a pedir a Stephen que cante uma canção, uma cancioneta, sobre um garoto peralta sacrificado por uma garota judia. Bloom fica a meditar sobre a predestinação e o sacrifício, e lembra da adolescência de sua filha Milly.

     Bloom propõe que Stephen descanse no quarto do segundo andar, mas Stephen agradece, cordialmente a recusar. Então Bloom devolve ao jovem o dinheiro resguardado, segundo mostra o episódio 15. Daí outros planos reiterados e refutados entre eles, e o anfitrião acompanha o visitante até a porta. Ficam a contemplar o céu estrelado, em especulações com dados astronômicos, e influências astrológicas. Afinidades entre a lua e a mulher? Afinal, ambas são cíclicas, atravessam fases.

     Mãos apertadas, em cordial despedida, e ressoa o badalar das duas horas, e Bloom vê-se sozinho, sob o espaço interestelar, em meditares sobre a aurora vindoura, um novo dia, do qual não seremos informados, como fomos devidamente sobre esta quinta-feira, 16 de junho de 1904. Bloom atravessa o jardim e adentra ao lar.

     Toda uma descrição do mobiliário da sala, e Bloom contempla, ao espelho, a imagem de um homem sozinho a sofrer mudanças, ali entre tantos livros, dentre os quais as Obras Completas do bardo Shakespeare, entre volumes de História, Filosofia, Astronomia e Geometria. Daí Bloom faz o balanço financeiro do dia (2 libras, 19 xelins e 3 pences) e fica a pensar em suas ambições, a concorrerem com as de outrora, por exemplo, uma propriedade, uma mansão, um chalé Bloom, ou Flowerville, e também um reconhecimento social, uma formação intelectual. E quando for devidamente proprietário, ele apoiará a ordem pública e a repressão aos abusos.

     Em suas lembranças, principalmente sobre o pai falecido, Bloom recorda quando, ainda adolescente, declara sua descrença nos ensinos da igreja irlandesa protestante a qual seu pai, judeu oriundo da Hungria, se convertera. Posteriormente renegada em favor do catolicismo romano, quando Bloom era jovem, e advogava tendências políticas colonialistas e teorias evolucionistas darwinianas. O preço a se pagar pela propriedade, pela opulência. Planos para adquirir riqueza - como se fosse um costume de Bloom de se entregar a tais devaneios, antes do sono, como uma compensação por suas frustrações.

     Ele vai abrindo gavetas, onde enxameiam envelopes, cartas, cartões de natal, papeis para cartas, além de moedas, fotos eróticas, recortes de jornal. Ao guardar a carta de Martha, Bloom lembra-se de outras mulheres que o admiraram ao longo do dia, a Sra. Breen, a enfermeira Callan, a jovem Gerty. E outra gaveta: documentos, apólices, cadernetas, títulos de ações. Uma notícia da mudança de nome de Rudolf Virag para R. Bloom. Encontram-se fotos de Rudolf e Leopold, a carta de despedida do suicida. Percebemos os remorsos de Bloom filho. Seu pai lhe contara sobre peregrinações e migrações pela Europa. A senilidade e a decadência de Bloom: após a euforia, com planos de riquezas vem a depressão, com o medo da miséria.

     Há um desejo de mudança, de viajar na Irlanda e no mundo, a vagar por terras, a ser conhecido por uns como 'todo-mundo' e por outros como 'ninguém' - tal qual o truque usado por Ulisses / Odisseu diante da ameaça do ciclope Polifermo, na Odisseia. Em sua própria odisseia pessoal, Leopold recapitula as peripécias do dia, o jornal, os funerais, e então ele se deita, como a tomar posse do leito, a recuperar a mulher, sua Penélope infiel, ali adormecida, ou quase, a defendê-la de todos os 'pretendentes'. Em Leopold fluem sentimentos confusos, numa inveja da virilidade de Boylan e uma gratidão pelos favores dele, um certo ciúme do apego de Molly, e certa generosidade. Afinal, o que ele pode fazer quanto ao adultério? Antes de dormir Bloom dá um beijo em cada nádega de Molly, e tece um breve relato de seu dia, a excluir, claro, seu affair via cartas.

     O episódio final, Penélope, se passa como um longo, extenso, verborrágico, desconexo, aleatório, digressivo, monólogo de Molly Bloom, consigo mesma, com suas lembranças, ao longo da noite. Molly, nascida Marion, é filha do major Brian Tweedy, que serviu em Gibraltar, onde a filha nasceu, em 1870, meio espanhola. Assim, Leopold fala sobre a esposa aos marinheiros, no episódio 16, que ela é um tipo espanhol, amorenada, de cabelos escuros. Ela tem toda uma conotação sensual, e explicita isto em seu fluxo de lembranças, onde surgem suas aventuras amorosas, tal uma Moll Flanders, de Daniel Defoe (aliás, com referência ao clássico inglês de 1722).

     Temos vários flashbacks sobre namoro, casamento, crise conjugal, nascimento dos filhos, que explicam ou contextualizam vários eventos apenas mencionados ao longo dos episódios. Aqui há o acesso ao que Molly realmente pensa do marido em sua volta ao lar, tal qual um Ulisses de retorno a Ítaca. O ciúme que corrói a esposa infiel. Os casos do marido errante, o affair com a Sra. Breen, as suspeitas de um novo caso amoroso de Leopold, que anda a escrever cartas de modo suspeito, sem saber disfarçar.

     Molly e seu ressentimento com relação aos homens, que ela vê como egoístas e dissimulados, arrogantes e vulneráveis, ainda que desejáveis. Assim como eles tem prazer, ela quer prazer. Não aceita ser submissa, não quer ser dominada. Não quer ser objeto de prazer alheio, nem uma matriz procriadora, a sofrer dores do parto, para dar descendência a um homem dominador. Ela sabe que Leopold desconfia sobre Boylan e tal, e não se importa, já desiludida com o marido, que lhe seduzira com tantas promessas.

     Ela acha que ele não a merece, que não a valoriza o tanto que ela merece e tal, e por isso se deixou seduzir pelo galã bon vivant Boylan, que acompanha sua carreira musical. Ela é ambígua quanto ao descaramento dos homens, obcecados pela intimidade das mulheres, pois ela gosta de ser observada e desejada. Molly lembra das primeiras seduções de Leopold, suas manias e fixações eróticas, que a constrangiam e a excitavam, de fetiches solicitados em sussurros ou cartas, que prendem a mulher pela curiosidade e sensualidade.

     As expectativas e as frustrações com o casamento - as fantasias com o marido (e o amante...) - e os cuidados com a saúde e a beleza, com a admiração e o desdém das outras mulheres. A mulher de trinta anos, balzaquiana, a conservar a beleza, a prever a transição da maturidade para a velhice. Quanto a questão financeira do casal, Molly não está contente com o serviço de Leopold para o Freeman's, com seus 'míseros xelins', e espera que ele tenha emprego regular, renda confiável, ao invés de perambular por aí. Ela se lembra das dificuldades financeiras que já enfrentaram, das vezes que ele perdia um emprego - até pensar em posar nua para um artista, ela pensou. Ela compara o marido com o amante, as taras e performances eróticas.

     Lembranças da Espanha, os homens, os toureiros, as touradas, as descobertas sexuais, as primeiras carícias, os beijos e os toques, as negações e os consentimentos, as seduções avançadas e limitadas. Os homens que passaram por sua vida, e que foram obrigados a viajar, para todos os vastos domínios do Império Britânico, e eles não voltaram, por ambição ou guerra, por promoção ou morte. Ela julga que o casamento com Leopold é um atraso para a carreira dela, que compartilha os concertos, em duetos ao piano, com o amante Boylan, que é quem realmente a deixa excitada e satisfeita.

     Pois Leopold é cheio de planos que nunca concretiza, desde a lua-de-mel, e projetos para empresas, que nunca saem do mundo das ideias, apenas geram expectativas, que geram decepções e ressentimentos. Que ele não explica as coisas, as ideias de modo que ela possa entender, como se ele fizesse pouco da inteligência dela. Desprezo pelos maridos possessivos, ciumentos, desconfiados, mas cegos para a traição.

     Em contraponto ao clima cinzento da provinciana Eire, o mundo mediterrâneo enquanto sedução, com as paisagens espanholas, no extremo da Europa, e suas belas mulheres, suas danças, flores nos cabelos, vestidos coloridos, seduções andaluzas, em festas mouriscas, observadas por mouros de turbantes. É com este espírito de sensualidade que ela finaliza seu solilóquio, a terminar tudo numa cena amorosa em que predomina o Sim ao se entregar ao sedutor, a mulher que se deixa seduzir, ao aceitar a posse masculina. Sua entrega ao seu destino e condição é uma antecipação - ou inspiração - para o final do próximo livro, Finnegans Wake, de 1939, onde há o monólogo terminal de Anna Livia Plurabelle, a figura do rio Liffey, ao entregar-se a imensidão do mar, no fim-início de tudo.

     Assim, o irlandês-europeu-cosmopolita James Joyce consegue em sua densa e complexa obra religar os cenários dos dublinenses, os sonhos do jovem artista com as alegorias da noite-pesadelo do tempo circular, através de um romance-anti-romance, que é travessia. Ulisses deve ser lido num crescendo, mesmo que nos deixe com fadiga. Deve ser degustado junto com os contos de Dublinenses e os diários de Stephen Dedalus, como introduções aos pensamentos de Leopold Bloom e os devaneios de Molly, numa obra que se fecha sobre si mesma, assim como ao dia se sucede a noite, e, depois desta, o novo dia. Há morte e nascimento ao longo do dia, a sono e traumas dutante a noite. E como única testemunha de nossas vidas entre o sim e o não está a Escrita.



abr/ mai16


by Leonardo de Magalhaens









mais info em

http://www.shmoop.com/ulysses-joyce/summary.html

http://revistacult.uol.com.br/home/2013/09/finnegans-wake-finnicius-revem/







Referências


ELLMANN, Richard. James Joyce. São Paulo: Globo, 1989.

JOYCE, James. ULISSES. trad. Antonio Houaiss. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

___________ . ULISSES. trad. Bernardina Pinheiros. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005

___________ . ULISSES. trad. Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2012

___________ . Ulysses. London, Penguin books, 1971.



quarta-feira, 11 de maio de 2016

sobre ULISSES - parte 2 - de James Joyce





sobre Ulisses [Ulysses, 1922]
do autor irlandês James Joyce [1882-1941]


A antiepopeia dos dramas cotidianos do homem comum



> parte 2

     Episódio 12. Aquele do Ciclope, fanático nacionalista, a ver tudo por uma perspectiva parcial, é o Narrador. Diferente do 'ciclope', com uma visão única, Bloom procura ver os vários lados de uma questão. Pois bem. O cidadão está numa esquina, a conversar com um policial, e então é quase cegado pela ferramenta de um limpador de chaminés - enquanto no Canto IX da Odisseia o ciclope Polifemo, filho do deus Poseidon, é cegado por Ulisses / Odisseu, que diz ser Ninguém.

     Ao voltar para ofender o limpador, tão distraído e ameaçador, o cidadão vê Joe Hynes, e passa a comentar sua atual ocupação de cobrador de dívidas alheias. Surge a primeira interpolação, um trecho que corta a narrativa, com o caso de Gerachty que deve Herzog, judeu comerciante. O Narrador e Hynes decidem ir ao pub Barney Kiernan's para um drink, e lá na porta está um cidadão nacionalista, com seu cão pouco amistoso. A interpolação agora é a galeria de heróis irlandeses.

     Joe Hynes paga os drinks e lembra que conseguiu a grana graças a uma dica de Bloom - é aquele mal-entendido que começou no episódio 5, e passou pelos 7 e 8, do cavalo Jogafora. Chega então Alf Bergan, a zombar do Sr. Denis Breen, abraçado a seus livros de advocacia. Bob Doran, bêbado, a um canto. Surgem comentários sobre um enforcamento e Alf tira do bolso cartas de um carrasco. O narrador ouve de Alf ter ele encontrado, em Capel Street, o Paddy Dignam. Daí Joe assegura que Dignam está é morto. Consternação geral. Daí a interpolação pseudo-científica própria da literatura espiritualista, muito em voga na época, de contato com os mortos.

     Na rua, Leopold Bloom passa diante do bar, enquanto Doran blasfema, a lamentar o pobre falecido Dignam. Bloom pergunta à respeito de M. Cunningham, enquanto Hynes lê em voz alta uma das cartas do tal carrasco. Bloom vem criticar a pena capital, a execução legitimada pelo poder estatal. Outra interpolação: Bloom, tal qual um professor alemão, a esclarecer o fenômeno deveras constrangedor da ereção genital nos enforcados.

     Ao lado o nacionalista e Hynes continuam suas ladainhas sobre revolucionários e mártires, desde 1867, época do fracassado levante feniano [Fenian Rising] contra o governo inglês. Bloom até tenta se 'enturmar', mas o Narrador mostra seu desprezo pelo 'judeu errante', a lembrar as 'espertezas' deste. Enquanto isso, o nacionalista bebe à memória dos revolucionários, e não oculta hostilidade contra Bloom, um forasteiro. Daí a interpolação: uma execução, narrada num exagerado e emocional estilo jornalístico.


     As implicâncias do irascível Narrador, inclusive contra o incômodo cão do nacionalista. Outra interpolação, a cinantropia, a figura do homem-cão, raivoso e indomado. Ali Bloom a recusar a nova rodada de drinks, a alegar apenas esperar o M. Cunningham. Nannetti (do Freeman's) é mencionado por Hynes, e o narrador lembra do emprego de Bloom no Cattle Market, de onde foi despedido por ser um 'senhor Sabe-tudo'. Hynes comenta a viagem à negócios que Nannetti fará a Londres. Bloom se preocupa pois ainda há o negócio do anúncio do Sr. Keyes, a ser resolvido.

     De digressão em digressão, outro assunto na roda de beberrões. Os esportes, ou 'desportos gaélicos', abordados por Bloom no bom senso, mas o interlocutores preferem a violência. A interpolação surge jornalística, a parodiar o estilo das colunas esportivas, quando numa luta de boxe, Myler Keogh, o irlandês, nocauteia Percy Bennett, o inglês, com agilidade e perícia. Sempre esta querela do irlandês versus o inglês.

     Alf menciona Boylan, em sua organização da turnê de concertos. E Bloom não se altera, e comenta o fato com naturalidade. Chegam O'Molloy e Lambert, que recebem o desprezo do Narrador, a destacar a decadência e a pobreza de O'Molloy. Continuam as zombarias sobre o Sr. Breen, das quais Bloom se mantem distante, pois compreende o sofrimento da Sra. Breen, conforme presenciamos no episódio 8. Mas os demais tentam provocá-lo, mas ele concentra-se em Hynes, a perdoar-lhe uma dívida desde que ele o ajude com os anúncios. Paira ali uma névoa xenófoba, um desprezo por tudo que é inglês, tudo o que é judeu.

     Mais gente chega ao pub. Agora Nolan e Lenehan, a anunciarem que Jogafora é o cavalo vencedor da Ascot Gold Cup, e lembrando que Boylan apostou em Sceptre. Noticias sobre o concílio à respeito das língua e cultura irlandesa, que provocam aclamações xenófobas do nacionalista, enquanto Bloom mostra sua tolerância. Outra interpolação: núpcias no reino das árvores? O Narrador acaba por achar toda a retórica do nacionalista um mero papo furado, enquanto bebem, e os furores aumentam. Antissemitismo, ataques à hipocrisia inglesa. Os golpes que a Irlanda sofre desde a Grande Fome de 1846, e os grandes espuliadores e exploradores da nação irlandesa.

     Bloom lembra que a violência apenas gera mais violência. Indagado sobre qual seria sua nação, Bloom afirma ser a Irlanda, mas o nacionalista cospe de lado, em desprezo. Interpolação: exibição de relíquias. Enquanto isso, Bloom lembra da permanência do ódio aos judeus, e insiste em tons tolerantes. Nolan declara que os judeus devem impor força contra força, mas Bloom diz ser tudo isso inútil, e se ausenta, para ir ao tribunal, talvez lá ele encontre o M. Cunningham.

     Para o nacionalista os ingleses usam a evangelização para levar o comércio, e o Império. Lenehan insinua que Bloom foi é recolher seu prêmio da Golden Cup, por ter apostado em Throwaway, e lembra do Bantam Lyons. Tudo por causa de um mal-entendido! Bloom não dera qualquer palpite para a corrida... O Narrador se ausenta, vai ao toalete, e quando volta encontra Nolan falando ser de Bloom a ideia dada a Griffith para uma matéria sobre a corrupção no Sinn Fein [gaélico, 'nós mesmos'], partido nacionalista. O narrador tece acusações contra o pai de Bloom.

     Chegam M. Cunningham, Sr. Power e um orangeman [protestante], Crofton. Interpolação agora: a arrogância dos agentes de Sua Majestade. Martin confirma o caso de Bloom quanto ao Sinn Fein, e Noland poergunta por que um judeu não pode amar sua terra como os outros?, e O'Molloy acha que eles, os judeus, não tem certeza sobre qual é a terra deles. Daí uma devassa na ascendência de Bloom, que antes era dispersa em pensamentos e insinuações. Uma interpolação: a despedida solene para um representante húngaro, Lipoti Virag, óbvia alegoria de Bloom, e seu pai, a lembrar que virag, em húngaro, significa flor. (Daí o Bloom, 'florescer', 'florescência', e o Henry Flower...) O nacionalista não poupa ironias, a proclamar Bloom como o Messias da Irlanda, a ofendê-lo em sua ausência. (É assim o julgamento e a condenação à revelia...)

     Outra interpolação : uma procissão, em toda uma parafernália religiosa, com liturgias e santos, com St. Martin of Todi (M. Cunningham), St. Alfred (Bergan), St. Joseph (Hynes), St. Denis (Breen), St. Cornelius (Kelleher), St. Leopold (Bloom), St. Terence (Terry, o barman), St. Edward (Ned Lambert), St. Owen Caniculus (Garyowen, o cão), St. Anonymous (o narrador), St. Marion Calpensis (Marion of Gibraltar, Molly).

     Quando Bloom retorna, é visível a hostilidade. Martim apressa os amigos e todos saem, subindo ao carro. O nacionalista vai gritar na porta do pub vivas a Israel, enquanto Bloom se defende a dizer que o Deus deles era um judeu, aqui em referência a Jesus Cristo. Então mais furores e tumultos. A interpolação final: o evento causa um distúrbio sísmico com repercussões atmosféricas! E Bloom vai no carro, tal como um Elias numa carruagem de fogo. 


 


     O Episódio 13, Nausícaa, remete ao canto VI da Odisseia, quando Ulisses / Odisseu é resgatado no país dos Feácios, ao ser o náufrago desmaiado na praia, por benevolência da jovem e bela princesa Nausícaa, que se divertia na orla com as donzelas amigas. O estilo é romântico e melancólico, deveras descritivo (imagético a sugerir pinturas), com doses de introspecção, quase psicologista, como uma imitação da escrita feminina. Afinal, o foco agora é uma mocinha.

     É o momento do crepúsculo tardio (de verão) na costa de Sandymount, na orla marítima de Dublin, onde as amigas descansam sentadas nas rochas. Cissy Caffrey, com seus irmãos gêmeos Tommy e Jacky, e Edy Boardman, com seu bebê, e a pensativa Gertrud 'Gerty' MacDowell, de uns dezesseis anos, um tanto melancólica. Percebe-se seus suspiros por Reggy Wylie, o rapaz que ronda o jardim, de bicicleta, sob a sua janela. Gerty está magoada com Edy, e desaprova o linguajar indecoroso de Cissy, um tanto vulgar. Meio ao alvoroço das crianças e os suspiros das jovens soam as preces solenes da igreja mais próxima.

O entardecer de verão tinha começado a cobrir o mundo no seu misterioso abraço. Longe no ocidente o sol poente e o brilho derradeiro do dia tão fugaz graciosamente sobre o mar e praia, sobre o orgulhoso promontório do velho e bom Howth guardando como sempre as águas da baía, sobre as rochas cobertas de mato ao longo da praia de Sandymount e, por fim mas não menos importante, sobre a calma igreja de onde ondeava às vezes sobre a serenidade a voz de reza àquela que é em sua pura sublimidade esplendorosa um farol sempre ao atormentado coração do homem, Maria, a estrela do mar.

As três mocinhas amigas sentavam-se nas rochas, aproveitando a cena crepuscular e no ar um tanto frio mas não de dar arrepios. Muitas vezes, com frequência, elas costumavam vir ao favorito recanto a ter um bate-papo aconchegante junto às faiscantes ondas e discutir assuntos femininos, Cissy Caffrey e Edy Boardmann com o bebê no carrinho, e Tommy e Jacky Caffrey, os dois pequenos garotos de cabelos encaracolados, trajando terninho de marinheiro e quepes combinando e o nome H. M. S. Belleisle escrito em ambos. Pois Tommy e Jacky Caffrey eram gêmeos, quase quatro anos de idade e bem barulhentos e gêmeos mimados às vezes, mas, apesar de tudo, queridos camaradinhas com alegres faces brilhantes e com modos afetuosos. Eles estavam correndo na areia com suas pás e baldes, construindo castelos do jeito que as crianças fazem, ou brincando com a grande bola colorida, felizes tanto quanto o dia durava. E Edy Boarman estava balançando o bebê gorducho prá-lá e prá-cá no carrinho enquanto o jovem gentleman rindo sinceramente com satisfação. Ele não tinha mais que onze meses e nove dias e, apesar de ainda uma pequenina criancinha, já começava a balbuciar suas primeiras palavras de bebê. Cissy Caffrey inclina-se sobre ele para apertar sua gorducha pequena bochecha e a mimosa covinha em seu queixo.

trad. by LdeM em http://leoleituraescrita.blogspot.com.br/2010/06/ulysses-ulisses-james-joyce-nausicaa.html

imagens da costa de Sandymount
http://joyceimages.com/episode/13/


     Então eis que surge um cavalheiro, a caminhar ao longo da praia, com ares pesarosos. Aliás, seus trajes são de luto. Gerty pode perceber seu olhar desolado, e se incomoda com o alvoroço das crianças, que para ela não combina com o tom melancólico do crepúsculo. Gerty observa o recém-chegado, e nota que ele também a observa. É como o despertar das paixões adolescentes. Ao redor as preces e as ladainhas litúrgicas se confundem com os gritos dos gêmeos e com os risinhos e sussurros das jovens.

     Insinuações de Edy, seduções de Cissy, mas Gerty não se rebaixa às provocações, está absorta nas nuances do anoitecer, e curiosa com a presença do cavalheiro. Ela vai se deixando envolver pelo tom romântico crepuscular, ali diante do cavalheiro enlutado, até curiosa sobre os pensamentos dele. Há todo uma idealização, o que gera um certo afeto. Quem é aquele que nos observa? Estarei eu a agradá-lo?

     Novos cânticos ressoam, e subitamente explodem fogos de artifício. Cissy e Edy correm para vê-los brilharem sobre as casas. Mas Gerty se contenta em vê-los de onde está. Sua exibição ao 'olhar ardente' do cavalheiro. Este é ninguém mais que o Sr. Bloom, que ali se refugia das hostilidades dos nacionalistas-ciclopes. Ele se deixa seduzir, também com fantasias sobre a bela mocinha. Mas quando a jovem se levanta para alcançar as amigas, ele percebe algo que o incomoda... ela é coxa! Depois da expectativa, a decepção. Mas os sonhos eróticos que vinha arquitetando não se desmoronam, pois mostra-se satisfeito com a atenção da jovem, todavia sem saber o que ela viu nele.

     Bloom pensa se deve se aproximar da mocinha, e como melhor fazê-lo. Ele se lembra da vida boêmia, as boquitas pintadas das prostitutas, mas aí pensa na filha Milly, uma adolescente, em pleno despertar da sexualidade. Será que Milly será igual a mãe Molly? Meio as recordações do dia comum e atribulado, Bloom lembra-se da Sra. Purefoy, internada no hospital. É preciso fazer uma visita.

     O perfume de Gerty ainda paira no ar, e Bloom se percebe como o homem misterioso ao longo da praia, e nisso até pensa no enredo de um conto. Há um sensualidade no anoitecer, e Bloom ironiza a ladainha litúrgica. Enquanto a noite cai as figuras se desprendem das penumbras: as prostitutas, os gigolôs, os notívagos, os que voltam para casa, e ali um jornaleiro apregoa o Evening Telegraph, com os resultados da Gold Cup. Daí Bloom lembra do tumulto na Barney Kiernan, nos que zombam, que deviam é zombar de si mesmos, e também quanto ao anúncio do Sr. Keyes. Ele rabisca ao longo da areia, logo depois apaga o que escreveu. Meio as nove badaladas, surgem morcegos agitados, os padres na ceia, e ao longe a Gerty a pensar em quem seria aquele cavalheiro de sombrias vestes.

     O Episódio 14, o Gado do Sol, é um denso emaranhado de estilos, de paródias, num crescendo, com um tema denso, a Medicina. Arte que é elogiada no hospital-maternidade Casa de Andrew Horne. Trẽs vivas ao iluminado Horhorn. Loas as habilidades das parteiras. Então chega o forasteiro, que já sabemos ser o errante Leopold Bloom, a ser recepcionado por uma irmã-enfermeira, e ele indaga sobre um médico, e é informado sobre o falecimento do mesmo, no que ele medita sobre a efemeridade da vida, do útero ao túmulo. Bloom quer ver a Sra. Purefoy, ali por três dias a sofrer as dores do parto.

     Vozes vindas da sala ao lado chamam a atenção de Bloom. (Ele é chamado para adentrar ao castelo, numa narrativa de tom épico de tradição celta.) A enfermeira pede moderação, em respeito ao recinto. Ali estão e conversam Lenehan, Lynch, Stephen, Madden, Crotters, Franck 'Punch' Costello, e estudantes de Medicina, a esperrem a chegada de Malachi 'Buck' Mulligan. Eles discutem se num parte difícil deve-se salvar a mãe ou o bebê. Concordam que melhor a mãe viver e o bebê morrer. Stephen alega questões religiosas contra o aborto, o apagar de uma chama de uma nova vida. Costello e Crotters zombam, Stephen e Bloom se mantêm moderados. Stephen segue a citar Virgilio, Averois, Maimônides, etc, para defender a precoce formação da alma. Os estudantes indagam a opinião de Bloom que comenta que tanto nascimento quanto morte são proveitosos para a empresa da Madre Igreja.

     Bloom mostra-se preocupado e sério, a pensar no filho que morrera aos onze dias de vida. Seu desejo de um filho recai sobre Stephen, que Bloom vê ali tão afetado e indefeso, a encher os copos e a divagar, incoerentemente, sobre teologias, de Bernardo, Agostinho, etc. Enquanto Costello tumultua com uma canção de escárnio. A enfermeira Quigley pede ordem. Os outros advertem Costelo sobre o lugar de repouso. Mas, entre comentário sobre casamentos e deflorações, Costello interrompe com outra canção vulgar. Soa um sonitroante trovão, e Lynch se assusta e Stephen se encolhe e bebe um trago, humilhado diante do velho 'Paininguém'. (A descrença de Stephen é manifesta no longo monólogo do episódio 3, quando pensa no idioma de Voltaire, "Je ne crois pas en l'existence de Dieu") Stephen vê-se desviado da trilha do 'Crê-em-Mim' ensinado por 'Pio' e 'Casto' por uma dama que lhe apresentou a luxúria. Na 'mansão das mães' seguem os comentários sobre métodos contraceptivos, preservativos, posições sexuais, etc.

     Sob a chuva, Mulligan, que saíra da casa do Sr. Moore, escritor, encontra Alec Bannon, e seguem para a maternidade, onde, indiferentes ao parto difícil da Sra. Purefoy, os boêmios seguem na prosa, em comentários sobre a peste, a febre aftosa que se alastra. Bloom se preocupa, ele que já trabalhara no mercado, no comércio de gado (segundo mencionado nos diálogos dos 'ciclopes' do Episódio 12) A figura do Touro irlandês, símbolo da Fertilidade. De como Lord Harry cismou em tornar-se touro. Então chega o Buck Mulligan, junto a Bannon. Mulligan com seus projetos, o 'fertilizador' e o 'incubador', o combate à esterilidade. A ilha de Parirey: o centro de Fertilidade Omphalus, o obelisco talhado, um símbolo fálico. Uma promessa de fecundação para qualquer mulher a ser possível pela virilidade do próprio Mulligan ! Então o zombeteiro interpela o forasteiro, que, sabemos, é Bloom. Mas este está mais sensibilizado com o estado da Sra. Purefoy.

     Subitamente uma campainha. A srta. Callan aproxima-se para convocar o Sr. Dixon. A presença da bela enfermeira desperta ditos maliciosos. E o Sr. Dixon censura o desrespeito para com a mulher, a figura feminina. E, por extensão, da mãe. todos concordam, e jogam a censura sobre Franck Costello. Ao lado, Bloom parece compreender os excessos dos jovens, mas a atitude de Punch Costello o deixa nauseado, uma vez que Bloom não aprova a zombaria, que ele julga ser uma forma de inferiorizar, ou humilhar, o outro para se sentir superior. É triste a insensibilidade dos presentes, estes frívolos bacharéis que maculam o ofício da medicina, encabeçada por homens nobres.

     Então o anúncio do nascimento, com todas as discursividades, entre medicina e casos jurídicos, de obstetrícia e medicina forense. Uma alucinação de Mulligan? Haines confessa ser o assassino de Samuel Childs. Reminiscências de Bloom, sobre a idade da alma do homem, com o jovem Leopold rumo a escola secundária, com o primeiro chapéu, a pensar numa noite na rua Hatch, a primeira garota. Entre brumas crepusculares vê Martha, a imaginá-la, claro, até Milly, a 'rainha das Plêiades', e outras imagens astrológicas.

     Francis recorda a Stephen o tempo em que frequentavam a escola de Padre Conmee, mas Stephen não quer saber de fantasmas do passado. Ao redor a prosa segue solta, comentam sobre a derrota de Sceptre na Gold Cup, enquanto outros debates (em acadêmica erudição) se sucedem, com Stephen em defesa da objetividade e do pragmatismo da ciência. A questão da determinação do sexo: depende dos ovários ou dos espermatozóides? Várias teorias. Mulligan denuncia as péssimas condições sanitárias dos cidadãos, expostos a várias enfermidades. Também critica a poluição visual dos anúncios e sugere pinturas coloridas e esculturas de beldades. Crotters denuncia a atarefada vida das operárias, que não podem se dedicar aos cuidados com as crianças. A prática do aborto é frequente e também o abandono de recém-nascidos. Lynch aborda a questão, não esclarecida, de porque alguns bebês, nascidos sãos, de pais saudáveis e famílias idem, alguns sobrevivem e outros não. Será a presença de microorganismos patogênicos? Seria benéfico à raça, assegurando que só os mais aptos sobrevivam?

     Stephen abre uma interrupção, com a questão da alimentação e da nutrição, a colocar sob suspeita a qualidade da carne, desde o matadouro até o cozimento. Bloom e sua recente controvérsia com o Dr. A. Horne sobre a prática do aborto. O labor da parturiente: veneração do fruto do próprio ventre: olhares amorosos ao Marido. A Sra. Purefoy, no entanto, não conta com a presença de seu marido, Theodore 'Doady' Purefoy, enquanto Bloom lembra dos outros filhos do casal Purefoy.

     Seguem-se recordações confusas. O que se oculta nos corações humanos. Uma criança na manjdoura de Belém. Stephen conclama os presentes a se retirarem, e eles seguem, em certo tumulto, até a portaria. Bloom, ao ver a enfermeira Callan, confia-lhe um recado de congratulação a Sra. Purefoy. O ar úmido da noite convida todos os estudantes à farra, e eles avançam pelas ruas, em algazarra, sedentos de uma boa bebida. Tem início a alucinação em estilo expressionista, na zona boêmia.

     É o episódio 15 não escrito em prosa mas em drama, como um teatro expressionista, com tons do mestre Ibsen, meio alucinado, com várias personagens que se encontram e se estranham, num ambiente meio penumbroso, com a figura da rainha das putas, uma espécie de Circe, a bruxa da helênica Odisseia, a enfeitiçar os homens. É um longo e confuso episódio (na tradução do Houaiss são 150 páginas) num estilo vertiginoso de presenças e referências. Até o Bardo inglẽs aparece numa imagem no espelho...

     Estamos na rua Mabbot, na zona boêmia, pouco antes da meia-noite. Lá as prostitutas provocam os transeuntes. Crianças desamparadas correm entre os guardas-noturnos. Stephen e Lynch, atentos às provocações das putas, passam junto a alguns soldados. Bloom anda apressado, entra num açougue. Depois avança para a rua com um embrulho, a transitar entre os bondes, e quase é atropelado. Ele segue rapidamente, a desviar-se de passantes, sempre no encalço de Stephen. É que Bloom lembra-se do pai, e de seus conselhos e repreensões, daí a culpa. Ele sente também o olhar acusador de Molly. Por isso ele se desvia das putas e suas provocações.


Serpentes da névoa do rio rastejam lentas. Desde os esgotos, fendas, fossas, lixões sobem de todos os lados fumos estagnantes. Um brilho saltita no sul além da direção do mar alcança o rio. O estivador cambaleante adianta racha a multidão e oscila adiante até o desvio dos trilhos. No lado mais afastado sob a ponte da ferrovia Bloom aparece afogueado, ofegando, pão embrulhado e chocolate num bolso lateral. De uma janela do cabeleireiro Gillen um retrato composto mostra-lhe a galante imagem de Nelson. Um espelho côncavo ao lado apresenta-lhe desolado-de-amor há muito perdido lúgubre Booloohoom. O solene Gladstone vê a ele ao nível, Bloom por Bloom. Ele passa, golpeado pelo olhar fixo de truculento Wellington, porém no espelho convexo sorriso amplo não-golpeados os olhos de porquinho e queixo-gordo pedaço-de-bochecha de alegre-poldy o rixdix doldy.

Diante da porta de Antonio Rabaiotti, suado, Bloom faz uma pausa, sob as brilhantes lâmpadas em arco. Ele desaparece. Numa momento ele reaparece e se apressa.)

BLOOM: Peixe e trapos. N.g. Ah!

(Ele desaparece dentro da Olhousen's, o açougue [de carne suína], sob o declinante porta-de-aço. Uns poucos momentos mais tarde ele emerge de sob a veneziana, arquejante Poldy, resfolegante Bloohoom. Em cada mão ele carrega um pacote um contendo uma tépida pata de porco, o outro, uma fria perna de carneiro, borrifada com pimenta inteira. Ele ofega, mantendo-se de pé. Então inclina-se para um lado, comprime um pacote contra a costela e geme.)

BLOOM: Pontada aqui do lado. Por que eu corri?

(Ele toma fôlego com cuidado e segue adiante lentamente rumo ao desvio junto ao lampião. O brilho salta novamente.)

BLOOM: O que é aquilo? Um relâmpago? Holofote.

(Ele para na esquina da Cormack's, observando.)

BLOOM:
Aurora borealis ou uma fundição de aço? Ah, a brigada, claro. Em todo caso lá pros lados do sul. Grande brilho. Deveria ser a casa dele [Blaze, brilho = Blaze Boylan]. Moita de mendigo. Estamos salvos. (Ele cantarola mudamente com satisfação) Londres em chamas, Londres em chamas! Em chamas, em chamas! (Ele tem a visão do estivador cambaleando através da multidão no lado mais afastado da rua Talbot) Eu o perdi. Corre. Rápido. Melhor atravessar aqui.

(Ele se apressa para cruzar a rua. Uns moleques gritam.)

OS MOLEQUES: Preste atenção, senhor! (Dois ciclistas, com iluminadas lanternas de papel oscilando, passam por ele, raspando, com as sinetas tagarelando.)

AS SINETAS: Ooooppaaaaaaltooooolaaaaá !

BLOOM: (Ele para erguido picado por um espasmo) Opa!

(Ele olha ao redor, apressa-se adiante subitamente. Através da névoa que sobe um dragão espalhador-de-areia, viajando com cuidado, cai pesadamente sobre ele, seu grande rubro farol piscando, seu vagão assobiando no fio. O condutor golpeia sua buzina. )



trad. by LdeM

em http://leoleituraescrita.blogspot.com.br/2011/06/bloom-na-zona-boemia-ulysses.html



     Mas eis que surge a Sra. Breen, o que deixa Bloom constrangido, e logo tenta desculpar-se, mas logo entram num diálogo dissimulado e sensual. Houve realmente um affair entre eles, como foi insinuado no episódio 8, mas é no início do monólogo de Molly que o caso é relembrado - e censurado. Contudo, Bloom segue adiante à procura de Stephen. Aí é abordado por policiais. Alucinação: um julgamento. Bloom encontra a puta Zoe. Ouve o badalar da Meia-noite saudando-o como Prefeito de Dublin. Alucinação: a ascensão e a queda da carreira política de Bloom. O 'judeu errante' suporta a língua venenosa do basilístico Virag, que lhe apresenta as putas. Ele é dominado, em ato sadomasoquista, pela rameira-mor Bella Cohen. Metamorfoseado em vaca-cadela? Bloom discursa sobre a Infidelidade: Fragilidade, teu nome é casamento, numa paródia da fala de Hamlet. (Também a paródia na fala de Lenehan, no episódio 12, ao comentar a corrida de cavalos, 'Inconstância, teu nome é Sceptre')

     Uma lascívia faúnica, com Bloom-fauno e uma ninfa. Alucinação 'pagã' interrompida pelos chamados das putas, ao longo das ruas, onde Bloom segue meio às alucinações. Assoma a figura dominadora de Bella Cohen, mas Bloom se recompõe e enfrenta a caftina. Enquanto isso, Stephen 'mão aberta' vai gastar todo o seu dinheiro com as putas, mas Bloom aborda o jovem, diretamente, chamando-o à prudência. Noite adentro, até os padres chegam para assombrar Stephen, tal como o capítulo sobre as chamas do inferno, em Retrato do Artista quando Jovem. Surgem informações que possibilitam avaliar as idades de Bloom e Stephen, uma vez que o primeiro é dezesseis anos mais velho, logo tem 38 anos, pois Stephen tem 22.

     Em alucinações até Boylan aparece para humilhar Bloom, ao sugerir que o marido traído olhe pela fechadura enquanto o amante transa com a esposa infiel, e que disso se aproveite para se masturbar. Daí Stephen e Bloom se miram em um grande espelho, onde surge a face do bardo Shakespeare, 'coroado' pelo reflexo do galhado cabide de rena. Quanto a Stephen, ele é assombrado pela mãe, assim como Hamlet diante do espectro do pai, o rei assassinado na tragédia shakespeariana. Stephen lembra-se de Mulligan, quando o zombeteiro disse, logo de manhã, que a mãe dele estava 'bestialmente morta' - assim como no episódio anterior, o 14, Mulligan foi assombrado por Haines.

     Caos, a noite primeva, um tumulto, alguém quebra uma vidraça. Stephen apressa-se em sair dali. Bloom segue o jovem, e sendo perseguido pelas recordações do dia. Logo uma multidão, ali aglomerada ao redor de Stephen e dois soldados ingleses. Bloom, tratando Stephen como professor, vem interceder em seu favor, a pedir paciência aos homens-da-lei. Até um sombrio rei Edward VII, o soberano inglês, aparece! Claro que os soldados são considerados uns paus-mandados ingleses, ainda mais por nacionalistas como o 'ciclope' do episódio 12.

     A dupla-face da História: a traidora palestina Rahab vira heroína na narrativa dos judeus, os vencedores. Se vencedores fossem os palestinos, Rahab seria uma infame proscrita. Na História -- pesadelo, para Stephen - é assim, o perseguido de ontem pode ser o perseguidor de hoje, e a versão final é sempre dos vitoriosos. Assim borbulha o patriotismo de Stephen, e Bloom o defende. Mesmo que a Irlanda seja uma velha porca a devorar os próprios filhotes.

     Outra alucinação: Dublin em Chamas. Clamores de guerra - será uma invasão inglesa? Ou uma missa satânica (black mass) com um cálice sobre o ventre inchado de Mina Purefoy? De volta a realidade, o soldado Carr golpeia Stephen, que cai junto a um muro. Chegam os guardas, que ameaçam enquadrar Stephen. Novamente Bloom intervém, e aparece Corny Kelleher, que trata de abafar o caso. A turba se dispersa, e Bloom carrega Stephen para a carruagem de Kelleher. Bloom até tenta explicar o caso, a forçar um sorriso. Ele agradece e se despede de Kelleher. Em seguida tenta despertar Stephen, que se assusta com aquele senhor ao seu lado, e começa a murmurrar versos desconexos. Diante de Bloom uma alucinação dolorosa: a figura de um garoto de onze anos, Rudy, seu filho, caso estivesse sobrevivido.

     Daí em diante Leopold adota Stephen como um filho, e seguem pelas ruas até a casa dos Bloom. São os episódios finais.





continua ...


>>> parte 3




abr/16


by Leonardo de Magalhaens





mais info em

http://www.shmoop.com/ulysses-joyce/summary.html





Referências


ELLMANN, Richard. James Joyce. São Paulo: Globo, 1989.

JOYCE, James. ULISSES. trad. Antonio Houaiss. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

___________ . ULISSES. trad. Bernardina Pinheiros. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005

___________ . ULISSES. trad. Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2012

___________ . Ulyssses. London, Penguin books, 1971.




terça-feira, 3 de maio de 2016

sobre ULISSES de James Joyce - parte 1





sobre Ulisses [Ulysses, 1922]
do autor irlandês James Joyce [1882-1941]


A antiepopeia dos dramas cotidianos do homem comum


Introdução

     Ulisses, obra-prima, por suas técnicas e caracterizações, inspirou várias obras no século 20, seja pelo uso do monólogo interior, o fluxo de consciência, a confusão entre enunciados do Narrador e o acesso às consciências das personagens, seja pela multiplicidade de estilos, ora narrativo, ora dramático, ora solilóquios, ora questionário, ora alucinações a la expressionismo, ora em 3ª pessoa, onisciente, ou em 1ª pessoa, egocêntrica. Ou ainda, pela experimentações com a linguagem, em trocadilhos, arcaísmos, neologismos, etc.

     Assim não é difícil rastrear influências em obras de Dos Passos, Alfred Döblin, Jean-Paul Sartre, Anthony Burgess, Italo Clvino, Umberto Eco, Salman Rushdie, para citar alguns. Experimentações com estilo e jogos de linguagem, onde a literatura fla de si mesma, autorreferencial, é uma marca da ficção do pós-moderno, como apontam alguns críticos. Não entraremos no mérito aqui, apenas mostramos como a obra iconoclasta de J. Joyce se intrometeu, enquanto petardo da vangurada, na modernidade para formar outra tradição.

     Do que trata o romance ou anti-romance? De um mosaico de cenas, personagens e alusões. De um episódio a outro mudam-se os horários, os locais, o foco narrativo, o estilo - ora mais lacônico, ora mais verborrágico, ora mais didático, ora enciclopédico, ora folclórico, ora mais hermético, em digressão, em interpolações, e se evidenciam os paralelos / paródias com o poema épico, ou epopeia, Odisseia, do grego Homero, com o filho a procura do pai (Telêmaco), o pai em busca do filho (Ulisses, ou Odisseu), os entorpecidos lotófagos, as sedutoras sereias, a perversa Circe, a fiel (aqui, infiel) Penélope.

     De início, logo avisamos, este artigo, em MEU CÂNONE OCIDENTAL, não pretende ser um guia de leitura de Ulisses - pois existem alguns, até online, vide links - mas a minha leitura da obra. Para além do aspecto lúdico, paródico ou iconoclasta, há uma série de dramas humanos, demasiado humanos. Temos um rapaz que vive entre uma Irlanda tradicional, provinciana, e uma Europa cosmopolita, a viver em conflito com a família - a mãe religiosa e o pai beberrão. É o Stepehn Dedalus, que conhecemos em Retrato do Artista quando Jovem (link para o meu artigo publicado em MCO aqui: http://meucanoneocidental.blogspot.com.br/2012/04/sobre-retrato-do-artista-quando-jovem.html ), ao lado de um homem adulto, de ascendência judaica centro-europeia, a viver entre nacionalistas irlandeses, fenianos até, que suspeitam de ingleses e também de judeus, ele um pai a sofrer com a ausência dos filhos, o menino falecido e a mocinha distante, com a esposa fria e infiel, igualmente descendente de judeus, da área hispânica, que vive uma carreira artística à parte, enquanto Bloom sobrevive numa rotina mesquinha, a agenciar anúncios comerciais para o jornal local.

     Tudo acontece - o relatado - em menos de vinte e quatro horas numa Dublin provinciana, desde o despertar de Stephen e de Leopold, personagens reais e humanas, ainda que excessivamente literárias, feitas de retalhos de estilos, metalinguagem, intertextualidades, epifanias, as alusões as mais herméticas, de história a cabala. Personagens que emocionam, mais do que intrigam, vivem além das referências e digressões.

     Além do barroco, do excesso estilístico, com alusões e referências, o que J. Joyce quer denunciar é a pequenez da Irlanda, o provincianismo, entre os nacionalistas e os britânicos, o drama dos cidadãos comuns, a xenofobia contra os judeus - Bloom e sua peregrinação de 'judeu errante' - e a mesquinhez cotidiana, entre os preconcietos e falsos moralismos.

     Muitas leituras de Ulisses têm foco na linguagem vanguardista, ou nos jogos de palavras, ou no caos do fluxo de consciência, e se esquecem dos dramas que presenciamos. Stephen, o jovem professor, é mais do que uma projeção de Joyce, é alguém que sofre com seu idealismo, que, em vão, sente-se anticlerical e cosmopolita. Perambula a digerir ideias, teorias, conceitos, filosofias, teses teológicas, estéticas, poéticas, históricas, a remoer-se com remorsos, por omissão ou evasão de seus dramas familiares.

     Enquanto isso, Leopold, o Sr. Bloom, vive na provinciana Dublin, entre as personagens que já conhecemos de Dublinenses, coletânea de contos, muitos baseados em fatos e pessoas reais, transmutados, transfigurados pela escrita, que sofriam com a ironia de Joyce a apresentá-los como seres literários. Assim Martin Cunningham, Tom Kernan, Sr. Lehenan, Sr. Power, dentre outros. Assim até o líder Charles Parnell [1846 - 1891], figura icônica para os nacionalistas, aparece em alusões de humor corrosivo. Mas o tom de Ulisses não é só sarcasmo, pois há muita amargura e melancolia nesta obra-prima da paródia-antiepopeia.

mais sobre Dublinenses em
https://falandoemliteratura.com/2015/01/11/resenha-dublinenses-de-james-joyce/


     Agora a questão das traduções. Qual tradução é a melhor? Temos o trabalho com a linguagem na de Antonio Houaiss, temos o coloquialismo na de Bernardina Pinheiros, temos as novidades, entre o erudito e o moderno, na de Caetano Galindo. Nenhuma tradução é a melhor, assim como nenhuma substitui a leitura da obra original - com todo o esforço de atravessar o emaranhado da língua inglesa, acrescido dos espinhos dos arcaismos, neologismos, trocadilhos [paranomásias], que tornam a trilha bem árida.

     No original, confeso que consegui ler até o episódio 7 [Éolo], com suas manchetes de jornal e exageros retóricos, ironias com o jornalismo. Depois, precisei recorrer a tradução de Houaiss, e tentar traduzir alguns trechos - o que ousei a partir de cinco episódios [Calipso, Hades, Nausícaa, Circe e Itaca], já divulgados em blogs em épocas de Bloomsday.

     O que deixa a leitura - e a ousadia da tradução! - mais difícil é a profusão de alusões à história europeia ou as citações de autores os mais diversos - filósofos, eruditos, políticos, etc. E não bastasse o english entre o padrão e o dialetal, entre o erudito e o coloquial, entramos em contato com expressões, provérbios, citações em latim, grego, irlandẽs [gaélico], francês, italiano, alemão, que exigem atenção / decodificação no contexto, seja digressão, ou associação livre, pensamento filosófico ou político, pois muitas parecem 'gratuitas', contudo fazem parte de um raciocínio - ou mero devaneio - maior, que 'faz sentido' para a personagem (o que foi vivido ou lido, ou ouvido ou discutido) e para nós, leitores, surgem como enunciados deslocados.

     Posto isto vamos para a narrativa, o que aconteceu (e que gerou quase mil páginas!) no dia 16 de junho de 1904 nas ruas de Dublin, cidade escolhida por questões de 'geografia sentimental', como diria Pedro Nava, onde o autor conhecera sua esposa, exatamente nesta data. É possível recriar a cida somente com as descrições de ruas e esquinas, pontes e igrejas, pubs e escolas, segundo certos leitores. Seria interessante, e divertido, ter o mapa de Dublin em mãos, mas não é obrigatório.


Preliminares

     Primeiramente, um contexto histórico. A Irlanda, ou Eire, o povo irlandês, de cultura céltica, e culto católico, resiste aos avanços imperialistas ingleses desde o século 17, época da Guerra civil, do líder puritano Oliver Cromwell (1599-1658), chefe do Parlamento contra os reis absolutistas, quando o conflito anglicanos X católicos se intensificou, como percebemos em pleno século 20, na Irlanda do Norte, onde as ruas de Derry, a noroeste da capital Belfast, foi cenário do hediondo Bloody Sunday (30 janeiro 1972) quando tropas inglesas atacaram a população irlandesa. Drama que se arrasta por três séculos, um conflito étnico, religioso e territorial - a ponto de gerar forças armadas, milícias e guerrilhas, de lado e de outro, ingleses monarquistas contra o IRA (Exército Republicano Irlandês), ligado ao partido político Sinn Fein [Nós mesmos], considerado ilegal pelos britânicos (que ao 'anexarem' a Irlanda do Norte, junto com a Escócia e o País de Gales criaram o Reino Unido).

     Estas questões sobre nacionalismo, separatismo, movimento feniano, imprensa livre, identidade irlandesa estão ao longo de toda a obra, numa contextualização que exige conhecimento enciclopédico histórico - hoje facilitado pela Wikipedia, à disposição - a ponto de somente ser compreensível um trecho, uma fala, um discurso, um solilóquio, por um detalhe de uma batalha, ou uma anexação, ou uma abdicação ou um regicídio.

     Também é interessante ter um conhecimento básico sobre mitologias grega e céltica, pois alusões surgem aqui e ali, e como se trata de um paralelismo paródico com a epopeia [poema épico] Odisseia, do clássico Homero [que viveu cerca de nove séculos antes da Era Cristã], é bem proveitosa uma leitura dinâmica da Odisseia, que narras as aventuras e peripécias de Ulisses / Odisseu [o irascível] depois da vitória sobre os troianos, na real & mítica Guerra de Troia [narrada em Ilíada, também atribuída a Homero], na qual Ulisses / Odisseu inventou o estratagema famoso, e vitorioso, aquele do grandioso cavalo de madeira, onde se esconderam soldados gregos. 


 

O que acontece

     Nos trẽs primeiros episódios [a Telemaquia] acompanhamos o jovem professor Stephen Dedalus, o Telêmaco que vive na Irlanda do primórdio do século 20, cheio de inquietações existenciais [um proto-existencialista, a la Camus?] que indaga - e se indaga - sobre tudo.

     Do alto de uma das torres Martello, ao longo do litoral, encontramos o sarcástico Buck Mulligan se barbeando, daí aparece Stephen, que se mostra ofendido com o deboche do amigo - que diz estar a mãe de Dedalus 'bestialmente morta' - deveras inoportuno, visto o sofrimento de Stephen, em remorsos pela morte da mãe. Durante o café da manhã, Stephen conversa com o estudante inglês Haines, mui interessado na cultura irlandesa. Mulligan insiste para que Stephen faça um empréstimo com Haines, mas o jovem irlandẽs resiste, não quer ficar em dívida com um inglês, a figura do dominador. No mais, ele se lembra de seu pagamento lá no colégio.

     Logo, surge uma velha leiteira, uma figura popular, a representar a velha Irlanda, com seus 'causos', em conversas sobre a vida campestre, meio as referências a peça Hamlet, de William Shakespeare, o bardo inglẽs. Daí uma conversa possível entre um irlandês e um inglês, sobre nacionalismos, culpa histórica, domínio religioso, quando Stepehn se confessa ser um servo de dois senhores: o Império Britânico e a Igreja Católica Apostólica Romana. Como servir a César e a Cristo?

     No episódio seguinte, podemos assistir a aula de Stephen no colégio sobre o Império Romano, as vitórias sofridas de Pirro, rei macedônio, enquanto observa as tiradas e digressões dos alunos, que logo são liberados para as práticas esportivas, para alívio deles. Stephen está preocupado com o pagamento, logo se dirige a sala do diretor Sr. Deasy, a figura do velho Nestor, que retorna ao assunto nacionalismo, com certa descrença em mudanças. Stephen também anda descrente, para ele "a História é um pesadelo do qual estou tentando acordar" ("History is a nightmare from which I am trying to awake", Episode 2, p. 40, no original). Entre uma citação ou outra de Shakespeare, com a figura ambiciosa de Iago [da peça Othelo], Stephen recebe o pagamento e o Sr. Deasy solicita ao professor que entregue um texto de autoria do diretor, sobre o problema da febre aftosa, a redação do jonral Freeman's.

     No terceiro episódio - Protheus - temos acesso aos pensamentos de Stephen Dedalus enquanto perambula pela praia de Sandymount, em denso monólogo interior, misto de questões filosóficas, como os dualismos visível e invisível, realidade e ilusão, mescladas às recordações pessoais e familiares, vem como a temporada em Paris - para onde ele partiu no final de Retrato do Artista quando Jovem, como bem lembramos. A questão da presença do Absoluto num mundo em constante metamorfose - tal o poder de Proteu, deidade marinha - como o incessante ondular das águas do mar. Junto a ele um cão brinca na praia, enquanto o jovem medita sobre o mar e a morte nas águas, justamente quando vẽ um navio se aproximar, com trẽs mastros, no horizonte.

     Então entra em cena o Sr. Leopold Bloom, ao despertar, planejando o desjejum, que ele gosta de carne, de vísceras suculentas. É o episódio 4, Calipso, em referência à ninfa que abrigou Odisseu, onde conhecemos o lar do protagonista. Pouco sobre ele, mas é só começo. Ele prepara café e presunto, com fartura, enquanto 'conversa' com a gata de estimação, que responde animada. É uma cena doméstica, caseira, sem rebuscamentos. No que muito se diferencia da anterior e da posterior. É uma cena de apresentação.

     Uma caminhada até o açougue, e na volta algumas cartas sob a porta, algumas para Bloom, de sua filha Milly e outras para Molly Bloom, a esposa, ainda deitada. O marido entrega as cartas, prepara o café da manhã, servindo-a na cama, a comentar sobre o funeral de Patrick 'Paddy' Dignam, que será mostrado no Episódio 6, Hades. Por enquanto, o Sr. Bloom está na privada, lendo um conto premiado do Sr. Purefoy, com o qual faz questão de limpar-se.




     No Episódio 5 temos os lotófagos, os entorpecidos, os desmemoriados, segundo narrativa em Odisseia. Mas na Dublin do século 20 o Sr. Bloom perambula pela cidade, rumo a agência dos Correios. Lá uma carta de Martha Clifford para Henry Flower, um pseudônimo de Bloom. Andando, Bloom encontra Charlie M'Coy, que apareceu no conto "Grace" [Graça] de Dublinenses, quando do acidente de Tom Kernan, ocorre um breve diálogo e depois Leopold segue para a missa, onde se deixa entre divagações sobre os ritualismos, onde é de se pensar se os lotófagos são os religiosos, entorpecidos pelas crenças e dogmas.

     Mas consideremos que na Irlanda adotar o catolicismo é uma forma de resistência ao anglicanismo inglês (imposto desde o século 16, quando o rei Henrique VIII rompeu com o papado romano), assim como na Polônia ser um católico é enfrentar os ortodoxos russos e os protestantes alemães. Contudo, a religião enquanto protesto não faz sentido para Bloom, sendo nem católico nem protestante. Para ele ser religioso seria adotar o judaísmo de seus antepassados centro-europeus, em diáspora. Eis outro motivo de seu deslocamento entre os dublinenses.

     Em seguida, ainda no mesmo episódio, Bloom vai a uma farmácia para comprar um sabonete. Ao sair, ele esbarra em Bantam Lyons, interessado numa corrida de cavalos, a Ascot Gold Cup. Ocorre um ruído de comunicação - Bloom disse que vai jogar fora [throw it away] o jornal - e o sujeito, achando que é um 'palpite', resolve apostar no cavalo Jogarfora [Throwaway]. Logo se afastam. Leopold tem pressa. Mas nada que um bom banho não resolva.

     Mais cidadãos de Dublin - e personagens de contos de Dublinenses - aparecem no Episódio 6, Hades [onde, no canto XI, Odisseu descera em evocações aos mortos], com o cenário do Cemitério Glasnevin, onde a narrativa torna-se mais complexa, mais digressiva. Os episódios aneriores são meros degraus para os que ora se iniciam e se prolongam. No mais, personagens do episódio 6 reaparecerão nos episódios 7, 8 e 10, num crescendo de enredo e referências. O episódio 9 é mais intelectual, com foco em Stephen Dedalus na Biblioteca, como veremos.

     Personagens dos contos "Graça" e "Dia de Hera na Lapela", Martin Cunnigham, Jack Power, Simon Dedalus, e o Sr. Bloom seguem numa carruagem rumo aos funerais de Paddy Dignam, a cruzarem por pontes sobre quatro rios, Dodder, Canal Grande, Lifey e Canal Real, como os rios do Hades, o Mundo Inferior [São cinco rios, segundo a mitologia, Aqueronte, Flegetonte, Letes, Cócito e Estige]. Surgem comentários sobre luto e suicídio, e quando fala em suicidas o Sr. Dedalus, o pai de Stephen, fita por momentos o Sr. Bloom, que assim perdera o pai. Em seguida, Bloom avista Stephen ao longe, e após comentário, o Sr. Dedalus deixa claro não concordar com a amizade entre Stephen e Mulligan.

     No Glasnevin Cemetery ele encontram Tom Kernan, John H. Menton, Ned Lambert e Corny Kelleher, o agente funerário. Ocorre uma breve missa de réquiem. Menton indaga Lambert a respeito de Bloom. Acontece finalmente o enterro de Dignam, enquanto divagamos sobre a finitude, o ser humano mortal, em referências até aos coveiros de Hamlet (peça de Shakespeare). Joe Hynes, repórter, nacionalista, feniano, convida os demais para verem o túmulo de Charles Parnell, o líder de outrora. Mas Leopold avista os túmulos como imagens sem glamour.

Pobre Dignam! Por fim, ele descansa na terra em sua caixa.
Se pensar bem, é até desperdício de madeira. Apodrecem
todos. Poderiam inventar um belo carro fúnebre com um tipo
de painel deslizante para depositá-los abaixo. Mas poderia se
recusar a serem enterrados sem o companheiro de sempre.
Tão individualistas. Deixem-na terra nativa. Punhado de barro
da terra santa. Apenas mãe e criança natimorta são enterrados
no mesmo caixão. Vejo o que significa. Vejo. Proteger o quanto
possível mesmo na terra. A casa do irlandês é no caixão.
Embalsamado em catacumbas, múmias, a mesma ideia.

O Sr. Bloom ficou para trás, o chapéu em mãos, contando as
cabeças desnudas. Doze. Sou o treze. Não. O cara do imper-
meável é o treze. O número da morte. Onde o sujeito se meteu?
Juro que ele não está na capela. Ridícula essa superstição
com o treze.

É de fina lã o terno de Ned Lambert. Tonalidade roxa. Vestia
um assim quando vivemos na rua Lombard oeste. Ele já foi
um cara bem vestido. Mudava de terno três vezes ao dia.
Devia recuperar aquele terno verde que ficou com o Mesias.
Olá. Está tingido. A mulher dele, ah, esqueço que ele não é
casado ou a senhoria dele devia ter reconhecido o tecido para
ele.

O caixão mergulhou fora das vistas, abaixado fácil pelos homens
apoiados nos cavaletes da cova. Eles se esforçam: e tudo está
coberto. Vinte.

[...]

Os coveiros usam suas pás e arremessam pesados torrões de barro
para cima do caixão. O Sr. Bloom desviou a face. E se ele estava
vivo todo este tempo? Quê! Pelos céus, seria pavoroso! Não, não:
ele está morto, claro. Claro que ele está morto. Na segunda-feira
ele morreu. Devia ter uma lei para alfinetar o coração para ter
certeza ou um dispositivo elétrico ou um telefone no caixão e
algum tipo de tela com entrada de ar. Bandeira de aflição. Três
dias. Mais tempo a conservá-los no verão. Tão logo são fechados
logo se convence de que não existem.

A terra cai mais suave. Começa a ser esquecido. O que os olhos
veem, o coração não sente. Longe da visão, longe do coração.


[tradução by LdeM]
http://leoleituraescrita.blogspot.com.br/2009/06/bloomsday-hades-trecho-em-ulysses.html



     Assim até o fim do episódio 6 sabemos mais sobre Leopold Bloom, obcecado por imagens da morte. Ele, o filho de um suicida e pai de um menino falecido. Ele é um corretor de anúncios, ex-caixeiro-viajante de mata-borrões ('blotting-paper'), cujo pai, outrora dono de hotel, se matara envenenado. Ele é casado com Marion Tweedy, a Molly Bloom, uma soprano de algum sucesso. Ele tem um affair, digamos, caso amoroso, através de cartas, com a Sra. Martha Clifford, para isto usando o elegante pseudônimo de Henry Flower.


ruas de Dublin em fotos ::
http://www.emsah.uq.edu.au/old-site/ulysses/index.htm

http://www.irishcentral.com/culture/entertainment/bloomsday-tracing-james-joyces-ulysses-through-the-streets-of-dublin-photos-159232695-237598011.html


     Éolo, o episódio 7, é construído com manchetes de jornais, paródias de editoriais, mesmices retóricas e clichês de imprensa, como um modo de mostrar o frenesi no cotidiano de Dublin. Na redação do jornal Freeman's Bloom encontra Red Murray, e recebe um recorte de anúncio. Há o obituário, escrito por Hynes, sobre Paddy Dignam. Chega, em seguida, transpirando arrogância, o dono do jornal, Sr. William Brayden. O frenesi da imprensa: as máquinas alucinadas na redação.

     Bloom apresenta a Nannetti, o gerente comercial, o anúncio do Sr. Keyes. em seguida, ele adentra o escritório do editor, onde estão o Sr. Dedalus, Ned Lambert (lendo o texto do discurso deveras retórico de Dan Dawson), o professor MacHugh, a mordiscar um biscoito. Chega então Jack J. O'Molloy a procura de um empréstimo, mas indiferente Lambert continua apregoando a retórica rebuscada do texto. Chega o editor Myles Crawford. Há uma certa 'dispersão', quando Sr. Dedalus e Lambert saem para um drink. É mesmo uma redação tumultuada. Entra Lenehan a trazer algumas provas e uma folha esportiva sobre a corrida de cavalos (Ascot Gold Cup) e arrisca um 'palpite', o cavalo Sceptre. Então Bloom dá um telefonema e dá o fora, para acertar a renovação dos anúncios do Sr. Keyes. Na sala do diretor pululam divagações sobre o Imperium Romanum (of Britain). Várias referências aos celtas, povos que originaram os irlandeses.

     Aí chega Stephen Dedalus, acompanhado por O'Madden Burke, a trazer o artigo do Sr. Deasy (sobre febre aftosa, como vimos no episódio 2). Mas continuam as divagações, com o diretor Crawford a sugerir a Stephen um texto, e a lembrar furos jornalísticos, como aquele do Sr. Ignatius Gallagher e sua reportagem sobre os assassinatos do parque Phoenix. [Parque que será cenário em Finnegans Wake, a obra seguinte - e mais iconoclasta - de J. Joyce] Já Jack O'Molloy vê a decadência da eloquência, pois "Suficiente para o dia é o jornal mesmo" (Sufficient for the day is the newspaper thereof. Episode 7, p. 140) De fato, há gente satisfeita em ler os jornais matutinos e nada mais... E o professor MacHugh traça seu elogio a Oratória, referindo-se a um discurso de John Taylor.

     Stephen sugere uma rodada, uns drinks na hora do almoço. Saem Stephen e MacHugh - falando sobre 'virgens vestais' - e depois Crawford e J. J O'Molloy. Na rua eles encontram Leopold apressado, sem fôlego, a insistir na questão dos anúncios do Sr. Keyes. Os senhores não lhe dão muita atenção, e o grupo segue adiante. Pelas ruas de Dublin, meio aos ditos informais, os mais diversos, Stephen nara uma singela parábola sobre a Terra prometida. A mesma Agendath Netaim, lá na distante Palestina, que atrai os pensamentos de Bloom.



 
    Vamos seguir todos para o Episódio 8, os Lestrígones. Na Odisseia helênica são gigantes antropófagos que atacam a frota de Ulisses, aqui são cidadãos esfomeados que correm para o almoço. Pensamentos se sucedem enquanto Bloom vagueia rumo a um restaurante. Sobre o quê? A família Dedalus, os anúncios, os outdoors, o prato do dia. Então ele se encontra com a Sra. Breen, e ela nota o traje de luto, e ele comenta a morte do Sr. Dignam. Ela fala sobre a gravidez complicada de Mina Purefoy. [Saberemos mais sobre este drama do parto no Episódio 14, que se passa no hospital.] Mas continua a prosa da Sra. Breen, a comentar sobre a senilidade do marido, a zombaria que fizeram com ele.

     Enquanto isto passam as figuras das ruas de Dublin, tais como o excẽntrico Sr. Cashell Boyle Farrel. E os guardas desfilam. E o movimento feniano, a resistência nacionalista, sobrevive aos delatores. Assim morte e vida. Tantos morrem, outros tantos nascem. Encontra-se um tanto deprimido pela instabilidade e voracidade da vida, ainda mais naquela hora de 'matar a fome'. (Fome mais que uma palavra para os irlandeses, que sofreram com terrível carẽncia de alimentos em meados do século 19) "Esta é a pior hora do dia. Vitalidade. Entorpecente, melancólica: odeio esta hora. Estou a me sentir como se tivesse sido devorado e regurgitado." (trad. by LdeM. Original: This is the very worst hour of the day. Vitality. Dull, gloomy: hate this hour. Feel as if I had been eaten and spewed. Episode 8, p. 164)

     Bloom observa os transeuntes, dentre eles o Sr. John Howard Parnell, irmão do conhecido nacionalista Charles Parnell, e também vê o poeta A.E. (George Russell), e também o Bob Doran, ébrio numa esquina. Bloom nota os restaurantes vegetarianos, mas acaba por entrar no Burton. É quando acontece o horror lestrigônico, naquele local de repasto, com tanta ruminação, gula explícita, as tantas migalhas, e goles, de dar náuseas, pois ele não suporta gente comendo como porcos, "I hate dirty eaters."


     Daí que ele volta a perambular - tal um judeu errante - a reprovar os apetites carnívoros, as gulas sanguinárias, sendo ele mesmo um apreciador de boas entranhas na chapa. Mas terá inclinações vegetarianas. Bloom acaba por entrar no boteco do Davy Byrne, onde encontra Nosey Flynn. Lá ele pede um borgonha, um sanduíche de queijo, uma salada fria, e segue em prosa com Flynn sobre a turnê de Molly, sob os auspícios do Sr. Blazes Boylan. Enquanto isso as descrições de guloseimas, e Bloom lembra-se de agradáveis momentos com Molly. Algumas referências a corrida de cavalos. Quando Bloom se afasta, Flynn e Byrne trocam comentários sobre a sua carreira de anúncios para o jornal. Chegam Paddy Leonard, Bantam Lyons e também Tom Rocheford. Todos bebem.

     Bloom volta e se despede. Continua o engano do 'palpite' para o turfe, por mau-entendido de Bantam Lyons. Mais andanças de Bloom ao longo das vitrines, Até ajuda um cego a atravessar a rua. medita sobre a sensibilidade dos deficientes. Em seguida, ele toma o rumo da Biblioteca Nacional, passando antes pelo Museu.

     O próximo episódio é Cila e Caribde, e ocorre na Biblioteca Nacional, onde o Sr. Lyster, o bibliotecário, atende Stephen Dedalus e seus interlocutores, John Eglinton e A.E. (George Russell). Eles discutem seriamente um assunto deveras erudito: a peça Hamlet de William Shakespeare, entre temas do platonismo e do aristotelismo. Chega o Sr. Best, e menciona Haines. Stephen está concentrado em expor sua tese de que Shakespeare é o espectral Hamlet pai e que Hamlet filho, o príncipe, seria baseado em Hamnet, filho de Shakespeare.

     Assunto denso, quem é o ator e autor de tantas peças magistrais?, os demais acreditam que o trágico príncipe da Dinamarca é o próprio Bardo, "Disse o joão-pequeno Eglinton: - Eu estava preparado paradoxos dos quais Malachi Mulligan nos contou mas devo avisar que se você quer abalar minha crença de que Shakespeare é Hamlet você tem uma bruta tarefa pela frente." [ Quoth littlejohn Eglinton: - I was prepared for paradoxes from what Malachi Mulligan told us but I may as well warn you that if you want to shake my belief that Shakespeare is Hamlet you have a stern task before you. Episode 9, p. 194]

     Enquanto prossegue a longa exposição da tese, com referências a Goethe, Shelley, Francis Bacon, St. Tomas, Oscar Wilde, Bernard Shaw, Whitman e Freud, e a 'escola vienense', além do 'judeu e o incesto', chega o mencionado Buck Mulligan, o irônico, com todo seu escárnio (o que irrita Stephen). Mais alguém solicita o bibliotecário, e provoca zombarias, cifradas ou não. É o Sr. Bloom que procura um jornal com o logo das chaves. Mulligan o observa, Stephen o ignora. Para o iconoclasta Mulligan, o Sr. Bloom é o 'wandering Jew', o Judeu errante.

     Mas Stephen está mais preocupado com as brumas da vida familiar do Bardo. Os interlocutores defendem que se deve separar a obra do autor. Parece que nem Stephen acredita na própria tese. Por fim, Mulligan retira Stephen da sala, a presentando-lhe sua ideia para uma encenação-bufa, "Everyman his own wife". Quase uma antecipação do Episódio 15 em estilo de teatro expressionista. Mas Stephen ainda se questiona, absorto nas peças enigmáticas do Bardo inglês, "Hamlet era um louco?" Ao saírem da Biblioteca, Mulligan encontra novamente Bloom, 'O judeu errante', ele indica.

     Temos o Episódio 10, dos Rochedos, ou The Wandering Rocks, cerca de 1/3 do livro. Seguimos pelas ruas de Dublin, quase trẽs horas da tarde. Lá estão as figuras dos episódios anteriores, dos contos de Dublinenses, que receberam alguma menção, todos em seus afazeres, cada um segue um rumo, e Bloom no meio deles, como a se desviar de rochas. O reverendo John Conmee S.J. cumprimentando os passantes; também Corny Kelleher, Katey e Boody Dedalus, irmãos de Stephen.

     Cenas se sucedem. B. Boylan compra um presentinho (que será para Molly Bloom), enquanto Stephen conversa com o italiano Almidano Artifoni, um professor de música, enquanto isso Miss Dunne, a secretária de Boylan, datilografa a data. estamos em 16 de junho de 1904. É uma quinta-feira. Também encontramos Ned Lambert, Jack J. O'Molloy, e Tom Rochfort, Nosey Flynn e Lenehan - que mencionam Bantam Lyons - veem Bloom e M'Coy. Bloom escolhe um romance numa livraria.

     A narrativa segue dispersa, fragmentada, ao longo do labirinto de ruas. Dilly e seu pai, Simon Dedalus, e também o Sr. Kernan, um comerciante, e por ali, Stephen a olhar as vitrines, daí encontra sua irmã Dilly, e então pode sentir toda a pobreza que assola a família, enquanto ele se dedica à sua vida erudita, e o Sr. Dedalus e o padre Cowley encontram o folgado Ben Dollard. E Martin Cunningham conversa com o Sr. Power, e ambos encontram John Wyse Nolan. Eles planejam uma ajuda aos órfãos de Paddy Dignam. Enquanto isso, Buck Mulligan apresentando Dublin a Haines aponta, ao inglês, o irmão de Parnell.

     O italiano Artifoni e Cashel Boyle Farrell seguem pelas ruas. Também Patrick Aloysius Dignam, o Jovem Dignam, filho do falecido. Desfile do conde de Dudley pelas ruas e as muitas reações dos protagonistas e figurantes diante da cavalgada do vice-rei.

     O próximo episódio é o das Sereias, acontece na sala de concertos e está baseado na arte musical. No bar do Ormond Hotel duas senhoritas observam o desfile de bijouterias e enfeites na cavalgada do conde de Dudley. E uma delas, a Miss Douce, está atenta ao Sr. Bloom. Ele, por sua vez, está a pensar em estátuas de deusas do Museu, e no sujeito que ele viu na Biblioteca com o Stephen, e julga ser o tal do Mulligan. E continua a se preocupar com o anúncio do Sr. Keyes, e receia o encontro de Molly e de Boylan.

     Simon Dedalus chega ao bar. Aparece Lenehan, que ali marcara um papo com Boylan, e vem cumprimentar o Sr. Dedalus, e lembra do drink com Stephen e o pessoal da redação. Bloom pensa em uma carta para Martha, e logo chega Boylan, a distribuir gentilezas. Ben Dollard e o padre Cowley seguem pelo salão, Simon se junta a eles, e conversam, junto ao piano, sobre trajes, e também sobre Poldy e Molly.

     Bloom, acompanhado por Richie Goulding, o tio de Stephen, janta fatias de fígado, enquanto Boylan segue de carro pelas ruas. Temos fragmentos das conversas do 'trio' no salão. E acordes de piano, e a voz profunda de Ben Dollard. Simon e o padre Cowley ao piano: 'Martha', ária de Flotow. Há todo um deslizar de acordes e das ideias, o que compõe o enredo do episódio. É mais destaque para o modo o do que para o narrado - a forma, a música, fala por si mesma.

     Bloom decide escrever ali mesmo uma carta para Martha. Enquanto isso, Boylan segue pelas ruas. E Bloom pensa na 'misteriosa natureza' da música, e mantém conversa com Goulding enquanto vai elaborando a carta. Boylan estaciona o carro e toma um cabriolé. No bar do Hotel, Miss Douce desfila com seu acompanhante, George Lidwell, entre árias e minuetos. São acordes de um minueto de "Don Giovanni", uma ópera da sedução. Boylan chega para seu encontro com Molly, enquanto Padre Cowley sugere a Ben Dollard em outra melodia. Kernan e Simon pedem "The Croppy Boy", um tema da traição.

    E Bloom pensa na ruína financeira de Dollard ao pagar a conta e despedir-se de Goulding, e enquanto ele sai todos ouvem comovidos a melodia. Bloom observa Miss Douce, ali ao lado, seduzida, hipnotizada. Enquanto isso, Molly abre a porta para Boylan. Bloom lembra de uma noite na ópera, ele acompanhado pela fulgurante Molly. Ao ápice da canção, Bloom deixa o Ormond e, ainda na calçada, ouve os aplausos.

    Dentro do Ormond, vários comentários tecidos sobre o casal Bloom, enquanto bebidas rolam livremente. Bloom carrega consigo sua solidão e frustração, sabe que tudo está perdido. ele repara numa prostituta, pensa reconhecê-la, mas a evita. Na vitrine defronte Bloom vê uma imagem de Robert Emmet (1778-1803), nacionalista irlandês e republicano, um mártire patriota.

     Após a solidão e a amargura, Bloom sofrerá, em sua jornada pela Dublin da Belle Époque, a hostilidade declarada dos nacionalistas xenófobos irlandeses, que passam o dia bebendo nas tavernas. É o episódio 12, onde defrontará o Ciclope. 


 


continua ...



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abr/16


by Leonardo de Magalhaens







Referências


ELLMANN, Richard. James Joyce. São Paulo: Globo, 1989.

JOYCE, James. ULISSES. trad. Antonio Houaiss. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

___________ . ULISSES. trad. Bernardina Pinheiros. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005

___________ . ULISSES. trad. Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2012

___________ . Ulyssses. London, Penguin books, 1971.