terça-feira, 3 de maio de 2016

sobre ULISSES de James Joyce - parte 1





sobre Ulisses [Ulysses, 1922]
do autor irlandês James Joyce [1882-1941]


A antiepopeia dos dramas cotidianos do homem comum


Introdução

     Ulisses, obra-prima, por suas técnicas e caracterizações, inspirou várias obras no século 20, seja pelo uso do monólogo interior, o fluxo de consciência, a confusão entre enunciados do Narrador e o acesso às consciências das personagens, seja pela multiplicidade de estilos, ora narrativo, ora dramático, ora solilóquios, ora questionário, ora alucinações a la expressionismo, ora em 3ª pessoa, onisciente, ou em 1ª pessoa, egocêntrica. Ou ainda, pela experimentações com a linguagem, em trocadilhos, arcaísmos, neologismos, etc.

     Assim não é difícil rastrear influências em obras de Dos Passos, Alfred Döblin, Jean-Paul Sartre, Anthony Burgess, Italo Clvino, Umberto Eco, Salman Rushdie, para citar alguns. Experimentações com estilo e jogos de linguagem, onde a literatura fla de si mesma, autorreferencial, é uma marca da ficção do pós-moderno, como apontam alguns críticos. Não entraremos no mérito aqui, apenas mostramos como a obra iconoclasta de J. Joyce se intrometeu, enquanto petardo da vangurada, na modernidade para formar outra tradição.

     Do que trata o romance ou anti-romance? De um mosaico de cenas, personagens e alusões. De um episódio a outro mudam-se os horários, os locais, o foco narrativo, o estilo - ora mais lacônico, ora mais verborrágico, ora mais didático, ora enciclopédico, ora folclórico, ora mais hermético, em digressão, em interpolações, e se evidenciam os paralelos / paródias com o poema épico, ou epopeia, Odisseia, do grego Homero, com o filho a procura do pai (Telêmaco), o pai em busca do filho (Ulisses, ou Odisseu), os entorpecidos lotófagos, as sedutoras sereias, a perversa Circe, a fiel (aqui, infiel) Penélope.

     De início, logo avisamos, este artigo, em MEU CÂNONE OCIDENTAL, não pretende ser um guia de leitura de Ulisses - pois existem alguns, até online, vide links - mas a minha leitura da obra. Para além do aspecto lúdico, paródico ou iconoclasta, há uma série de dramas humanos, demasiado humanos. Temos um rapaz que vive entre uma Irlanda tradicional, provinciana, e uma Europa cosmopolita, a viver em conflito com a família - a mãe religiosa e o pai beberrão. É o Stepehn Dedalus, que conhecemos em Retrato do Artista quando Jovem (link para o meu artigo publicado em MCO aqui: http://meucanoneocidental.blogspot.com.br/2012/04/sobre-retrato-do-artista-quando-jovem.html ), ao lado de um homem adulto, de ascendência judaica centro-europeia, a viver entre nacionalistas irlandeses, fenianos até, que suspeitam de ingleses e também de judeus, ele um pai a sofrer com a ausência dos filhos, o menino falecido e a mocinha distante, com a esposa fria e infiel, igualmente descendente de judeus, da área hispânica, que vive uma carreira artística à parte, enquanto Bloom sobrevive numa rotina mesquinha, a agenciar anúncios comerciais para o jornal local.

     Tudo acontece - o relatado - em menos de vinte e quatro horas numa Dublin provinciana, desde o despertar de Stephen e de Leopold, personagens reais e humanas, ainda que excessivamente literárias, feitas de retalhos de estilos, metalinguagem, intertextualidades, epifanias, as alusões as mais herméticas, de história a cabala. Personagens que emocionam, mais do que intrigam, vivem além das referências e digressões.

     Além do barroco, do excesso estilístico, com alusões e referências, o que J. Joyce quer denunciar é a pequenez da Irlanda, o provincianismo, entre os nacionalistas e os britânicos, o drama dos cidadãos comuns, a xenofobia contra os judeus - Bloom e sua peregrinação de 'judeu errante' - e a mesquinhez cotidiana, entre os preconcietos e falsos moralismos.

     Muitas leituras de Ulisses têm foco na linguagem vanguardista, ou nos jogos de palavras, ou no caos do fluxo de consciência, e se esquecem dos dramas que presenciamos. Stephen, o jovem professor, é mais do que uma projeção de Joyce, é alguém que sofre com seu idealismo, que, em vão, sente-se anticlerical e cosmopolita. Perambula a digerir ideias, teorias, conceitos, filosofias, teses teológicas, estéticas, poéticas, históricas, a remoer-se com remorsos, por omissão ou evasão de seus dramas familiares.

     Enquanto isso, Leopold, o Sr. Bloom, vive na provinciana Dublin, entre as personagens que já conhecemos de Dublinenses, coletânea de contos, muitos baseados em fatos e pessoas reais, transmutados, transfigurados pela escrita, que sofriam com a ironia de Joyce a apresentá-los como seres literários. Assim Martin Cunningham, Tom Kernan, Sr. Lehenan, Sr. Power, dentre outros. Assim até o líder Charles Parnell [1846 - 1891], figura icônica para os nacionalistas, aparece em alusões de humor corrosivo. Mas o tom de Ulisses não é só sarcasmo, pois há muita amargura e melancolia nesta obra-prima da paródia-antiepopeia.

mais sobre Dublinenses em
https://falandoemliteratura.com/2015/01/11/resenha-dublinenses-de-james-joyce/


     Agora a questão das traduções. Qual tradução é a melhor? Temos o trabalho com a linguagem na de Antonio Houaiss, temos o coloquialismo na de Bernardina Pinheiros, temos as novidades, entre o erudito e o moderno, na de Caetano Galindo. Nenhuma tradução é a melhor, assim como nenhuma substitui a leitura da obra original - com todo o esforço de atravessar o emaranhado da língua inglesa, acrescido dos espinhos dos arcaismos, neologismos, trocadilhos [paranomásias], que tornam a trilha bem árida.

     No original, confeso que consegui ler até o episódio 7 [Éolo], com suas manchetes de jornal e exageros retóricos, ironias com o jornalismo. Depois, precisei recorrer a tradução de Houaiss, e tentar traduzir alguns trechos - o que ousei a partir de cinco episódios [Calipso, Hades, Nausícaa, Circe e Itaca], já divulgados em blogs em épocas de Bloomsday.

     O que deixa a leitura - e a ousadia da tradução! - mais difícil é a profusão de alusões à história europeia ou as citações de autores os mais diversos - filósofos, eruditos, políticos, etc. E não bastasse o english entre o padrão e o dialetal, entre o erudito e o coloquial, entramos em contato com expressões, provérbios, citações em latim, grego, irlandẽs [gaélico], francês, italiano, alemão, que exigem atenção / decodificação no contexto, seja digressão, ou associação livre, pensamento filosófico ou político, pois muitas parecem 'gratuitas', contudo fazem parte de um raciocínio - ou mero devaneio - maior, que 'faz sentido' para a personagem (o que foi vivido ou lido, ou ouvido ou discutido) e para nós, leitores, surgem como enunciados deslocados.

     Posto isto vamos para a narrativa, o que aconteceu (e que gerou quase mil páginas!) no dia 16 de junho de 1904 nas ruas de Dublin, cidade escolhida por questões de 'geografia sentimental', como diria Pedro Nava, onde o autor conhecera sua esposa, exatamente nesta data. É possível recriar a cida somente com as descrições de ruas e esquinas, pontes e igrejas, pubs e escolas, segundo certos leitores. Seria interessante, e divertido, ter o mapa de Dublin em mãos, mas não é obrigatório.


Preliminares

     Primeiramente, um contexto histórico. A Irlanda, ou Eire, o povo irlandês, de cultura céltica, e culto católico, resiste aos avanços imperialistas ingleses desde o século 17, época da Guerra civil, do líder puritano Oliver Cromwell (1599-1658), chefe do Parlamento contra os reis absolutistas, quando o conflito anglicanos X católicos se intensificou, como percebemos em pleno século 20, na Irlanda do Norte, onde as ruas de Derry, a noroeste da capital Belfast, foi cenário do hediondo Bloody Sunday (30 janeiro 1972) quando tropas inglesas atacaram a população irlandesa. Drama que se arrasta por três séculos, um conflito étnico, religioso e territorial - a ponto de gerar forças armadas, milícias e guerrilhas, de lado e de outro, ingleses monarquistas contra o IRA (Exército Republicano Irlandês), ligado ao partido político Sinn Fein [Nós mesmos], considerado ilegal pelos britânicos (que ao 'anexarem' a Irlanda do Norte, junto com a Escócia e o País de Gales criaram o Reino Unido).

     Estas questões sobre nacionalismo, separatismo, movimento feniano, imprensa livre, identidade irlandesa estão ao longo de toda a obra, numa contextualização que exige conhecimento enciclopédico histórico - hoje facilitado pela Wikipedia, à disposição - a ponto de somente ser compreensível um trecho, uma fala, um discurso, um solilóquio, por um detalhe de uma batalha, ou uma anexação, ou uma abdicação ou um regicídio.

     Também é interessante ter um conhecimento básico sobre mitologias grega e céltica, pois alusões surgem aqui e ali, e como se trata de um paralelismo paródico com a epopeia [poema épico] Odisseia, do clássico Homero [que viveu cerca de nove séculos antes da Era Cristã], é bem proveitosa uma leitura dinâmica da Odisseia, que narras as aventuras e peripécias de Ulisses / Odisseu [o irascível] depois da vitória sobre os troianos, na real & mítica Guerra de Troia [narrada em Ilíada, também atribuída a Homero], na qual Ulisses / Odisseu inventou o estratagema famoso, e vitorioso, aquele do grandioso cavalo de madeira, onde se esconderam soldados gregos. 


 

O que acontece

     Nos trẽs primeiros episódios [a Telemaquia] acompanhamos o jovem professor Stephen Dedalus, o Telêmaco que vive na Irlanda do primórdio do século 20, cheio de inquietações existenciais [um proto-existencialista, a la Camus?] que indaga - e se indaga - sobre tudo.

     Do alto de uma das torres Martello, ao longo do litoral, encontramos o sarcástico Buck Mulligan se barbeando, daí aparece Stephen, que se mostra ofendido com o deboche do amigo - que diz estar a mãe de Dedalus 'bestialmente morta' - deveras inoportuno, visto o sofrimento de Stephen, em remorsos pela morte da mãe. Durante o café da manhã, Stephen conversa com o estudante inglês Haines, mui interessado na cultura irlandesa. Mulligan insiste para que Stephen faça um empréstimo com Haines, mas o jovem irlandẽs resiste, não quer ficar em dívida com um inglês, a figura do dominador. No mais, ele se lembra de seu pagamento lá no colégio.

     Logo, surge uma velha leiteira, uma figura popular, a representar a velha Irlanda, com seus 'causos', em conversas sobre a vida campestre, meio as referências a peça Hamlet, de William Shakespeare, o bardo inglẽs. Daí uma conversa possível entre um irlandês e um inglês, sobre nacionalismos, culpa histórica, domínio religioso, quando Stepehn se confessa ser um servo de dois senhores: o Império Britânico e a Igreja Católica Apostólica Romana. Como servir a César e a Cristo?

     No episódio seguinte, podemos assistir a aula de Stephen no colégio sobre o Império Romano, as vitórias sofridas de Pirro, rei macedônio, enquanto observa as tiradas e digressões dos alunos, que logo são liberados para as práticas esportivas, para alívio deles. Stephen está preocupado com o pagamento, logo se dirige a sala do diretor Sr. Deasy, a figura do velho Nestor, que retorna ao assunto nacionalismo, com certa descrença em mudanças. Stephen também anda descrente, para ele "a História é um pesadelo do qual estou tentando acordar" ("History is a nightmare from which I am trying to awake", Episode 2, p. 40, no original). Entre uma citação ou outra de Shakespeare, com a figura ambiciosa de Iago [da peça Othelo], Stephen recebe o pagamento e o Sr. Deasy solicita ao professor que entregue um texto de autoria do diretor, sobre o problema da febre aftosa, a redação do jonral Freeman's.

     No terceiro episódio - Protheus - temos acesso aos pensamentos de Stephen Dedalus enquanto perambula pela praia de Sandymount, em denso monólogo interior, misto de questões filosóficas, como os dualismos visível e invisível, realidade e ilusão, mescladas às recordações pessoais e familiares, vem como a temporada em Paris - para onde ele partiu no final de Retrato do Artista quando Jovem, como bem lembramos. A questão da presença do Absoluto num mundo em constante metamorfose - tal o poder de Proteu, deidade marinha - como o incessante ondular das águas do mar. Junto a ele um cão brinca na praia, enquanto o jovem medita sobre o mar e a morte nas águas, justamente quando vẽ um navio se aproximar, com trẽs mastros, no horizonte.

     Então entra em cena o Sr. Leopold Bloom, ao despertar, planejando o desjejum, que ele gosta de carne, de vísceras suculentas. É o episódio 4, Calipso, em referência à ninfa que abrigou Odisseu, onde conhecemos o lar do protagonista. Pouco sobre ele, mas é só começo. Ele prepara café e presunto, com fartura, enquanto 'conversa' com a gata de estimação, que responde animada. É uma cena doméstica, caseira, sem rebuscamentos. No que muito se diferencia da anterior e da posterior. É uma cena de apresentação.

     Uma caminhada até o açougue, e na volta algumas cartas sob a porta, algumas para Bloom, de sua filha Milly e outras para Molly Bloom, a esposa, ainda deitada. O marido entrega as cartas, prepara o café da manhã, servindo-a na cama, a comentar sobre o funeral de Patrick 'Paddy' Dignam, que será mostrado no Episódio 6, Hades. Por enquanto, o Sr. Bloom está na privada, lendo um conto premiado do Sr. Purefoy, com o qual faz questão de limpar-se.




     No Episódio 5 temos os lotófagos, os entorpecidos, os desmemoriados, segundo narrativa em Odisseia. Mas na Dublin do século 20 o Sr. Bloom perambula pela cidade, rumo a agência dos Correios. Lá uma carta de Martha Clifford para Henry Flower, um pseudônimo de Bloom. Andando, Bloom encontra Charlie M'Coy, que apareceu no conto "Grace" [Graça] de Dublinenses, quando do acidente de Tom Kernan, ocorre um breve diálogo e depois Leopold segue para a missa, onde se deixa entre divagações sobre os ritualismos, onde é de se pensar se os lotófagos são os religiosos, entorpecidos pelas crenças e dogmas.

     Mas consideremos que na Irlanda adotar o catolicismo é uma forma de resistência ao anglicanismo inglês (imposto desde o século 16, quando o rei Henrique VIII rompeu com o papado romano), assim como na Polônia ser um católico é enfrentar os ortodoxos russos e os protestantes alemães. Contudo, a religião enquanto protesto não faz sentido para Bloom, sendo nem católico nem protestante. Para ele ser religioso seria adotar o judaísmo de seus antepassados centro-europeus, em diáspora. Eis outro motivo de seu deslocamento entre os dublinenses.

     Em seguida, ainda no mesmo episódio, Bloom vai a uma farmácia para comprar um sabonete. Ao sair, ele esbarra em Bantam Lyons, interessado numa corrida de cavalos, a Ascot Gold Cup. Ocorre um ruído de comunicação - Bloom disse que vai jogar fora [throw it away] o jornal - e o sujeito, achando que é um 'palpite', resolve apostar no cavalo Jogarfora [Throwaway]. Logo se afastam. Leopold tem pressa. Mas nada que um bom banho não resolva.

     Mais cidadãos de Dublin - e personagens de contos de Dublinenses - aparecem no Episódio 6, Hades [onde, no canto XI, Odisseu descera em evocações aos mortos], com o cenário do Cemitério Glasnevin, onde a narrativa torna-se mais complexa, mais digressiva. Os episódios aneriores são meros degraus para os que ora se iniciam e se prolongam. No mais, personagens do episódio 6 reaparecerão nos episódios 7, 8 e 10, num crescendo de enredo e referências. O episódio 9 é mais intelectual, com foco em Stephen Dedalus na Biblioteca, como veremos.

     Personagens dos contos "Graça" e "Dia de Hera na Lapela", Martin Cunnigham, Jack Power, Simon Dedalus, e o Sr. Bloom seguem numa carruagem rumo aos funerais de Paddy Dignam, a cruzarem por pontes sobre quatro rios, Dodder, Canal Grande, Lifey e Canal Real, como os rios do Hades, o Mundo Inferior [São cinco rios, segundo a mitologia, Aqueronte, Flegetonte, Letes, Cócito e Estige]. Surgem comentários sobre luto e suicídio, e quando fala em suicidas o Sr. Dedalus, o pai de Stephen, fita por momentos o Sr. Bloom, que assim perdera o pai. Em seguida, Bloom avista Stephen ao longe, e após comentário, o Sr. Dedalus deixa claro não concordar com a amizade entre Stephen e Mulligan.

     No Glasnevin Cemetery ele encontram Tom Kernan, John H. Menton, Ned Lambert e Corny Kelleher, o agente funerário. Ocorre uma breve missa de réquiem. Menton indaga Lambert a respeito de Bloom. Acontece finalmente o enterro de Dignam, enquanto divagamos sobre a finitude, o ser humano mortal, em referências até aos coveiros de Hamlet (peça de Shakespeare). Joe Hynes, repórter, nacionalista, feniano, convida os demais para verem o túmulo de Charles Parnell, o líder de outrora. Mas Leopold avista os túmulos como imagens sem glamour.

Pobre Dignam! Por fim, ele descansa na terra em sua caixa.
Se pensar bem, é até desperdício de madeira. Apodrecem
todos. Poderiam inventar um belo carro fúnebre com um tipo
de painel deslizante para depositá-los abaixo. Mas poderia se
recusar a serem enterrados sem o companheiro de sempre.
Tão individualistas. Deixem-na terra nativa. Punhado de barro
da terra santa. Apenas mãe e criança natimorta são enterrados
no mesmo caixão. Vejo o que significa. Vejo. Proteger o quanto
possível mesmo na terra. A casa do irlandês é no caixão.
Embalsamado em catacumbas, múmias, a mesma ideia.

O Sr. Bloom ficou para trás, o chapéu em mãos, contando as
cabeças desnudas. Doze. Sou o treze. Não. O cara do imper-
meável é o treze. O número da morte. Onde o sujeito se meteu?
Juro que ele não está na capela. Ridícula essa superstição
com o treze.

É de fina lã o terno de Ned Lambert. Tonalidade roxa. Vestia
um assim quando vivemos na rua Lombard oeste. Ele já foi
um cara bem vestido. Mudava de terno três vezes ao dia.
Devia recuperar aquele terno verde que ficou com o Mesias.
Olá. Está tingido. A mulher dele, ah, esqueço que ele não é
casado ou a senhoria dele devia ter reconhecido o tecido para
ele.

O caixão mergulhou fora das vistas, abaixado fácil pelos homens
apoiados nos cavaletes da cova. Eles se esforçam: e tudo está
coberto. Vinte.

[...]

Os coveiros usam suas pás e arremessam pesados torrões de barro
para cima do caixão. O Sr. Bloom desviou a face. E se ele estava
vivo todo este tempo? Quê! Pelos céus, seria pavoroso! Não, não:
ele está morto, claro. Claro que ele está morto. Na segunda-feira
ele morreu. Devia ter uma lei para alfinetar o coração para ter
certeza ou um dispositivo elétrico ou um telefone no caixão e
algum tipo de tela com entrada de ar. Bandeira de aflição. Três
dias. Mais tempo a conservá-los no verão. Tão logo são fechados
logo se convence de que não existem.

A terra cai mais suave. Começa a ser esquecido. O que os olhos
veem, o coração não sente. Longe da visão, longe do coração.


[tradução by LdeM]
http://leoleituraescrita.blogspot.com.br/2009/06/bloomsday-hades-trecho-em-ulysses.html



     Assim até o fim do episódio 6 sabemos mais sobre Leopold Bloom, obcecado por imagens da morte. Ele, o filho de um suicida e pai de um menino falecido. Ele é um corretor de anúncios, ex-caixeiro-viajante de mata-borrões ('blotting-paper'), cujo pai, outrora dono de hotel, se matara envenenado. Ele é casado com Marion Tweedy, a Molly Bloom, uma soprano de algum sucesso. Ele tem um affair, digamos, caso amoroso, através de cartas, com a Sra. Martha Clifford, para isto usando o elegante pseudônimo de Henry Flower.


ruas de Dublin em fotos ::
http://www.emsah.uq.edu.au/old-site/ulysses/index.htm

http://www.irishcentral.com/culture/entertainment/bloomsday-tracing-james-joyces-ulysses-through-the-streets-of-dublin-photos-159232695-237598011.html


     Éolo, o episódio 7, é construído com manchetes de jornais, paródias de editoriais, mesmices retóricas e clichês de imprensa, como um modo de mostrar o frenesi no cotidiano de Dublin. Na redação do jornal Freeman's Bloom encontra Red Murray, e recebe um recorte de anúncio. Há o obituário, escrito por Hynes, sobre Paddy Dignam. Chega, em seguida, transpirando arrogância, o dono do jornal, Sr. William Brayden. O frenesi da imprensa: as máquinas alucinadas na redação.

     Bloom apresenta a Nannetti, o gerente comercial, o anúncio do Sr. Keyes. em seguida, ele adentra o escritório do editor, onde estão o Sr. Dedalus, Ned Lambert (lendo o texto do discurso deveras retórico de Dan Dawson), o professor MacHugh, a mordiscar um biscoito. Chega então Jack J. O'Molloy a procura de um empréstimo, mas indiferente Lambert continua apregoando a retórica rebuscada do texto. Chega o editor Myles Crawford. Há uma certa 'dispersão', quando Sr. Dedalus e Lambert saem para um drink. É mesmo uma redação tumultuada. Entra Lenehan a trazer algumas provas e uma folha esportiva sobre a corrida de cavalos (Ascot Gold Cup) e arrisca um 'palpite', o cavalo Sceptre. Então Bloom dá um telefonema e dá o fora, para acertar a renovação dos anúncios do Sr. Keyes. Na sala do diretor pululam divagações sobre o Imperium Romanum (of Britain). Várias referências aos celtas, povos que originaram os irlandeses.

     Aí chega Stephen Dedalus, acompanhado por O'Madden Burke, a trazer o artigo do Sr. Deasy (sobre febre aftosa, como vimos no episódio 2). Mas continuam as divagações, com o diretor Crawford a sugerir a Stephen um texto, e a lembrar furos jornalísticos, como aquele do Sr. Ignatius Gallagher e sua reportagem sobre os assassinatos do parque Phoenix. [Parque que será cenário em Finnegans Wake, a obra seguinte - e mais iconoclasta - de J. Joyce] Já Jack O'Molloy vê a decadência da eloquência, pois "Suficiente para o dia é o jornal mesmo" (Sufficient for the day is the newspaper thereof. Episode 7, p. 140) De fato, há gente satisfeita em ler os jornais matutinos e nada mais... E o professor MacHugh traça seu elogio a Oratória, referindo-se a um discurso de John Taylor.

     Stephen sugere uma rodada, uns drinks na hora do almoço. Saem Stephen e MacHugh - falando sobre 'virgens vestais' - e depois Crawford e J. J O'Molloy. Na rua eles encontram Leopold apressado, sem fôlego, a insistir na questão dos anúncios do Sr. Keyes. Os senhores não lhe dão muita atenção, e o grupo segue adiante. Pelas ruas de Dublin, meio aos ditos informais, os mais diversos, Stephen nara uma singela parábola sobre a Terra prometida. A mesma Agendath Netaim, lá na distante Palestina, que atrai os pensamentos de Bloom.



 
    Vamos seguir todos para o Episódio 8, os Lestrígones. Na Odisseia helênica são gigantes antropófagos que atacam a frota de Ulisses, aqui são cidadãos esfomeados que correm para o almoço. Pensamentos se sucedem enquanto Bloom vagueia rumo a um restaurante. Sobre o quê? A família Dedalus, os anúncios, os outdoors, o prato do dia. Então ele se encontra com a Sra. Breen, e ela nota o traje de luto, e ele comenta a morte do Sr. Dignam. Ela fala sobre a gravidez complicada de Mina Purefoy. [Saberemos mais sobre este drama do parto no Episódio 14, que se passa no hospital.] Mas continua a prosa da Sra. Breen, a comentar sobre a senilidade do marido, a zombaria que fizeram com ele.

     Enquanto isto passam as figuras das ruas de Dublin, tais como o excẽntrico Sr. Cashell Boyle Farrel. E os guardas desfilam. E o movimento feniano, a resistência nacionalista, sobrevive aos delatores. Assim morte e vida. Tantos morrem, outros tantos nascem. Encontra-se um tanto deprimido pela instabilidade e voracidade da vida, ainda mais naquela hora de 'matar a fome'. (Fome mais que uma palavra para os irlandeses, que sofreram com terrível carẽncia de alimentos em meados do século 19) "Esta é a pior hora do dia. Vitalidade. Entorpecente, melancólica: odeio esta hora. Estou a me sentir como se tivesse sido devorado e regurgitado." (trad. by LdeM. Original: This is the very worst hour of the day. Vitality. Dull, gloomy: hate this hour. Feel as if I had been eaten and spewed. Episode 8, p. 164)

     Bloom observa os transeuntes, dentre eles o Sr. John Howard Parnell, irmão do conhecido nacionalista Charles Parnell, e também vê o poeta A.E. (George Russell), e também o Bob Doran, ébrio numa esquina. Bloom nota os restaurantes vegetarianos, mas acaba por entrar no Burton. É quando acontece o horror lestrigônico, naquele local de repasto, com tanta ruminação, gula explícita, as tantas migalhas, e goles, de dar náuseas, pois ele não suporta gente comendo como porcos, "I hate dirty eaters."


     Daí que ele volta a perambular - tal um judeu errante - a reprovar os apetites carnívoros, as gulas sanguinárias, sendo ele mesmo um apreciador de boas entranhas na chapa. Mas terá inclinações vegetarianas. Bloom acaba por entrar no boteco do Davy Byrne, onde encontra Nosey Flynn. Lá ele pede um borgonha, um sanduíche de queijo, uma salada fria, e segue em prosa com Flynn sobre a turnê de Molly, sob os auspícios do Sr. Blazes Boylan. Enquanto isso as descrições de guloseimas, e Bloom lembra-se de agradáveis momentos com Molly. Algumas referências a corrida de cavalos. Quando Bloom se afasta, Flynn e Byrne trocam comentários sobre a sua carreira de anúncios para o jornal. Chegam Paddy Leonard, Bantam Lyons e também Tom Rocheford. Todos bebem.

     Bloom volta e se despede. Continua o engano do 'palpite' para o turfe, por mau-entendido de Bantam Lyons. Mais andanças de Bloom ao longo das vitrines, Até ajuda um cego a atravessar a rua. medita sobre a sensibilidade dos deficientes. Em seguida, ele toma o rumo da Biblioteca Nacional, passando antes pelo Museu.

     O próximo episódio é Cila e Caribde, e ocorre na Biblioteca Nacional, onde o Sr. Lyster, o bibliotecário, atende Stephen Dedalus e seus interlocutores, John Eglinton e A.E. (George Russell). Eles discutem seriamente um assunto deveras erudito: a peça Hamlet de William Shakespeare, entre temas do platonismo e do aristotelismo. Chega o Sr. Best, e menciona Haines. Stephen está concentrado em expor sua tese de que Shakespeare é o espectral Hamlet pai e que Hamlet filho, o príncipe, seria baseado em Hamnet, filho de Shakespeare.

     Assunto denso, quem é o ator e autor de tantas peças magistrais?, os demais acreditam que o trágico príncipe da Dinamarca é o próprio Bardo, "Disse o joão-pequeno Eglinton: - Eu estava preparado paradoxos dos quais Malachi Mulligan nos contou mas devo avisar que se você quer abalar minha crença de que Shakespeare é Hamlet você tem uma bruta tarefa pela frente." [ Quoth littlejohn Eglinton: - I was prepared for paradoxes from what Malachi Mulligan told us but I may as well warn you that if you want to shake my belief that Shakespeare is Hamlet you have a stern task before you. Episode 9, p. 194]

     Enquanto prossegue a longa exposição da tese, com referências a Goethe, Shelley, Francis Bacon, St. Tomas, Oscar Wilde, Bernard Shaw, Whitman e Freud, e a 'escola vienense', além do 'judeu e o incesto', chega o mencionado Buck Mulligan, o irônico, com todo seu escárnio (o que irrita Stephen). Mais alguém solicita o bibliotecário, e provoca zombarias, cifradas ou não. É o Sr. Bloom que procura um jornal com o logo das chaves. Mulligan o observa, Stephen o ignora. Para o iconoclasta Mulligan, o Sr. Bloom é o 'wandering Jew', o Judeu errante.

     Mas Stephen está mais preocupado com as brumas da vida familiar do Bardo. Os interlocutores defendem que se deve separar a obra do autor. Parece que nem Stephen acredita na própria tese. Por fim, Mulligan retira Stephen da sala, a presentando-lhe sua ideia para uma encenação-bufa, "Everyman his own wife". Quase uma antecipação do Episódio 15 em estilo de teatro expressionista. Mas Stephen ainda se questiona, absorto nas peças enigmáticas do Bardo inglês, "Hamlet era um louco?" Ao saírem da Biblioteca, Mulligan encontra novamente Bloom, 'O judeu errante', ele indica.

     Temos o Episódio 10, dos Rochedos, ou The Wandering Rocks, cerca de 1/3 do livro. Seguimos pelas ruas de Dublin, quase trẽs horas da tarde. Lá estão as figuras dos episódios anteriores, dos contos de Dublinenses, que receberam alguma menção, todos em seus afazeres, cada um segue um rumo, e Bloom no meio deles, como a se desviar de rochas. O reverendo John Conmee S.J. cumprimentando os passantes; também Corny Kelleher, Katey e Boody Dedalus, irmãos de Stephen.

     Cenas se sucedem. B. Boylan compra um presentinho (que será para Molly Bloom), enquanto Stephen conversa com o italiano Almidano Artifoni, um professor de música, enquanto isso Miss Dunne, a secretária de Boylan, datilografa a data. estamos em 16 de junho de 1904. É uma quinta-feira. Também encontramos Ned Lambert, Jack J. O'Molloy, e Tom Rochfort, Nosey Flynn e Lenehan - que mencionam Bantam Lyons - veem Bloom e M'Coy. Bloom escolhe um romance numa livraria.

     A narrativa segue dispersa, fragmentada, ao longo do labirinto de ruas. Dilly e seu pai, Simon Dedalus, e também o Sr. Kernan, um comerciante, e por ali, Stephen a olhar as vitrines, daí encontra sua irmã Dilly, e então pode sentir toda a pobreza que assola a família, enquanto ele se dedica à sua vida erudita, e o Sr. Dedalus e o padre Cowley encontram o folgado Ben Dollard. E Martin Cunningham conversa com o Sr. Power, e ambos encontram John Wyse Nolan. Eles planejam uma ajuda aos órfãos de Paddy Dignam. Enquanto isso, Buck Mulligan apresentando Dublin a Haines aponta, ao inglês, o irmão de Parnell.

     O italiano Artifoni e Cashel Boyle Farrell seguem pelas ruas. Também Patrick Aloysius Dignam, o Jovem Dignam, filho do falecido. Desfile do conde de Dudley pelas ruas e as muitas reações dos protagonistas e figurantes diante da cavalgada do vice-rei.

     O próximo episódio é o das Sereias, acontece na sala de concertos e está baseado na arte musical. No bar do Ormond Hotel duas senhoritas observam o desfile de bijouterias e enfeites na cavalgada do conde de Dudley. E uma delas, a Miss Douce, está atenta ao Sr. Bloom. Ele, por sua vez, está a pensar em estátuas de deusas do Museu, e no sujeito que ele viu na Biblioteca com o Stephen, e julga ser o tal do Mulligan. E continua a se preocupar com o anúncio do Sr. Keyes, e receia o encontro de Molly e de Boylan.

     Simon Dedalus chega ao bar. Aparece Lenehan, que ali marcara um papo com Boylan, e vem cumprimentar o Sr. Dedalus, e lembra do drink com Stephen e o pessoal da redação. Bloom pensa em uma carta para Martha, e logo chega Boylan, a distribuir gentilezas. Ben Dollard e o padre Cowley seguem pelo salão, Simon se junta a eles, e conversam, junto ao piano, sobre trajes, e também sobre Poldy e Molly.

     Bloom, acompanhado por Richie Goulding, o tio de Stephen, janta fatias de fígado, enquanto Boylan segue de carro pelas ruas. Temos fragmentos das conversas do 'trio' no salão. E acordes de piano, e a voz profunda de Ben Dollard. Simon e o padre Cowley ao piano: 'Martha', ária de Flotow. Há todo um deslizar de acordes e das ideias, o que compõe o enredo do episódio. É mais destaque para o modo o do que para o narrado - a forma, a música, fala por si mesma.

     Bloom decide escrever ali mesmo uma carta para Martha. Enquanto isso, Boylan segue pelas ruas. E Bloom pensa na 'misteriosa natureza' da música, e mantém conversa com Goulding enquanto vai elaborando a carta. Boylan estaciona o carro e toma um cabriolé. No bar do Hotel, Miss Douce desfila com seu acompanhante, George Lidwell, entre árias e minuetos. São acordes de um minueto de "Don Giovanni", uma ópera da sedução. Boylan chega para seu encontro com Molly, enquanto Padre Cowley sugere a Ben Dollard em outra melodia. Kernan e Simon pedem "The Croppy Boy", um tema da traição.

    E Bloom pensa na ruína financeira de Dollard ao pagar a conta e despedir-se de Goulding, e enquanto ele sai todos ouvem comovidos a melodia. Bloom observa Miss Douce, ali ao lado, seduzida, hipnotizada. Enquanto isso, Molly abre a porta para Boylan. Bloom lembra de uma noite na ópera, ele acompanhado pela fulgurante Molly. Ao ápice da canção, Bloom deixa o Ormond e, ainda na calçada, ouve os aplausos.

    Dentro do Ormond, vários comentários tecidos sobre o casal Bloom, enquanto bebidas rolam livremente. Bloom carrega consigo sua solidão e frustração, sabe que tudo está perdido. ele repara numa prostituta, pensa reconhecê-la, mas a evita. Na vitrine defronte Bloom vê uma imagem de Robert Emmet (1778-1803), nacionalista irlandês e republicano, um mártire patriota.

     Após a solidão e a amargura, Bloom sofrerá, em sua jornada pela Dublin da Belle Époque, a hostilidade declarada dos nacionalistas xenófobos irlandeses, que passam o dia bebendo nas tavernas. É o episódio 12, onde defrontará o Ciclope. 


 


continua ...



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abr/16


by Leonardo de Magalhaens







Referências


ELLMANN, Richard. James Joyce. São Paulo: Globo, 1989.

JOYCE, James. ULISSES. trad. Antonio Houaiss. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

___________ . ULISSES. trad. Bernardina Pinheiros. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005

___________ . ULISSES. trad. Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2012

___________ . Ulyssses. London, Penguin books, 1971.




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