segunda-feira, 23 de maio de 2016

sobre Ulisses - parte 3 - de James Joyce






sobre Ulisses [Ulysses, 1922]
do autor irlandês James Joyce [1882-1941]


A antiepopeia dos dramas cotidianos do homem comum


> parte 3

     No episódio 16, ou Eumeu, Leopold Bloom, a amparar Stephen Dedalus, tenta chamar a atenção de alguém no Hotel Estrela do Norte, mas, devido a farra lá dentro, não foi ouvido, daí seguir adiante. Passam pela estação ferroviária, próximo ao cemitério, onde Bloom, sóbrio, vem aconselhar o jovem Dedalus sobre os excessos da vida boêmia.

     Bloom lembra-se da intervenção providencial de Corny Kelleher junto aos policiais, e comenta a dispersão dos tão alardeados amigos de Stephen. Sob os arcos da ponte, alguém cumprimenta Stephen. É Corley, o filho do inspector, que reclamando de problemas financeiros, pede um empréstimo a Stephen, que também comenta suas necessidades. Mas, ao fim, Stephen lhe arranja algumas moedas. Bloom, prudentemente à distância, a observar.

     Corley, vendo Bloom à penumbra, pede a Stephen que solicite a ele uma indicação de emprego junto a B. Boylan. Bloom estranha o estado de Corley, que decaiu a ponto de ficar até altas horas a pedir dinheiro a conhecidos. Bloom quer saber porque Stephen abandonou o lar, junto a família de miséria crescente, com a ausência da mãe, com um pai alcóolatra. Bloom faz de tudo para cativar o amargurado rapaz.

     Um grupo de italianos discutem sobre dinheiro, próximo ao abrigo dos cocheiros. Bloom a solicitar café e pãezinhos, e a comentar sobre idiomas, a melodiosa e lírica língua italiana,a linguagem e os nomes. Dentro do possível, um lanchinho é servido. Um marinheiro puxa conversa, a narrar uma façanha de Simon Dedalus, na qual Bloom não acredita muito. O marinheiro se apresenta, é Murphy, de Carrigaloe, Porto de Queenstown. Murphy e sua saudade da mulher, que o espera em sua terra. Bloom imagina o marinheiro longe do lar, a pensar na amada, tal um Ulisses / Odisseu, em navegações e peripécias, com saudades de sua Penélope... O marinheiro narra suas viagens, enquanto Bloom, e seu frustrado coração de aventureiro, mostra-se cético. O marujo mostra-se cansado da vida no mar, e um desânimo pesa sobre os interlocutores. Um sonolento tom arrastado contagia a narrativa...

     Bloom pensa no mar, as aventuras, as descobertas, e o marinheiro fala sobre seu filho, a exibir uma tatuagem. Uma prostituta passa por ali, mas os homens não se animam, antes alegam prudência diante das 'doenças do amor', ou seja, as venéreas. E Stephen medita sobre a alma e o corpo. Um dos interlocutores aborda Stephen com questões sobre a natureza da alma, se algo espiritual ou se fenômeno do cérebro humano. Stephen crê numa alma de 'substância simples e incorruptível', aí Bloom discorda, não tão simples, antes capaz de invenções complexas, tais como os raios-X, o telescópio, e outros avanços científicos. Mas não faz sentido partir da complexidade da alma inteligente para provar a existência de um deus sobrenatural.

     Stephen apoia seus argumentos na Bíblia e na tradição, e Bloom, retórico, mostra sua desconfiança quanto a veracidade dos textos ditos sagrados. Por exemplo: quem escreveu as obras que aceitamos ser de um tal William Shakespeare? Um só autor, ou vários, a usar pseudônimo? Não suspeitam do Conde Verulâmio, Francis Bacon? Daí as primeiras discordâncias, enquanto Bloom experimenta ao café, a insistir para que o jovem coma alguma coisa.

     É um episódio de densidade morosa, realmente é para ser lido de madrugada, após um dia cansativo, com o olhar sonolento, com as pálpebras pesadas, a atenção a cochilar, num insinuante sono convidativo. Assim, se pode sentir inteiramente o tom de fadiga que percorre a narrativa, com os olhos pesados de sono. Aliás, cada episódio é melhor compreendido se for lido em horários semelhantes aos do enredo. Os seis primeiros, de vivacidade juvenil e plena maturidade, de manhã; os episódios de 7 a 12, mais complexos, à tarde; o episódio 13 ao crepúsculo; e os restantes à noite e de madrugada...

     O Sr. Bloom, a observar o marinheiro, indaga a si mesmo se não se trata de um ex-prisioneiro, um homicida. Ele divaga sobre outras terras e culturas, peculiaridades e atos bizarros. A impetuosidade dos espanhóis, pensa o cientificista. Também sobre as estátuas do museu e suas formas ideais, esteticamente perfeitas, em contraste com as formas das mulheres que observamos em nosso cotidiano. Pouco interesse nas palavras de Bloom - o que já percebemos no episódio 7, e também nos 12 e 14.

     Narrativas sobre aventuras e perigos no mar. Casos de naufrágios. uma breve ausência do marinheiro. Um pouco sobre a política do comércio marítimo a Irlanda: os ânimos se exaltam. Bloom pensa nas relações entre a Irlanda e a Inglaterra. Temores de crimes e traições, sejam conjugal ou política. Bloom comenta com Stephen o incidente, desta tarde, no bar do Kiernan, aquele narrado no episódio 12, com o antissemitismo de um cidadão nacionalista, pois Bloom sabe que é preciso olhar os dois lados de uma questão, sem intolerância sem violências. E comenta a questão dos judeus, e o êxito econômico e financeiro destes, e de como a inquisição espanhola foi um atraso, ao perseguir judeus, e de como as medidas de Cromwell favoreceu a Grã-Bretanha ao incentivar os judeus.

     Stephen, que atordoado deixava-se a ficar ali, a ouvir o Sr. Bloom, em seu monólogo, desperta ao ser aconselhado ao trabalho - entenda-se; o trabalho literário. É trabalho - e importante! Mas Stephen, que a nada se apega, pede que mudem de assunto, num tom áspero, sob os 'vapores da orgia'. Bloom o observa, a divagar sobre excentricidades do meio social. Bloom vê no jovem Dedalus um incentivo intelectual, a ser um companheiro para discussões filosóficas e científicas. Ele até se entusiasma, a imaginar um conto, que supere aquele do Sr. Purefoy - que ele lê e descarta no episódio 4 - e começa a folhear um jornal abandonado por ali, uma edição extra do Telegraph. A notícia do funeral de Patrick Dignam. R.I.P. Erros de impressão: seu nome grafado L. Boom.

     Curioso, Stephen pergunta sobre o texto do Sr. Deasy. A notícia da corrida de cavalos. O cocheiro agurada a notícia 'O retorno de Parnell'. Bloom a meditar sobre este tipo de 'sebastianismo' - a espera da volta o herói, o triunfo final do rei morto. Enquanto sobre o adultério de Parnell com uma mulher casada surgem zombarias, Bloom reflete na fato histórico do pecado que desgraçou o líder nacionalista.

     Bloom, já que falavam de mulheres sedutoras e traiçoeiras, mostra a Stephen uma (sensual) foto de Molly, e volta a questão das formas perfeitas, a lembrar as estátuas helênicas do Museu Nacional, em divagações sobre o adultério - de Molly e Boylan? de Parnell com a espanhola? (Bloom, junto a multidão, a ouvir Parnell: a história quis que fosse Bloom aquele a devolver ao líder o chapéu que, devido ao tumulto, caíra ao chão.) Cansado, se sente incomodado com o gosto duvidoso dos interlocutores, uns sacanas-zombadores, que julgam saber de tudo, mas vivem em preconceitos. E ele percebe o drama conjugal que o adultério significa, a lamentar que um jovem, culto e interessante, tal qual Stephen, se deixe perverter por mulheres promíscuas.

     Algumas semelhanças e diferenças entre Stephen e Bloom, quando este se lembra de suas aspirações políticas, a expulsão dos arrendatários, a questão agrária, as lutas em vão. Percebemos o quanto Bloom é um homem frustrado, um homem de mil planos, mil existências possíveis e frustradas, que sonhou com uma vida aventureira, em escrever contos policiais, em ter uma mulher apaixonada e fiel, em ter uma destacada voz política. O homem, quando é jovem, sonha umas mil existências, tem todas diante dele, mas vê-se obrigado a seguir apenas uma e lamentar a perda de todas as demais possibilidades!

     Bloom a ponderar se é oportuno convidar Stephen para dormitar em sua casa, na rua Eccles. O importante é seguir adiante, perambular, até navegar. "Navegar é preciso", dissera Fernando Pessoa, homem e artista que também idealizou mais do que se aventurou. E mil coisas passam pela mente de Bloom - será o excesso de informações do mundo moderno? E ainda estamos em 1904... Os vultos seguem pelas ruas, Bloom a amparar Stephen, e a divagar sobre a música, uma arte pura para Bloom, que prefere a música sacra católica. Ele relembra as canções ouvidas no bar do Ormond, inclusive na voz de Simon, o pai de Stephen. As vozes das sereias, que ouvimos no episódio 11, depois de passarem pelas erudições literárias na Biblioteca. Mais planos de Bloom: apresentar Stephen em círculos de artistas e músicos - será que o jovem Dedalus tem o talento vocal do pai? Aí o jovem artista canta o verso final de uma balada...

     Vamos para a narrativa 'técnico-científica' na forma de questionário, ou catecismo erudito, numa extensa 'recapitulação' de toda a obra, com explicações de referências nas entrelinhas, ou detalhes que nós, os leitores, deixamos escapar, ou consideramos sem relevância. É o episódio 17, cujo cenário é Ítaca, o lar que abriga o viajante em seu retorno.





     Leopold Bloom e Stephen Dedalus seguem pelas ruas, em conversas sobre os assuntos os mais diversos, seja música, literatura, política, etc , em pontos convergentes e divergentes entre eles, enquanto Bloom se lembra de outras discussões semelhantes...

Quais percursos paralelos seguiram Bloom e Stephen retornando?

Começando unidos ambos ao passo normal de caminhada desde a praça Beresford eles seguiram na ordem as ruas chamadas Lower e Middle Gardiner e a praça Mountjoy, oeste : então, no passo reduzido, cada marcação à esquerda, a praça Gardiner por uma inadvertência tão distante quanto a mais distante esquina da rua do Templo, norte: então em passo reduzido com interrupções de parada, marcação à direita, rua Templo, norte, tão distante quanto a praça Hardwicke. Aproximando, diferentes, em passo relaxado de caminhada eles cruzaram ambos a circular, diante da igreja de São George diametralmente, a corda em qualquer círculo sendo menos que o arco que a subtende.


Sobre o que o duunvirato deliberou durante este itinerário deles?

Música, literatura, Irlanda, Dublin, Paris, amizade, mulher, prostituição, dieta, a influência da luz de gás ou a luz de arco e lampiões no crescimento das adjacentes árvores paraheliotrópicas, expostos baldes-de-areia da emergência de corporação, a Igreja Católica Romana, celibato eclesiástico, a nação irlandesa, educação jesuíta, carreiras, o estudo da medicina, o dia anterior, a maléfica influência do pré-sabbath, o desmaio de Stephen.


Bloom descobriu fatores comuns de similaridade entre suas respectivas iguais e desiguais reações à experiência?

Ambos eram sensíveis às artísticas impressões musicais em preferência às plásticas e pictóricas. Ambos preferiam um modo de vida continental a um modo insular, um lugar de residência cisatlântico a um transatlântico. Ambos endurecidos por um madrugador treino doméstico e uma herdade tenacidade de resistência heterodoxa professava a descrença deles em muitas doutrinas ortodoxas sejam religiosas, nacionais, sociais e éticas. Ambos admitiam a alternadamente estimulante e desestimulante influência de magnetismo heterossexual.

[trad. LdeM] em http://leoleituraescrita.blogspot.com.br/2012/06/ulisses-episodio-17-itaca-james-joyce.html



     Chegam diante do nº 7 da rua Eccles, e o anfitrião percebe estar sem a chave, esquecida em outra calça. Então pula a grade e, munido de uma vela, convida Stephen para entrar. Rapidamente, ele acende a lareira. (Stephen lembra-se de anteriores gestos semelhantes - o homem inclina-se para a lareira, a providenciar o fogo, a luz e o calor, tal qual o deão em Retrato do Artista quando Jovem.

     O anfitrião Bloom ajeita as vasilhas na cozinha, lava a chaleira sob a corrente de água - há toda uma dissertação técnica sobre a água, suas características químicas, seu armazenamento e sistema de distribuição - na forma de uma breve tratado científico na mente de Bloom, que deixa a chaleira com água para ferver, e vai relembrando os fatos do dia, até que mal-entendido, com a vitória do azarão Jogafora.

     Bloom oferece a Stephen uma xícara de chocolate quente, e insiste em 'puxar assunto', em comentários sobre literatura, a abordar experiências que nos ensinam e preparam para a vida real. Parece que Bloom também é frustrado não sendo poeta... Lembra-se de anteriores encontros com Stephen, quando garoto, ao visitar o Sr. Dedalus. As vidas paralelas deles, as formações religiosas e educacionais de ambos, sendo Bloom mais inclinado ao científico e Stephen com talento mais artístico.

     A mente de Bloom é repleta de anúncios, slogans e clichês de propagandas. Slogans que geram imagens diversas na mentes de Stephen (a lembar de um crepúsculo num hotel solitário) e Bloom (a lembrar do suicídio de seu pai Rudolph Virag, depois renomeado Bloom) Outras divagações sobre a ocupação das mulheres, sobre idiomas (no caso, o irlandês e o hebraico), com Bloom a pedir a Stephen que cante uma canção, uma cancioneta, sobre um garoto peralta sacrificado por uma garota judia. Bloom fica a meditar sobre a predestinação e o sacrifício, e lembra da adolescência de sua filha Milly.

     Bloom propõe que Stephen descanse no quarto do segundo andar, mas Stephen agradece, cordialmente a recusar. Então Bloom devolve ao jovem o dinheiro resguardado, segundo mostra o episódio 15. Daí outros planos reiterados e refutados entre eles, e o anfitrião acompanha o visitante até a porta. Ficam a contemplar o céu estrelado, em especulações com dados astronômicos, e influências astrológicas. Afinidades entre a lua e a mulher? Afinal, ambas são cíclicas, atravessam fases.

     Mãos apertadas, em cordial despedida, e ressoa o badalar das duas horas, e Bloom vê-se sozinho, sob o espaço interestelar, em meditares sobre a aurora vindoura, um novo dia, do qual não seremos informados, como fomos devidamente sobre esta quinta-feira, 16 de junho de 1904. Bloom atravessa o jardim e adentra ao lar.

     Toda uma descrição do mobiliário da sala, e Bloom contempla, ao espelho, a imagem de um homem sozinho a sofrer mudanças, ali entre tantos livros, dentre os quais as Obras Completas do bardo Shakespeare, entre volumes de História, Filosofia, Astronomia e Geometria. Daí Bloom faz o balanço financeiro do dia (2 libras, 19 xelins e 3 pences) e fica a pensar em suas ambições, a concorrerem com as de outrora, por exemplo, uma propriedade, uma mansão, um chalé Bloom, ou Flowerville, e também um reconhecimento social, uma formação intelectual. E quando for devidamente proprietário, ele apoiará a ordem pública e a repressão aos abusos.

     Em suas lembranças, principalmente sobre o pai falecido, Bloom recorda quando, ainda adolescente, declara sua descrença nos ensinos da igreja irlandesa protestante a qual seu pai, judeu oriundo da Hungria, se convertera. Posteriormente renegada em favor do catolicismo romano, quando Bloom era jovem, e advogava tendências políticas colonialistas e teorias evolucionistas darwinianas. O preço a se pagar pela propriedade, pela opulência. Planos para adquirir riqueza - como se fosse um costume de Bloom de se entregar a tais devaneios, antes do sono, como uma compensação por suas frustrações.

     Ele vai abrindo gavetas, onde enxameiam envelopes, cartas, cartões de natal, papeis para cartas, além de moedas, fotos eróticas, recortes de jornal. Ao guardar a carta de Martha, Bloom lembra-se de outras mulheres que o admiraram ao longo do dia, a Sra. Breen, a enfermeira Callan, a jovem Gerty. E outra gaveta: documentos, apólices, cadernetas, títulos de ações. Uma notícia da mudança de nome de Rudolf Virag para R. Bloom. Encontram-se fotos de Rudolf e Leopold, a carta de despedida do suicida. Percebemos os remorsos de Bloom filho. Seu pai lhe contara sobre peregrinações e migrações pela Europa. A senilidade e a decadência de Bloom: após a euforia, com planos de riquezas vem a depressão, com o medo da miséria.

     Há um desejo de mudança, de viajar na Irlanda e no mundo, a vagar por terras, a ser conhecido por uns como 'todo-mundo' e por outros como 'ninguém' - tal qual o truque usado por Ulisses / Odisseu diante da ameaça do ciclope Polifermo, na Odisseia. Em sua própria odisseia pessoal, Leopold recapitula as peripécias do dia, o jornal, os funerais, e então ele se deita, como a tomar posse do leito, a recuperar a mulher, sua Penélope infiel, ali adormecida, ou quase, a defendê-la de todos os 'pretendentes'. Em Leopold fluem sentimentos confusos, numa inveja da virilidade de Boylan e uma gratidão pelos favores dele, um certo ciúme do apego de Molly, e certa generosidade. Afinal, o que ele pode fazer quanto ao adultério? Antes de dormir Bloom dá um beijo em cada nádega de Molly, e tece um breve relato de seu dia, a excluir, claro, seu affair via cartas.

     O episódio final, Penélope, se passa como um longo, extenso, verborrágico, desconexo, aleatório, digressivo, monólogo de Molly Bloom, consigo mesma, com suas lembranças, ao longo da noite. Molly, nascida Marion, é filha do major Brian Tweedy, que serviu em Gibraltar, onde a filha nasceu, em 1870, meio espanhola. Assim, Leopold fala sobre a esposa aos marinheiros, no episódio 16, que ela é um tipo espanhol, amorenada, de cabelos escuros. Ela tem toda uma conotação sensual, e explicita isto em seu fluxo de lembranças, onde surgem suas aventuras amorosas, tal uma Moll Flanders, de Daniel Defoe (aliás, com referência ao clássico inglês de 1722).

     Temos vários flashbacks sobre namoro, casamento, crise conjugal, nascimento dos filhos, que explicam ou contextualizam vários eventos apenas mencionados ao longo dos episódios. Aqui há o acesso ao que Molly realmente pensa do marido em sua volta ao lar, tal qual um Ulisses de retorno a Ítaca. O ciúme que corrói a esposa infiel. Os casos do marido errante, o affair com a Sra. Breen, as suspeitas de um novo caso amoroso de Leopold, que anda a escrever cartas de modo suspeito, sem saber disfarçar.

     Molly e seu ressentimento com relação aos homens, que ela vê como egoístas e dissimulados, arrogantes e vulneráveis, ainda que desejáveis. Assim como eles tem prazer, ela quer prazer. Não aceita ser submissa, não quer ser dominada. Não quer ser objeto de prazer alheio, nem uma matriz procriadora, a sofrer dores do parto, para dar descendência a um homem dominador. Ela sabe que Leopold desconfia sobre Boylan e tal, e não se importa, já desiludida com o marido, que lhe seduzira com tantas promessas.

     Ela acha que ele não a merece, que não a valoriza o tanto que ela merece e tal, e por isso se deixou seduzir pelo galã bon vivant Boylan, que acompanha sua carreira musical. Ela é ambígua quanto ao descaramento dos homens, obcecados pela intimidade das mulheres, pois ela gosta de ser observada e desejada. Molly lembra das primeiras seduções de Leopold, suas manias e fixações eróticas, que a constrangiam e a excitavam, de fetiches solicitados em sussurros ou cartas, que prendem a mulher pela curiosidade e sensualidade.

     As expectativas e as frustrações com o casamento - as fantasias com o marido (e o amante...) - e os cuidados com a saúde e a beleza, com a admiração e o desdém das outras mulheres. A mulher de trinta anos, balzaquiana, a conservar a beleza, a prever a transição da maturidade para a velhice. Quanto a questão financeira do casal, Molly não está contente com o serviço de Leopold para o Freeman's, com seus 'míseros xelins', e espera que ele tenha emprego regular, renda confiável, ao invés de perambular por aí. Ela se lembra das dificuldades financeiras que já enfrentaram, das vezes que ele perdia um emprego - até pensar em posar nua para um artista, ela pensou. Ela compara o marido com o amante, as taras e performances eróticas.

     Lembranças da Espanha, os homens, os toureiros, as touradas, as descobertas sexuais, as primeiras carícias, os beijos e os toques, as negações e os consentimentos, as seduções avançadas e limitadas. Os homens que passaram por sua vida, e que foram obrigados a viajar, para todos os vastos domínios do Império Britânico, e eles não voltaram, por ambição ou guerra, por promoção ou morte. Ela julga que o casamento com Leopold é um atraso para a carreira dela, que compartilha os concertos, em duetos ao piano, com o amante Boylan, que é quem realmente a deixa excitada e satisfeita.

     Pois Leopold é cheio de planos que nunca concretiza, desde a lua-de-mel, e projetos para empresas, que nunca saem do mundo das ideias, apenas geram expectativas, que geram decepções e ressentimentos. Que ele não explica as coisas, as ideias de modo que ela possa entender, como se ele fizesse pouco da inteligência dela. Desprezo pelos maridos possessivos, ciumentos, desconfiados, mas cegos para a traição.

     Em contraponto ao clima cinzento da provinciana Eire, o mundo mediterrâneo enquanto sedução, com as paisagens espanholas, no extremo da Europa, e suas belas mulheres, suas danças, flores nos cabelos, vestidos coloridos, seduções andaluzas, em festas mouriscas, observadas por mouros de turbantes. É com este espírito de sensualidade que ela finaliza seu solilóquio, a terminar tudo numa cena amorosa em que predomina o Sim ao se entregar ao sedutor, a mulher que se deixa seduzir, ao aceitar a posse masculina. Sua entrega ao seu destino e condição é uma antecipação - ou inspiração - para o final do próximo livro, Finnegans Wake, de 1939, onde há o monólogo terminal de Anna Livia Plurabelle, a figura do rio Liffey, ao entregar-se a imensidão do mar, no fim-início de tudo.

     Assim, o irlandês-europeu-cosmopolita James Joyce consegue em sua densa e complexa obra religar os cenários dos dublinenses, os sonhos do jovem artista com as alegorias da noite-pesadelo do tempo circular, através de um romance-anti-romance, que é travessia. Ulisses deve ser lido num crescendo, mesmo que nos deixe com fadiga. Deve ser degustado junto com os contos de Dublinenses e os diários de Stephen Dedalus, como introduções aos pensamentos de Leopold Bloom e os devaneios de Molly, numa obra que se fecha sobre si mesma, assim como ao dia se sucede a noite, e, depois desta, o novo dia. Há morte e nascimento ao longo do dia, a sono e traumas dutante a noite. E como única testemunha de nossas vidas entre o sim e o não está a Escrita.



abr/ mai16


by Leonardo de Magalhaens









mais info em

http://www.shmoop.com/ulysses-joyce/summary.html

http://revistacult.uol.com.br/home/2013/09/finnegans-wake-finnicius-revem/







Referências


ELLMANN, Richard. James Joyce. São Paulo: Globo, 1989.

JOYCE, James. ULISSES. trad. Antonio Houaiss. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

___________ . ULISSES. trad. Bernardina Pinheiros. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005

___________ . ULISSES. trad. Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2012

___________ . Ulysses. London, Penguin books, 1971.



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