quarta-feira, 11 de maio de 2016

sobre ULISSES - parte 2 - de James Joyce





sobre Ulisses [Ulysses, 1922]
do autor irlandês James Joyce [1882-1941]


A antiepopeia dos dramas cotidianos do homem comum



> parte 2

     Episódio 12. Aquele do Ciclope, fanático nacionalista, a ver tudo por uma perspectiva parcial, é o Narrador. Diferente do 'ciclope', com uma visão única, Bloom procura ver os vários lados de uma questão. Pois bem. O cidadão está numa esquina, a conversar com um policial, e então é quase cegado pela ferramenta de um limpador de chaminés - enquanto no Canto IX da Odisseia o ciclope Polifemo, filho do deus Poseidon, é cegado por Ulisses / Odisseu, que diz ser Ninguém.

     Ao voltar para ofender o limpador, tão distraído e ameaçador, o cidadão vê Joe Hynes, e passa a comentar sua atual ocupação de cobrador de dívidas alheias. Surge a primeira interpolação, um trecho que corta a narrativa, com o caso de Gerachty que deve Herzog, judeu comerciante. O Narrador e Hynes decidem ir ao pub Barney Kiernan's para um drink, e lá na porta está um cidadão nacionalista, com seu cão pouco amistoso. A interpolação agora é a galeria de heróis irlandeses.

     Joe Hynes paga os drinks e lembra que conseguiu a grana graças a uma dica de Bloom - é aquele mal-entendido que começou no episódio 5, e passou pelos 7 e 8, do cavalo Jogafora. Chega então Alf Bergan, a zombar do Sr. Denis Breen, abraçado a seus livros de advocacia. Bob Doran, bêbado, a um canto. Surgem comentários sobre um enforcamento e Alf tira do bolso cartas de um carrasco. O narrador ouve de Alf ter ele encontrado, em Capel Street, o Paddy Dignam. Daí Joe assegura que Dignam está é morto. Consternação geral. Daí a interpolação pseudo-científica própria da literatura espiritualista, muito em voga na época, de contato com os mortos.

     Na rua, Leopold Bloom passa diante do bar, enquanto Doran blasfema, a lamentar o pobre falecido Dignam. Bloom pergunta à respeito de M. Cunningham, enquanto Hynes lê em voz alta uma das cartas do tal carrasco. Bloom vem criticar a pena capital, a execução legitimada pelo poder estatal. Outra interpolação: Bloom, tal qual um professor alemão, a esclarecer o fenômeno deveras constrangedor da ereção genital nos enforcados.

     Ao lado o nacionalista e Hynes continuam suas ladainhas sobre revolucionários e mártires, desde 1867, época do fracassado levante feniano [Fenian Rising] contra o governo inglês. Bloom até tenta se 'enturmar', mas o Narrador mostra seu desprezo pelo 'judeu errante', a lembrar as 'espertezas' deste. Enquanto isso, o nacionalista bebe à memória dos revolucionários, e não oculta hostilidade contra Bloom, um forasteiro. Daí a interpolação: uma execução, narrada num exagerado e emocional estilo jornalístico.


     As implicâncias do irascível Narrador, inclusive contra o incômodo cão do nacionalista. Outra interpolação, a cinantropia, a figura do homem-cão, raivoso e indomado. Ali Bloom a recusar a nova rodada de drinks, a alegar apenas esperar o M. Cunningham. Nannetti (do Freeman's) é mencionado por Hynes, e o narrador lembra do emprego de Bloom no Cattle Market, de onde foi despedido por ser um 'senhor Sabe-tudo'. Hynes comenta a viagem à negócios que Nannetti fará a Londres. Bloom se preocupa pois ainda há o negócio do anúncio do Sr. Keyes, a ser resolvido.

     De digressão em digressão, outro assunto na roda de beberrões. Os esportes, ou 'desportos gaélicos', abordados por Bloom no bom senso, mas o interlocutores preferem a violência. A interpolação surge jornalística, a parodiar o estilo das colunas esportivas, quando numa luta de boxe, Myler Keogh, o irlandês, nocauteia Percy Bennett, o inglês, com agilidade e perícia. Sempre esta querela do irlandês versus o inglês.

     Alf menciona Boylan, em sua organização da turnê de concertos. E Bloom não se altera, e comenta o fato com naturalidade. Chegam O'Molloy e Lambert, que recebem o desprezo do Narrador, a destacar a decadência e a pobreza de O'Molloy. Continuam as zombarias sobre o Sr. Breen, das quais Bloom se mantem distante, pois compreende o sofrimento da Sra. Breen, conforme presenciamos no episódio 8. Mas os demais tentam provocá-lo, mas ele concentra-se em Hynes, a perdoar-lhe uma dívida desde que ele o ajude com os anúncios. Paira ali uma névoa xenófoba, um desprezo por tudo que é inglês, tudo o que é judeu.

     Mais gente chega ao pub. Agora Nolan e Lenehan, a anunciarem que Jogafora é o cavalo vencedor da Ascot Gold Cup, e lembrando que Boylan apostou em Sceptre. Noticias sobre o concílio à respeito das língua e cultura irlandesa, que provocam aclamações xenófobas do nacionalista, enquanto Bloom mostra sua tolerância. Outra interpolação: núpcias no reino das árvores? O Narrador acaba por achar toda a retórica do nacionalista um mero papo furado, enquanto bebem, e os furores aumentam. Antissemitismo, ataques à hipocrisia inglesa. Os golpes que a Irlanda sofre desde a Grande Fome de 1846, e os grandes espuliadores e exploradores da nação irlandesa.

     Bloom lembra que a violência apenas gera mais violência. Indagado sobre qual seria sua nação, Bloom afirma ser a Irlanda, mas o nacionalista cospe de lado, em desprezo. Interpolação: exibição de relíquias. Enquanto isso, Bloom lembra da permanência do ódio aos judeus, e insiste em tons tolerantes. Nolan declara que os judeus devem impor força contra força, mas Bloom diz ser tudo isso inútil, e se ausenta, para ir ao tribunal, talvez lá ele encontre o M. Cunningham.

     Para o nacionalista os ingleses usam a evangelização para levar o comércio, e o Império. Lenehan insinua que Bloom foi é recolher seu prêmio da Golden Cup, por ter apostado em Throwaway, e lembra do Bantam Lyons. Tudo por causa de um mal-entendido! Bloom não dera qualquer palpite para a corrida... O Narrador se ausenta, vai ao toalete, e quando volta encontra Nolan falando ser de Bloom a ideia dada a Griffith para uma matéria sobre a corrupção no Sinn Fein [gaélico, 'nós mesmos'], partido nacionalista. O narrador tece acusações contra o pai de Bloom.

     Chegam M. Cunningham, Sr. Power e um orangeman [protestante], Crofton. Interpolação agora: a arrogância dos agentes de Sua Majestade. Martin confirma o caso de Bloom quanto ao Sinn Fein, e Noland poergunta por que um judeu não pode amar sua terra como os outros?, e O'Molloy acha que eles, os judeus, não tem certeza sobre qual é a terra deles. Daí uma devassa na ascendência de Bloom, que antes era dispersa em pensamentos e insinuações. Uma interpolação: a despedida solene para um representante húngaro, Lipoti Virag, óbvia alegoria de Bloom, e seu pai, a lembrar que virag, em húngaro, significa flor. (Daí o Bloom, 'florescer', 'florescência', e o Henry Flower...) O nacionalista não poupa ironias, a proclamar Bloom como o Messias da Irlanda, a ofendê-lo em sua ausência. (É assim o julgamento e a condenação à revelia...)

     Outra interpolação : uma procissão, em toda uma parafernália religiosa, com liturgias e santos, com St. Martin of Todi (M. Cunningham), St. Alfred (Bergan), St. Joseph (Hynes), St. Denis (Breen), St. Cornelius (Kelleher), St. Leopold (Bloom), St. Terence (Terry, o barman), St. Edward (Ned Lambert), St. Owen Caniculus (Garyowen, o cão), St. Anonymous (o narrador), St. Marion Calpensis (Marion of Gibraltar, Molly).

     Quando Bloom retorna, é visível a hostilidade. Martim apressa os amigos e todos saem, subindo ao carro. O nacionalista vai gritar na porta do pub vivas a Israel, enquanto Bloom se defende a dizer que o Deus deles era um judeu, aqui em referência a Jesus Cristo. Então mais furores e tumultos. A interpolação final: o evento causa um distúrbio sísmico com repercussões atmosféricas! E Bloom vai no carro, tal como um Elias numa carruagem de fogo. 


 


     O Episódio 13, Nausícaa, remete ao canto VI da Odisseia, quando Ulisses / Odisseu é resgatado no país dos Feácios, ao ser o náufrago desmaiado na praia, por benevolência da jovem e bela princesa Nausícaa, que se divertia na orla com as donzelas amigas. O estilo é romântico e melancólico, deveras descritivo (imagético a sugerir pinturas), com doses de introspecção, quase psicologista, como uma imitação da escrita feminina. Afinal, o foco agora é uma mocinha.

     É o momento do crepúsculo tardio (de verão) na costa de Sandymount, na orla marítima de Dublin, onde as amigas descansam sentadas nas rochas. Cissy Caffrey, com seus irmãos gêmeos Tommy e Jacky, e Edy Boardman, com seu bebê, e a pensativa Gertrud 'Gerty' MacDowell, de uns dezesseis anos, um tanto melancólica. Percebe-se seus suspiros por Reggy Wylie, o rapaz que ronda o jardim, de bicicleta, sob a sua janela. Gerty está magoada com Edy, e desaprova o linguajar indecoroso de Cissy, um tanto vulgar. Meio ao alvoroço das crianças e os suspiros das jovens soam as preces solenes da igreja mais próxima.

O entardecer de verão tinha começado a cobrir o mundo no seu misterioso abraço. Longe no ocidente o sol poente e o brilho derradeiro do dia tão fugaz graciosamente sobre o mar e praia, sobre o orgulhoso promontório do velho e bom Howth guardando como sempre as águas da baía, sobre as rochas cobertas de mato ao longo da praia de Sandymount e, por fim mas não menos importante, sobre a calma igreja de onde ondeava às vezes sobre a serenidade a voz de reza àquela que é em sua pura sublimidade esplendorosa um farol sempre ao atormentado coração do homem, Maria, a estrela do mar.

As três mocinhas amigas sentavam-se nas rochas, aproveitando a cena crepuscular e no ar um tanto frio mas não de dar arrepios. Muitas vezes, com frequência, elas costumavam vir ao favorito recanto a ter um bate-papo aconchegante junto às faiscantes ondas e discutir assuntos femininos, Cissy Caffrey e Edy Boardmann com o bebê no carrinho, e Tommy e Jacky Caffrey, os dois pequenos garotos de cabelos encaracolados, trajando terninho de marinheiro e quepes combinando e o nome H. M. S. Belleisle escrito em ambos. Pois Tommy e Jacky Caffrey eram gêmeos, quase quatro anos de idade e bem barulhentos e gêmeos mimados às vezes, mas, apesar de tudo, queridos camaradinhas com alegres faces brilhantes e com modos afetuosos. Eles estavam correndo na areia com suas pás e baldes, construindo castelos do jeito que as crianças fazem, ou brincando com a grande bola colorida, felizes tanto quanto o dia durava. E Edy Boarman estava balançando o bebê gorducho prá-lá e prá-cá no carrinho enquanto o jovem gentleman rindo sinceramente com satisfação. Ele não tinha mais que onze meses e nove dias e, apesar de ainda uma pequenina criancinha, já começava a balbuciar suas primeiras palavras de bebê. Cissy Caffrey inclina-se sobre ele para apertar sua gorducha pequena bochecha e a mimosa covinha em seu queixo.

trad. by LdeM em http://leoleituraescrita.blogspot.com.br/2010/06/ulysses-ulisses-james-joyce-nausicaa.html

imagens da costa de Sandymount
http://joyceimages.com/episode/13/


     Então eis que surge um cavalheiro, a caminhar ao longo da praia, com ares pesarosos. Aliás, seus trajes são de luto. Gerty pode perceber seu olhar desolado, e se incomoda com o alvoroço das crianças, que para ela não combina com o tom melancólico do crepúsculo. Gerty observa o recém-chegado, e nota que ele também a observa. É como o despertar das paixões adolescentes. Ao redor as preces e as ladainhas litúrgicas se confundem com os gritos dos gêmeos e com os risinhos e sussurros das jovens.

     Insinuações de Edy, seduções de Cissy, mas Gerty não se rebaixa às provocações, está absorta nas nuances do anoitecer, e curiosa com a presença do cavalheiro. Ela vai se deixando envolver pelo tom romântico crepuscular, ali diante do cavalheiro enlutado, até curiosa sobre os pensamentos dele. Há todo uma idealização, o que gera um certo afeto. Quem é aquele que nos observa? Estarei eu a agradá-lo?

     Novos cânticos ressoam, e subitamente explodem fogos de artifício. Cissy e Edy correm para vê-los brilharem sobre as casas. Mas Gerty se contenta em vê-los de onde está. Sua exibição ao 'olhar ardente' do cavalheiro. Este é ninguém mais que o Sr. Bloom, que ali se refugia das hostilidades dos nacionalistas-ciclopes. Ele se deixa seduzir, também com fantasias sobre a bela mocinha. Mas quando a jovem se levanta para alcançar as amigas, ele percebe algo que o incomoda... ela é coxa! Depois da expectativa, a decepção. Mas os sonhos eróticos que vinha arquitetando não se desmoronam, pois mostra-se satisfeito com a atenção da jovem, todavia sem saber o que ela viu nele.

     Bloom pensa se deve se aproximar da mocinha, e como melhor fazê-lo. Ele se lembra da vida boêmia, as boquitas pintadas das prostitutas, mas aí pensa na filha Milly, uma adolescente, em pleno despertar da sexualidade. Será que Milly será igual a mãe Molly? Meio as recordações do dia comum e atribulado, Bloom lembra-se da Sra. Purefoy, internada no hospital. É preciso fazer uma visita.

     O perfume de Gerty ainda paira no ar, e Bloom se percebe como o homem misterioso ao longo da praia, e nisso até pensa no enredo de um conto. Há um sensualidade no anoitecer, e Bloom ironiza a ladainha litúrgica. Enquanto a noite cai as figuras se desprendem das penumbras: as prostitutas, os gigolôs, os notívagos, os que voltam para casa, e ali um jornaleiro apregoa o Evening Telegraph, com os resultados da Gold Cup. Daí Bloom lembra do tumulto na Barney Kiernan, nos que zombam, que deviam é zombar de si mesmos, e também quanto ao anúncio do Sr. Keyes. Ele rabisca ao longo da areia, logo depois apaga o que escreveu. Meio as nove badaladas, surgem morcegos agitados, os padres na ceia, e ao longe a Gerty a pensar em quem seria aquele cavalheiro de sombrias vestes.

     O Episódio 14, o Gado do Sol, é um denso emaranhado de estilos, de paródias, num crescendo, com um tema denso, a Medicina. Arte que é elogiada no hospital-maternidade Casa de Andrew Horne. Trẽs vivas ao iluminado Horhorn. Loas as habilidades das parteiras. Então chega o forasteiro, que já sabemos ser o errante Leopold Bloom, a ser recepcionado por uma irmã-enfermeira, e ele indaga sobre um médico, e é informado sobre o falecimento do mesmo, no que ele medita sobre a efemeridade da vida, do útero ao túmulo. Bloom quer ver a Sra. Purefoy, ali por três dias a sofrer as dores do parto.

     Vozes vindas da sala ao lado chamam a atenção de Bloom. (Ele é chamado para adentrar ao castelo, numa narrativa de tom épico de tradição celta.) A enfermeira pede moderação, em respeito ao recinto. Ali estão e conversam Lenehan, Lynch, Stephen, Madden, Crotters, Franck 'Punch' Costello, e estudantes de Medicina, a esperrem a chegada de Malachi 'Buck' Mulligan. Eles discutem se num parte difícil deve-se salvar a mãe ou o bebê. Concordam que melhor a mãe viver e o bebê morrer. Stephen alega questões religiosas contra o aborto, o apagar de uma chama de uma nova vida. Costello e Crotters zombam, Stephen e Bloom se mantêm moderados. Stephen segue a citar Virgilio, Averois, Maimônides, etc, para defender a precoce formação da alma. Os estudantes indagam a opinião de Bloom que comenta que tanto nascimento quanto morte são proveitosos para a empresa da Madre Igreja.

     Bloom mostra-se preocupado e sério, a pensar no filho que morrera aos onze dias de vida. Seu desejo de um filho recai sobre Stephen, que Bloom vê ali tão afetado e indefeso, a encher os copos e a divagar, incoerentemente, sobre teologias, de Bernardo, Agostinho, etc. Enquanto Costello tumultua com uma canção de escárnio. A enfermeira Quigley pede ordem. Os outros advertem Costelo sobre o lugar de repouso. Mas, entre comentário sobre casamentos e deflorações, Costello interrompe com outra canção vulgar. Soa um sonitroante trovão, e Lynch se assusta e Stephen se encolhe e bebe um trago, humilhado diante do velho 'Paininguém'. (A descrença de Stephen é manifesta no longo monólogo do episódio 3, quando pensa no idioma de Voltaire, "Je ne crois pas en l'existence de Dieu") Stephen vê-se desviado da trilha do 'Crê-em-Mim' ensinado por 'Pio' e 'Casto' por uma dama que lhe apresentou a luxúria. Na 'mansão das mães' seguem os comentários sobre métodos contraceptivos, preservativos, posições sexuais, etc.

     Sob a chuva, Mulligan, que saíra da casa do Sr. Moore, escritor, encontra Alec Bannon, e seguem para a maternidade, onde, indiferentes ao parto difícil da Sra. Purefoy, os boêmios seguem na prosa, em comentários sobre a peste, a febre aftosa que se alastra. Bloom se preocupa, ele que já trabalhara no mercado, no comércio de gado (segundo mencionado nos diálogos dos 'ciclopes' do Episódio 12) A figura do Touro irlandês, símbolo da Fertilidade. De como Lord Harry cismou em tornar-se touro. Então chega o Buck Mulligan, junto a Bannon. Mulligan com seus projetos, o 'fertilizador' e o 'incubador', o combate à esterilidade. A ilha de Parirey: o centro de Fertilidade Omphalus, o obelisco talhado, um símbolo fálico. Uma promessa de fecundação para qualquer mulher a ser possível pela virilidade do próprio Mulligan ! Então o zombeteiro interpela o forasteiro, que, sabemos, é Bloom. Mas este está mais sensibilizado com o estado da Sra. Purefoy.

     Subitamente uma campainha. A srta. Callan aproxima-se para convocar o Sr. Dixon. A presença da bela enfermeira desperta ditos maliciosos. E o Sr. Dixon censura o desrespeito para com a mulher, a figura feminina. E, por extensão, da mãe. todos concordam, e jogam a censura sobre Franck Costello. Ao lado, Bloom parece compreender os excessos dos jovens, mas a atitude de Punch Costello o deixa nauseado, uma vez que Bloom não aprova a zombaria, que ele julga ser uma forma de inferiorizar, ou humilhar, o outro para se sentir superior. É triste a insensibilidade dos presentes, estes frívolos bacharéis que maculam o ofício da medicina, encabeçada por homens nobres.

     Então o anúncio do nascimento, com todas as discursividades, entre medicina e casos jurídicos, de obstetrícia e medicina forense. Uma alucinação de Mulligan? Haines confessa ser o assassino de Samuel Childs. Reminiscências de Bloom, sobre a idade da alma do homem, com o jovem Leopold rumo a escola secundária, com o primeiro chapéu, a pensar numa noite na rua Hatch, a primeira garota. Entre brumas crepusculares vê Martha, a imaginá-la, claro, até Milly, a 'rainha das Plêiades', e outras imagens astrológicas.

     Francis recorda a Stephen o tempo em que frequentavam a escola de Padre Conmee, mas Stephen não quer saber de fantasmas do passado. Ao redor a prosa segue solta, comentam sobre a derrota de Sceptre na Gold Cup, enquanto outros debates (em acadêmica erudição) se sucedem, com Stephen em defesa da objetividade e do pragmatismo da ciência. A questão da determinação do sexo: depende dos ovários ou dos espermatozóides? Várias teorias. Mulligan denuncia as péssimas condições sanitárias dos cidadãos, expostos a várias enfermidades. Também critica a poluição visual dos anúncios e sugere pinturas coloridas e esculturas de beldades. Crotters denuncia a atarefada vida das operárias, que não podem se dedicar aos cuidados com as crianças. A prática do aborto é frequente e também o abandono de recém-nascidos. Lynch aborda a questão, não esclarecida, de porque alguns bebês, nascidos sãos, de pais saudáveis e famílias idem, alguns sobrevivem e outros não. Será a presença de microorganismos patogênicos? Seria benéfico à raça, assegurando que só os mais aptos sobrevivam?

     Stephen abre uma interrupção, com a questão da alimentação e da nutrição, a colocar sob suspeita a qualidade da carne, desde o matadouro até o cozimento. Bloom e sua recente controvérsia com o Dr. A. Horne sobre a prática do aborto. O labor da parturiente: veneração do fruto do próprio ventre: olhares amorosos ao Marido. A Sra. Purefoy, no entanto, não conta com a presença de seu marido, Theodore 'Doady' Purefoy, enquanto Bloom lembra dos outros filhos do casal Purefoy.

     Seguem-se recordações confusas. O que se oculta nos corações humanos. Uma criança na manjdoura de Belém. Stephen conclama os presentes a se retirarem, e eles seguem, em certo tumulto, até a portaria. Bloom, ao ver a enfermeira Callan, confia-lhe um recado de congratulação a Sra. Purefoy. O ar úmido da noite convida todos os estudantes à farra, e eles avançam pelas ruas, em algazarra, sedentos de uma boa bebida. Tem início a alucinação em estilo expressionista, na zona boêmia.

     É o episódio 15 não escrito em prosa mas em drama, como um teatro expressionista, com tons do mestre Ibsen, meio alucinado, com várias personagens que se encontram e se estranham, num ambiente meio penumbroso, com a figura da rainha das putas, uma espécie de Circe, a bruxa da helênica Odisseia, a enfeitiçar os homens. É um longo e confuso episódio (na tradução do Houaiss são 150 páginas) num estilo vertiginoso de presenças e referências. Até o Bardo inglẽs aparece numa imagem no espelho...

     Estamos na rua Mabbot, na zona boêmia, pouco antes da meia-noite. Lá as prostitutas provocam os transeuntes. Crianças desamparadas correm entre os guardas-noturnos. Stephen e Lynch, atentos às provocações das putas, passam junto a alguns soldados. Bloom anda apressado, entra num açougue. Depois avança para a rua com um embrulho, a transitar entre os bondes, e quase é atropelado. Ele segue rapidamente, a desviar-se de passantes, sempre no encalço de Stephen. É que Bloom lembra-se do pai, e de seus conselhos e repreensões, daí a culpa. Ele sente também o olhar acusador de Molly. Por isso ele se desvia das putas e suas provocações.


Serpentes da névoa do rio rastejam lentas. Desde os esgotos, fendas, fossas, lixões sobem de todos os lados fumos estagnantes. Um brilho saltita no sul além da direção do mar alcança o rio. O estivador cambaleante adianta racha a multidão e oscila adiante até o desvio dos trilhos. No lado mais afastado sob a ponte da ferrovia Bloom aparece afogueado, ofegando, pão embrulhado e chocolate num bolso lateral. De uma janela do cabeleireiro Gillen um retrato composto mostra-lhe a galante imagem de Nelson. Um espelho côncavo ao lado apresenta-lhe desolado-de-amor há muito perdido lúgubre Booloohoom. O solene Gladstone vê a ele ao nível, Bloom por Bloom. Ele passa, golpeado pelo olhar fixo de truculento Wellington, porém no espelho convexo sorriso amplo não-golpeados os olhos de porquinho e queixo-gordo pedaço-de-bochecha de alegre-poldy o rixdix doldy.

Diante da porta de Antonio Rabaiotti, suado, Bloom faz uma pausa, sob as brilhantes lâmpadas em arco. Ele desaparece. Numa momento ele reaparece e se apressa.)

BLOOM: Peixe e trapos. N.g. Ah!

(Ele desaparece dentro da Olhousen's, o açougue [de carne suína], sob o declinante porta-de-aço. Uns poucos momentos mais tarde ele emerge de sob a veneziana, arquejante Poldy, resfolegante Bloohoom. Em cada mão ele carrega um pacote um contendo uma tépida pata de porco, o outro, uma fria perna de carneiro, borrifada com pimenta inteira. Ele ofega, mantendo-se de pé. Então inclina-se para um lado, comprime um pacote contra a costela e geme.)

BLOOM: Pontada aqui do lado. Por que eu corri?

(Ele toma fôlego com cuidado e segue adiante lentamente rumo ao desvio junto ao lampião. O brilho salta novamente.)

BLOOM: O que é aquilo? Um relâmpago? Holofote.

(Ele para na esquina da Cormack's, observando.)

BLOOM:
Aurora borealis ou uma fundição de aço? Ah, a brigada, claro. Em todo caso lá pros lados do sul. Grande brilho. Deveria ser a casa dele [Blaze, brilho = Blaze Boylan]. Moita de mendigo. Estamos salvos. (Ele cantarola mudamente com satisfação) Londres em chamas, Londres em chamas! Em chamas, em chamas! (Ele tem a visão do estivador cambaleando através da multidão no lado mais afastado da rua Talbot) Eu o perdi. Corre. Rápido. Melhor atravessar aqui.

(Ele se apressa para cruzar a rua. Uns moleques gritam.)

OS MOLEQUES: Preste atenção, senhor! (Dois ciclistas, com iluminadas lanternas de papel oscilando, passam por ele, raspando, com as sinetas tagarelando.)

AS SINETAS: Ooooppaaaaaaltooooolaaaaá !

BLOOM: (Ele para erguido picado por um espasmo) Opa!

(Ele olha ao redor, apressa-se adiante subitamente. Através da névoa que sobe um dragão espalhador-de-areia, viajando com cuidado, cai pesadamente sobre ele, seu grande rubro farol piscando, seu vagão assobiando no fio. O condutor golpeia sua buzina. )



trad. by LdeM

em http://leoleituraescrita.blogspot.com.br/2011/06/bloom-na-zona-boemia-ulysses.html



     Mas eis que surge a Sra. Breen, o que deixa Bloom constrangido, e logo tenta desculpar-se, mas logo entram num diálogo dissimulado e sensual. Houve realmente um affair entre eles, como foi insinuado no episódio 8, mas é no início do monólogo de Molly que o caso é relembrado - e censurado. Contudo, Bloom segue adiante à procura de Stephen. Aí é abordado por policiais. Alucinação: um julgamento. Bloom encontra a puta Zoe. Ouve o badalar da Meia-noite saudando-o como Prefeito de Dublin. Alucinação: a ascensão e a queda da carreira política de Bloom. O 'judeu errante' suporta a língua venenosa do basilístico Virag, que lhe apresenta as putas. Ele é dominado, em ato sadomasoquista, pela rameira-mor Bella Cohen. Metamorfoseado em vaca-cadela? Bloom discursa sobre a Infidelidade: Fragilidade, teu nome é casamento, numa paródia da fala de Hamlet. (Também a paródia na fala de Lenehan, no episódio 12, ao comentar a corrida de cavalos, 'Inconstância, teu nome é Sceptre')

     Uma lascívia faúnica, com Bloom-fauno e uma ninfa. Alucinação 'pagã' interrompida pelos chamados das putas, ao longo das ruas, onde Bloom segue meio às alucinações. Assoma a figura dominadora de Bella Cohen, mas Bloom se recompõe e enfrenta a caftina. Enquanto isso, Stephen 'mão aberta' vai gastar todo o seu dinheiro com as putas, mas Bloom aborda o jovem, diretamente, chamando-o à prudência. Noite adentro, até os padres chegam para assombrar Stephen, tal como o capítulo sobre as chamas do inferno, em Retrato do Artista quando Jovem. Surgem informações que possibilitam avaliar as idades de Bloom e Stephen, uma vez que o primeiro é dezesseis anos mais velho, logo tem 38 anos, pois Stephen tem 22.

     Em alucinações até Boylan aparece para humilhar Bloom, ao sugerir que o marido traído olhe pela fechadura enquanto o amante transa com a esposa infiel, e que disso se aproveite para se masturbar. Daí Stephen e Bloom se miram em um grande espelho, onde surge a face do bardo Shakespeare, 'coroado' pelo reflexo do galhado cabide de rena. Quanto a Stephen, ele é assombrado pela mãe, assim como Hamlet diante do espectro do pai, o rei assassinado na tragédia shakespeariana. Stephen lembra-se de Mulligan, quando o zombeteiro disse, logo de manhã, que a mãe dele estava 'bestialmente morta' - assim como no episódio anterior, o 14, Mulligan foi assombrado por Haines.

     Caos, a noite primeva, um tumulto, alguém quebra uma vidraça. Stephen apressa-se em sair dali. Bloom segue o jovem, e sendo perseguido pelas recordações do dia. Logo uma multidão, ali aglomerada ao redor de Stephen e dois soldados ingleses. Bloom, tratando Stephen como professor, vem interceder em seu favor, a pedir paciência aos homens-da-lei. Até um sombrio rei Edward VII, o soberano inglês, aparece! Claro que os soldados são considerados uns paus-mandados ingleses, ainda mais por nacionalistas como o 'ciclope' do episódio 12.

     A dupla-face da História: a traidora palestina Rahab vira heroína na narrativa dos judeus, os vencedores. Se vencedores fossem os palestinos, Rahab seria uma infame proscrita. Na História -- pesadelo, para Stephen - é assim, o perseguido de ontem pode ser o perseguidor de hoje, e a versão final é sempre dos vitoriosos. Assim borbulha o patriotismo de Stephen, e Bloom o defende. Mesmo que a Irlanda seja uma velha porca a devorar os próprios filhotes.

     Outra alucinação: Dublin em Chamas. Clamores de guerra - será uma invasão inglesa? Ou uma missa satânica (black mass) com um cálice sobre o ventre inchado de Mina Purefoy? De volta a realidade, o soldado Carr golpeia Stephen, que cai junto a um muro. Chegam os guardas, que ameaçam enquadrar Stephen. Novamente Bloom intervém, e aparece Corny Kelleher, que trata de abafar o caso. A turba se dispersa, e Bloom carrega Stephen para a carruagem de Kelleher. Bloom até tenta explicar o caso, a forçar um sorriso. Ele agradece e se despede de Kelleher. Em seguida tenta despertar Stephen, que se assusta com aquele senhor ao seu lado, e começa a murmurrar versos desconexos. Diante de Bloom uma alucinação dolorosa: a figura de um garoto de onze anos, Rudy, seu filho, caso estivesse sobrevivido.

     Daí em diante Leopold adota Stephen como um filho, e seguem pelas ruas até a casa dos Bloom. São os episódios finais.





continua ...


>>> parte 3




abr/16


by Leonardo de Magalhaens





mais info em

http://www.shmoop.com/ulysses-joyce/summary.html





Referências


ELLMANN, Richard. James Joyce. São Paulo: Globo, 1989.

JOYCE, James. ULISSES. trad. Antonio Houaiss. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

___________ . ULISSES. trad. Bernardina Pinheiros. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005

___________ . ULISSES. trad. Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin Companhia das Letras, 2012

___________ . Ulyssses. London, Penguin books, 1971.




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