quarta-feira, 29 de junho de 2016

sobre A MONTANHA MÁGICA - de Thomas Mann - P3





sobre A Montanha Mágica [Der Zauberberg] 1924
do escritor alemão Thomas Mann [1875-1955]


Um duelo de ideias e ideologias nas alturas

parte 3

     Continuamos com as 'operações espirituais' [operationes spirituales] onde saberemos mais sobre o professor de origem judaica que se converteu ao catolicismo ao aderir a ordem dos jesuítas. Leo [Leib] Naphta fala sobre seu pai Eliah, um schochet, ou açougueiro ritual, que segue os preceitos do Talmude. A ideia de devoção, de ritualismo, sempre esteve na infância de Naphta, em sua aldeia lá na Galícia [na Europa central, hoje entre a Polônia e a Ucrânia], onde seu pai era rigoroso na tradição. Tanto que a insatisfação popular contra os judeus, numa acesso de fúria, ou pogrom, martirizaram Eliah Naphta, o açougueiro de 'olhos estelares'.

     Leib, ou Leo, é educado no ensino rabínico, no hebraico e nas línguas clássicas, a mostrar dons intelectuais bem elevados. Daí surgiram divergências, muitas críticas, e logo insubmissão. Contatos com o socialismo e a crítica social. Logo, Leib é renegado e expulso por seu mestre rabino. Então com dezesseis anos, Leo trava conhecimento com o padre Unterpertinger, um jesuíta, hábil pedagogo, num banco de parque. Eles falam sobre teologia, Marx, Hegel, sendo que este último, apesar de ser 'oficialmente' um protestante, tem uma filosofia de tom católico, para o jovem Naphta, algo operante, de produzir efeitos exteriores, uma política psicologicamente ligada ao catolicismo.

     E para Naphta no jesuitismo torna-se clara a natureza política e pedagógica do catolicismo. Para ele o tom católico é de objetivismo, de uma doutrina de ação. Até o protestante Goethe mostra-se 'quase jesuíta' no seu papel de educador. Assim, Naphta é convidado pelo jesuíta para visitá-lo no Instituto Stella Matutina. O narrador ressalta as contradições da personagem, um revolucionário com jeito aristocrático, com propostas socialistas, mas ambições elitistas. [Interessante lembrar que o revolucionário bolchevista, depois sangrento ditador, Joseph Stálin foi seminarista, e igualmente expulso.] Naphta prefere ver a religião organizada - aqui o Catolicismo - como uma 'potência espiritual', contrária às ambições mundanas, logo assim 'revolucionária'.

     Naphta considera o judaísmo mais próximo do catolicismo do que do protestantismo, daí ser mais fácil um judeu converter ao papismo que ao subjetivismo luterano. E Naphta, o jovem desamparado e ambicioso, busca essa conversão, por instinto, entrega-se a um misto de disciplina e elegãncia, cultura e espiritualidade, zelo e discrição. Seu desejo é pertencer a Ordem com suas 'operações espirituais', suas ponderações e introspecções. Mas ele não quer contemplação, mas auto-superação, sacrifício, abnegação. Mas, aos vinte e três anos, a doença pulmonar de Naphta se manifesta e ele não pode prosseguir em sua carreira no subdiaconato. Daí sua internação em Davos, estando ali cerca de uns cinco anos.


mais sobre a figura contraditória e cruel de Iossif Stálin
em http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/stalin_uma_lenda_fabricada_sob_medida.html


     Hans Castorp, ao saber da vida de Leo Naphta, suas batalhas contra a sociedade e a doença, associa três pilares que aproximam as ordens militar e jesuíta, a saber, o ascetismo, a hierarquia e a disciplina. Pois, para Hans, os jesuítas nada mais são que uma ordem militar religiosa, onde alunos obedientes seguem uma hierarquia, onde são 'oficiais ambiciosos', cuja intenção é distinguir em serviço. E a luta para a vinda da 'Cidade de Deus' necessita de um 'cosmopolitismo cristão' além de todo patriotismo, e de um ascetismo além de família e do apego à saúde. Tais censuras atingem diretamente a pedagogia humanista de Settembrini.

     Num passeio na neve, os febris interlocutores discorrem sobre a morte recente de outra habitante da 'montanha mágica', e Hans çamenta não ter sido avisado a tempo de comparecer aos funerais, assim ele dedica 'palavras à sua memória' e defende a 'reverência cristã' diante do infortúnio. Surge aí um estopim para o debate entre a caridade religiosa de Naphta e a caridade humanitária de Settembrini. Para o ex-seminarista o importante de haver pobreza é estimular a caridade - e uma reforma social teria privado os afortunados de darem esmolas !

     Então Settembrini, febrilmente, discorda de tal ideia, tudo referente a sagrado, ou reverência, tudo 'engano psicológico', viver de compaixão, conviver com o sofrimento alheio, medo de cair em desgraça. O italiano insiste que não faz sentido uma dignificação do enfermo, devido a sua enfermidade, pois a doença traz apenas vergonha, causada pela debilidade do corpo. A mente não é sã num corpo insano, daí a loucura, que é ocultada [ao se esconder dementes em hospícios].

     Diverso de Settembrini, o religioso aceita a miséria do corpo, o sofrimento que deve levar à expiação, pois sofrer lembra-nos nossa condição decaída. A beleza, o culto estético, é uma ofensa à consciência. É aceitável mortificar o corpo para glorificar a alma. Naphta aceita a violência, enquanto disciplina, que é desprezada por Settembrini, contra o castigo corporal, seja em nome da pedagogia ou da justiça. Naphta defende a flagelação, o sofrimento, e acha que são os prazeres que enfraquecem a alma em sua elevação espiritual. Para Settembrini, no açoite só há indignidade e humilhação. Novamente a discordar do italiano, o judeu-jesuíta lembra que a dignidade, a qual se refere o pedagogo, é aquela que surgiu do individualismo da era liberal burguesa, quando se precisa de mais disciplina e obediência.

     Ainda no assunto morte, o pedagogo prefere a cremação dos cadáveres, e o esvaziamento dos cemitérios, ambiente pouco higiênicos, mantidos apenas por um 'caráter sagrado'. É lugar de luto e morbidez. Mas o jesuíta insiste que sem o culto da morte "não haveria arquitetura, nem pintura, nem escultura, nem música, nem poesia." E Settembrini prefere a estética da vida, a dignidade da arte, não as experiências que sobrecarregam a morte, um mero fenômeno fisiológico. Terrível mesmo é a morte sob torturas - vide a Santa Inquisição... Naphta defende que não havia condenação sem confissão, e que a 'alma obstinada' sofria tortura no corpo como modo legítimo de confissão. Settembrini não aceita a violência para obrigar a uma confissão, como se fosse um 'serviço caridoso' de expiar pelo tormento. O italiano é contrário à pena de morte, um homicídio legalizado, onde o Estado se atribui o uso da violência.

     Naphta não está preocupado com os direitos humanos, com a preservação do indivíduo, pois sua crença é numa coletivismo devocional, suprapessoal, universal [daí católico, do grego καθολικός , 'katholikos'], onde uma vida pode ser sacrificada em nome de algo superior, uma crença, e o culpado deve ser disciplinado, visto que o assassino não deve sobreviver à vítima. O importante é a fé, a reverência, o olhar na infinitude, não se levar por promessas de progresso do mundo burguês, de moralidade aparente e efêmera. Mas Settembrini defende que o indivíduo digno ergue críticas a um coletivismo 'absorvente e nivelador'. Contudo, Naphta acha que a moralidade burguesa é pragmática para alcançar os interesses de satisfação, numa ética meramente de caráter burguês (aqui o aristocrata em Naphta tem um tom de desprezo...). Settembrini não vê vantagens em títulos e hierarquias, mas na distinção do indíviduo digno, "digno de viver e digno de amor".

     Quanto a temática doença, Naphta acha que a condição humana é enferma, que se progresso existe é em aprender com a doença. E que os sadios vivem de descobertas e conquistas feitas pelos enfermiços. E Cristo já dizia que os sãos não precisam de médicos, que a graça vem para os que necessitam de saúde. A enfermidade e a morte trazem a meditação sobre a finitude, portanto são nobres. O viver a vida pela vida é futilidade. No mundo burguẽs importa os interesses individuais, não o transcendental, enquanto o ensino jesuíta vem a favor do ascetismo e do desprezo do Eu. Como defender a dignidade crítica?

     De um lado temos a busca do conhecimento e o método de pensamento, a valorização do humano e da vida utilitária, de outro a espera da Revelação Divina, a ascensão ao Transcendental, a pregação da austeridade, e a vida abnegada e disciplinada. Cada pregador tem suas virtudes e 'pecados', suas ambiguidades e contradições - que tanto o narrador quanto Hans percebem bem. Settembrini é modesto, livre sexualmente, puritano intelectualmente; enquanto Naphta é um puritano sexualmente, e um herege ideologicamente. O comunista cristão num aposento de luxo enquanto o humanista liberal vive num mísero cubículo, debaixo de um telhado. Onde a posição de coerência, de conciliação? Certamente não seria a 'coletividade niveladora' nem o 'individualismo burguês'. Tantos conceitos e ideologias apenas causam a confusão de valores, o declínio da ordem moral, nossa crise da modernidade.


     Eis a chegada do inverno, com o mundo das alturas envolto em neve, um frio glacial a entorpecer a paisagem. Hans, no seu 'hábito de não se habituar', insiste em seus passeios pela montanha, agora devidamente equipado com seus esquis. E o jovem recebe o apoio do pedagogo, pois Hans não deve se deixar abater pela doença. Mesmo um moço civilizado, filho da planície apressada e ambiciosa, Castorp se simpatiza com os elementos naturais, onde encontra solidão - e certa angústia no isolamento e no silêncio. O que o espera além de uma 'solidão cheia de aventuras'?

     Hans admira o mundo da neve, sua presença, sua dança, sua arquitetura minúscula, que pode ser tão belo e tão hostil a vida. A natureza pode ser bela e ameaçadora - ainda mais nos ambientes extremos como aqueles de selva, de deserto ou de desolação gélida. Assim, de repente, a dança dos flocos de neves se acelera, se adensa, e eis a nevasca a surpreender o jovem, que se vê em 'trevas brancas', num atitude de desafio, quando excitado e cansado, admirado e revoltado com a fúria dos golpes de neve. [Lembramos dos contos do norte-americano Jack London (1876-1916) na fúria gélida do Alasca, onde qualquer descuido ou erro humano pode ser fatal num ambiente hostil - lá o ser humano se potencializa e se supera, caso contrário sua perdição é imediata...]

     Hans encontra-se realmente perdido na neve, em círculos, em esforço constante e inútil, e passa a sofrer devaneios e delírios, como num caleidoscópio de fatos já vividos, em sonhos e pesadelos, a visualizar um paraíso às margens do mar do Sul, o mediterrâneo, com um belo templo, onde ocorrem abominações. [Assim lembramos do delírio de agonia do escritor-póstumo Brás Cubas, em Memórias Póstumas, a obra-prima do brasileiro Machado de Assis (1839-1908), que galopa num hipopótamo, rumo ao encontro com a figura da Natureza, que tudo absorve, sem clemência.] No sonho-pesadelo de Hans, ele encontra a 'Grande Alma', da qual ele é mera partícula, fagulha de vida num mundo de doença e morte.

     Não apenas Hans, mas o ser humano, é 'filho enfermiço da vida', de modo que qualquer teoria ou ideologia se perde em garbosa retórica, assim como a medicina usa um latim pomposo para se referir às fisiologias e às enfermidades. Hans resolve não aderir nem à devoção de Naphta nem ao moralismo liberal de Settembrini, mas viver longe de oposições, de extremos, mas a decidir, em respeito a si mesmo. Não só a coletividade mística nem o individualismo sem rumos. O ser humano deve se erguer acima de suas condições, ser mais nobre que suas misérias, a fundamentar sua liberdade a partir de suas limitações. Diante da morte - mesmo um grande poder - deve se valorizar a vida, através do amor, não só da razão. Não devemos dar espaço para pensamento de morte.

Não concederei à morte nenhum domínio sobre meus pensamentos. Pois se mantém a bondade e a caridade, e em nada mais. A morte é um grande poder. Tira-se o chapéu e se anda nas pontas dos pés em sua presença. [...] Amor e morte - eis uma rima ruim, uma rima falsa e ultrajante! O amor permanece no caminho da morte, apenas ele, não a razão, é mais forte que ela. Apenas ele, não a razão, concede bons pensamentos. Também forma é apenas a partir do amor e da bondade: forma e comportamento civilizado de uma comunidade fraterna e sensível e correto estado humano - na calma visão diante de um repasto sangrento. Oh, assim está claramente sonhado e bem regido! Eu quero pensar nisso. Eu quero à morte manter lealdade em meu coração, mas bem me lembrar que lealdade entre a morte e o passado é apenas maldade e sombria volúpia e hostilidade, a dominar ela o nosso pensamento e governo. O ser humano, pela bondade e pelo amor, não deve conceder à morte qualquer domínio sobre seu pensamento. [pp. 661-662]


[Ich will dem Tode keine Herrschaft einräumen über meine Gedanken! Denn darin besteht die Güte und Menschenliebe, und in nichts anderem. Der Tod ist eine große Macht. Man nimmt den Hut ab und wiegt sich vorwärts auf Zehenspitzen in seiner Nähe. [...] Tod und Liebe, – das ist ein schlechter Reim, ein abgeschmackter, ein falscher Reim! Die Liebe steht dem Tode entgegen, nur sie, nicht die Vernunft, ist stärker als er. Nur sie, nicht die Vernunft, gibt gütige Gedanken. Auch Form ist nur aus Liebe und Güte: Form und Gesittung verständig-freundlicher Gemeinschaft und schönen Menschenstaats – in stillem Hinblick auf das Blutmahl. Oh, so ist es deutlich geträumt und gut regiert! Ich will dran denken. Ich will dem Tode Treue halten in meinem Herzen, doch mich hell erinnern, daß Treue zum Tode und Gewesenen nur Bosheit und finstere Wollust und Menschenfeindschaft ist, bestimmt sie unser Denken und Regieren. Der Mensch soll um der Güte und Liebe willen dem Tode keine Herrschaft einräumen über seine Gedanken.]



Reunindo suas forças, Hans começa seu regresso, donde segue até a aldeia, onde se reencontra com o Sr. Settembrini, a quem narra suas aventuras na neve, e depois volta ao repouso do sanatório.

     As mudanças na vida de Hans na 'montanha mágica' são motivadas principalmente pelo retorno de seu primo Joachim, acompanhado pela mãe, após manobras do exército lá na 'planície'. Parece que o estado de saúde de Joachim se agravou devido aos exercícios militares e ele deve ser novamente habituado ao regime comer e repousar lá no sanatório. Agora é Hans que o recebe fraternalmente. Joachim precisa aderir novamente à rotina dos comensais, aquelas conversas de civis, enquanto mantém sua discrição e boa educação. Seu formalismo aumenta com o agravamento da doença - e ele pouco acompanha das discussões entre os professores com suas retóricas, a empolgação humanista do italiano - que descobrem ser franco-maçom, com todas as suas sutilezas e mistérios - e o tom solene do comunista-jesuíta, descrente na capacidade humana de progresso.

     A recaída doentia de Joachim - e a reação de Hans - é o tema deste tópico final do extenso capítulo VI, um fim de vida para um e fim de etapa para outro, com seus aprendizados para o primo sobrevivente, que descobre o quanto o militar manteve coerente e disciplinado mesmo diante da morte que se aproxima. O Dr. Behrens ressalta esta característica do caráter viril do 'tenente' Ziemssen, que falta à personalidade de Hans, que é ambíguo e até hipócrita. Joachim sabe que sua morte é certa e mantém sua disciplina, sua visão de mundo ordenado, sem se desesperar. A única diferença é que ele se deixa em diálogo com uma certa senhorita, a quem nunca ousara abordar antes. Diante da morte ele perde a discrição e a timidez - e será sua última oportunidade. Logo, Hans informa a tia dos avanços danosos da doença, e esta vem ajudar o filho em seus últimos dias.

     Joachim mantém a dignidade até o fim, e quando começa a delirar sobre sua carreira e patente, sobre as manobras do exército, e em seu momento de agonia, de olhos vidrados. O primo Hans se adianta para fechar-lhe as pálpebras. Enquanto, nos funerais, o italiano lamenta a perda de um tão digno companheiro, o jesuíta lembra da seriedade da morte, e o Dr. Behrens polemiza que o militar se excedeu, ao não ouvir os conselhos, e voltar para as manobras militares. Ele desafiou a morte, e como bom soldado, aceitou-a como prẽmio ao final.

     O capítulo VII é também longo e vem fechar o romance, com a adição de uma personagem importante, a figura excẽntrica e dionisíaca do comerciante holandês Pieter Peeperkorn, a acompanhar a sedutora Madame Chauchat. Mas o que ocorre antes? Vejamos. Indagações, divagações, meditações e mais devaneios sobre o tempo e sua real irrealidade, nossas mudanças na percepção do tempo, as transformações na 'visão de mundo' de Hans Castorp, entre leituras, refeições e repouso. Pois "o tempo é o elemento da narrativa" [p. 721] O tempo passa pontualmente, com certa marcação, mas aos nossos sentidos ele pode ser elástico, se contrair ou estender - e nem entremos em questões de física da relatividade einsteiniana. Hans lembra-se de andanças pela praia, em divagações sobre a imensidão do mar, a infinitude... O tempo avança e recua com as ondas do mar... Vastidão: eternidade ... No mais, podemos comparar estas lembranças, e pensamentos profundos, com a cena do meditativo Stephen Dedalus, ao longo da praia dublinense, no episódio 3 [Proteus] de Ulysses, de James Joyce.

artigo sobre Ulisses em
http://meucanoneocidentaltres.blogspot.com.br/2016/05/sobre-ulisses-de-james-joyce-parte-1.html


À espera do retorno de Clawdia Chauchat - em suas viagens pela Europa, de oriente a ocidente, longe dos olhares do povo da 'montanha' - Hans não pode prever que sua musa voltará em companhia de uma 'personalidade' a galvanizar todos os comensais. Chamado de Mynheer Peeperkorn, o holandês logo se apresenta em modéstia ou discrição a atrair admiração ou inveja de todos, mas nunca indiferença. Ele fala sobre si mesmo em terceira pessoa e não poupa palavras para elogiar a vida - suas belezas e suas comidas. A volta de Clawdia, com o excêntrico senhor, surpreende o ansioso Hans, mas ele se mantém calmo e não se humilha. 
 




     Hans tenta sufocar seu desdém por Mynheer Peeperkorn, e é abordado pela Madame Chauchat, a trocarem palavras ambíguas, para que então o jovem seja apresentado a semelhante 'personalidade'. O holandês então propõe uma imensa mesa de jogo para reunir os hóspedes - e alegrar o ambiente. Todos se animam diante da presença radiante de Peeperkorn, sua alegria em viver, em gozar as delícias da vida, mesmo com suas doenças e limitações. Nunca se sente derrotado, nunca se perde em metafísicas. Mesmo embriagado, o Mynheer é espirituoso, majestoso e grandioso. Ele é dionisíaco [segundo os critérios de Nietzsche] diante dos professores cheios de retórica, os eruditos Settembrini e Naphta, sendo mesmo um 'contraponto' a ambos.

     Por fim, Hans procura agradar ao Mynheer, a tropeçar em racionalismos, pois além do intelecto e do 'espírito', da solenidade e da retórica, a vida pede entusiasmo, exige ebriedade, como já dizia o poeta francês Charles Baudelaire, "embriagai-vos, é preciso estar embriagado". Como Peeperkorn se dedica mais a animar Hans, o ainda racionalista, os demais comensais se esfriam, afasados da 'fonte de ânimo', pois não há bacanais sem a generosa figura de Baco, a ser o milorde a compartilhar benesses com seus vassalos. Um alarme falso encerra o festim às duas da madrugada, quando Hans ajuda Clawdia a carregar o ébrio senhor.

     Sabemos que a 'montanha mágica' está distante da vida produtiva-consumista da planície, onde a guerra é gerada e nutrida, o que propicia a Hans um ambiente de conforto e discussão, para o aprendizado e o desenvolvimento, como se o jovem fosse uma espécie de Alice num mundo de descobertas, o País das Maravilhas. Com as devidas diferenças, por analogia, acompanhando o mundo das alturas de Mann com a leitura prévias das alegorias-fantasias de Lewis Carroll, se Hans é a curiosa Alice, então Joachim é o Coelho Branco, preocupado com os formalismos; e Settembrini lembra o Chapeleiro Louco, com sua figura de 'velho do realejo', com suas perguntas imprevistas e provocativas; assim como Naphta é uma espécie de Lagarta Azul a questionar identidades alheias, e o vitalismo hilárico e zombeteiro de Myheer Peeperkorn é próximo daquele do Gato Sorridente, o de Cheshire. É de se perguntar se Clawdia seria uma espécie de rutilante Rainha de Copas...

sobre Alice no País das Maravilhas [1865]
http://leoleituraescrita.blogspot.com.br/2009/12/leitura-de-alice-no-pais-das-maravilhas.html


     Mynheer recebe a visita de Hans, e o assunto é remédios, a cura e o venenos, de que o veneno pode ser remédio, a depender da dose. Interessante assunto, que depois se revelará trágico. Doente, acamado, Mynheer não pode falar muito. Hans, ao longo dos meses, faz outras visitas, sempre sob os olhares atentos de Clawdia Chauchat. Também, ocorrem cenas de passeios, onde Hans apresenta o holandês e a russa aos professores Settembrini e Naphta. Clawdia é hostil ao italiano irônico, mas conversa com Naphta. Ambos os pedagogos desdenham Mynheer, minguado em retóricas, pouco imponente ao ar livre.

     O Sr. Peeperkorn é cortês e respeitoso, não irônico, pois é grandioso, sem retóricas. Mas o professor Settembrini ressalta a estupidez de Mynheer, contudo Hans admira a 'personalidade', a vitalidade do holandês. O que é estupidez? Quem a define? E o ser espontâneo não é uma inteligência apenas diferente da meditativa? A grandiosidade de Peeperkorn é corporal, é física e vital. Assim, ele se impõe, com sua vontade, sobre a especulação intelectual. "A personalidade é um valor positivo", defende. Mas não se deve idolatrar, avisa Settembrini, o carisma. Hans considera o carisma um mistério de atração, para além da razão. A presença de Mynheer atrai mais que a retórica de um Naphta. Mas, irritado, o humanista 'toma o partido' do jesuíta, por mais que deteste suas contradições. O que não pode aceitar é o 'mistério' da personalidade. O que o italiano admira são a 'objetividade e a cama de espírito'. Ao admirar o carisma do holandês, Hans não o vê como 'rival', não pretende mostrar-se agora 'viril', em disputas. Não se sente ofendido.

     Os debates entre os intelectuais 'perdem força' quando na presença da personalidade 'magnética' de Mynheer Peeperkorn. O humanista defende as Ideias, as Luzes, o Progresso, o jesuíta prega a abnegação, a devoção, a reforma da Igreja, e Peeperkorn exalta a vitalidade, o comer bem, a embriaguez, a sensualidade. Volúpia que Settembrini defende, Naphta condena, mas quem a viveu, e vive, é o hedonista Peeperkorn. Ele observa o duelo intelectual, faz comentários, e a retórica se esfria. A 'personalidade' não tem um 'caráter educador', pois quando fala é por entusiasmo. Depois, Clawdia e Hans se encontram no sanatório e conversam sobre a condição acamada do grandioso Mynheer. Ela reconhece a reverência de Hans diante da 'personalidade', e solicita apoio para cuidar do enfermo. Em seguida, por gratidão, Clawdia sela o pacto de amizade com um beijo.

     Um tempo depois, Hans faz uma visita ao acamado Peeperkorn, quando falam sobre os passeios, os banquetes e as bebedeiras, os professores retóricos, e, claro, as mulheres. O que sabe Hans sobre mulheres? Banalidades (ou convencionalismos?). Que mulher não tem vontade própria, é reativa, são objetos, submissas ao amor masculino. Mynheer declara que o homem tem o desejo e a mulher espera ser conquistada pelo desejo dele. É próprio do homem, com sua 'força viril' despertar a vida. "O nosso dever de sentir" [p. 807] e nada de especulações sobre a 'mulher' - Mynheer quer saber o que Hans sente por Clawdia. Assim, súbito e cortante. Hans se perturba, sem retóricas. Por que prefere o jovem ficar à cabeceira do velho enfermo a fazer companhia à madame? Peeperkorn percebera que o comportamento de Hans diante de Clawdia é um tanto formal, uma 'atitude forçada'. De modo que o Sr. Peeperkorn é nada estúpido - percebe bem o comportamento alheio, o que é espontâneo, o que é 'forçado'. Hans está sem reação - perplexo.

     Mynheer Peeperkorn desconfia que Clawdia e Hans foram 'amantes' na temporada passada. Então, o jovem confessa ao velho a paixão - vertida na noie canavalesca - pela madame. No dia seguinte, ela foi embora para a 'planície', para as viagens. E quando ela retorna, não estava sozinha - mas acompanhada por uma 'personalidade'. Hans sabe que a madame não pode amar um jovem tão inexperiente quanto ele, que a considera uma mulher 'genial', caprichosa, pois 'a doença a deixa livre'. Hans se sente decepcionado, mas não tem hostilidade contra Mynheer, o que incomoda Clawdia. "As mulheres não gostam de que os seus amantes se entendam." [p. 817] Castorp lembra que está muito tempo - quantos anos? - ali na montanha, que perdeu o primo, que não tem contato com a 'planície', que não é homem 'de personalidade', é, sim, um 'filho enfermiço da vida' - como dizia o pedagogo italiano -, que estava a espera de Clawdia, que ele se entregou à doença. Mynheer compreende a condição de Hans e decide ser fraternal, e não um rival, sendo assim propõe usarem o 'tu' sem formalidades. Hans considera a amizade de Mynheer uma honra.

     O tempo passa. Passa o inverno, chega a primavera. Tempo em que Mynheer Peeperkorn passara acamado - somente 'regendo' as refeições noturnas. Hans tenta agradar tanto Clawdia quanto Mynheer, ainda que deslize em 'formalismos' no convívio social. Um belo dia, desejam seguir em passeio até uma cascata na floresta. Na saída, Hans se encontra com o outro 'rival', outro apaixonado pela madame. Ambos apagados diante da 'personalidade'. Mas o 'rival' Wehsal, o pianista, está ainda mais atormentado, em cobiça insaciável. Hans se recusa a ouvir as confissões indiscretas do 'mísero' rival. Na aldeia, os dois retóricos se unem aos internos de Berghof e seguem todos floresta adentro, onde podem contemplar a exuberante cachoeira, mais abundante e ruidosa devido ao degelo nas montanhas. Mynheer decide onde todos devem parar para o farto lanche. Mynheer discursa mas somente se ouve os estrondos da queda d'água, mas ele não se importa. ele bebe em honra ao esplendor da Natureza. Depois da ceia, voltam para a aldeia.

     Na noite que se segue, alteração na rotina do sanatório. Hans é despertado para prestar auxílio à madame. Ao chegar aos aposentos de Peeperkorn, o jovem o encontra morto. O Dr. Behrens atesta como suicídio por uso de substância venenosa (quinino?) Assim, lembramos da cena discursiva sobre remédios e venenos. De modo que Mynheer Pieter Peeperkorn abdicou, segundo a declaração de madame Chauchat, a 'viúva', que recebe as condolências de Hans Castorp.


     A narrativa se estendeu, longa e digressiva, e o romance se precipita para o fim ( faltam ainda metade do capítulo, ou 120 páginas ... ) e Hans está bem entediado, de mau humor, como vem notou o Dr. Behrens. Para o médico, a cura do jovem é 'progressiva', as 'manchas úmidas' do pulmão estão a diminuir. Mas é possível que bacilos se alojassem no sangue (será isso? ou anemia? ou linfoma?) O Dr. deseja experimentar novos tratamentos, e o paciente se diz disposto. A indolência toma conta do protagonista, ainda mais com a ausência da madame - sua angústia constante.

     Na 'montanha mágica' as ocupações e manias para afastar o tédio - fotografias, filatelia, guloseimas, jogos, artesanato - que podem se tornar caprichos e obsessões. O caso do promotor preocupado com a quadratura do círculo - atormentado por equações matemáticas, entre a melancolia e o desespero. Hans ouve a todos aqueles de ideias fixas, mesmo as mais elaboradas. Projetos de reciclagem, aprendizado de idiomas, carteados, paciências, etc. Enquanto isso, o Sr. Settembrini vive preocupado com a política europeia (em vésperas da Grande Guerra de 1914-18), com o paneslavismo em reação ao pangermanismo (e o italiano odeia a hegemonia austríaca...), enquanto isso Hans vive sob o 'Grande Tédio'. Em breve virá a Catástrofe - a matança, os genocídios, o fim dos Impérios. Hans se submete aos tratamentos - sangrias, desintoxicações, vacinas - em sua rotina de paciente, enquanto continua a 'tirar paciências'.

     Para distrair os internos, é instalado no salão um aparelho de som, um toca-discos de baú, espécie de gramofone, com uma coleção de discos ('discoteca'), com sontas, árias, Lieder, valsas, tangos, sinfonias, óperas. Um simulacro de orquestra. Logo, Hans se encarrega do aparelho de som, e sua 'discoteca', como uma nova paixão, pela invenção de 'nova época'. O jovem torna-se possessivo, até 'ciumento' com relação ao novo aparelho, não ouve passivamente, como por comodidade, mas 'investiga' a invenção, se informa sobre as peças musicais, ordenava os discos, pois ele não quer ser parte do 'auditório', mas o produtor do espetáculo (hoje diríamos, ele não é plateia, é o DJ...), ele organiza tudo, a zelar pelo bom funcionamento, torna-se o 'técnico' de som. A sós, ele sofre com as óperas, delicia-se com as valsas. - Barbeiro de Sevilla - "Figaro!"-, de Rossini, Aida, de Verdi, a Carmen, de Bizet, Fausto, de Gounod, A Tília, de Schubert, verdadeiros 'sustos e êxtases' para Hans, que repousa entre melodias, fantasias e sonhos, de amor e morte. [Lembramos que música será tema de outra obra-prima de Thomas Mann, o romance Doktor Faustus (1947), onde o protagonista é um músico atormentado.]


sobre primeiros aparelhos toca-discos
http://www.paulistando.com.br/2013/04/furo-1913-primeira-reuniao-audiofila.html





    Quanto à morte, nova mania se apossa dos internos, aquela dos fenômenos psíquicos, sobrenaturais: hipnotismo, sonambulismo, telepatia, comunicação com os mortos (as 'mesas giratórias'), uma diluição do espiritualismo 'hermético' na forma de espiritismo. Do inconsciente ao 'superconsciente', assim como se vai dos estudos de Freud às alquimias de Jung. Do mais íntimo da personalidade ao saber que transcende o indivíduo. De onde o patológico, a histeria, o oculto dentro de nós mesmos? Vem o 'espírito' da própria dinâmica da matéria? Ou a matéria (o corpo) é movida pela presença do espírito (a alma)?

     Uma paciente 'paranormal' adentra a cena, para perplexidade dos internos, que adoram jogos de adivinhação. Mas a nova paciente tem auxílios 'sobrenaturais', não previstos pela lógica. O Dr. psiquiatra se ocupa do caso misterioso - com sua 'dissecação da alma' (uma proto-sessão de análise...). Também Hans Castorp se interessa pelos fenômenos sobrenaturais, com sua 'viva curiosidade'. Que espírito será este que sussurra ao ouvido da jovem paciente? Que fenômenos cercam a jovem existência? Telecinese, visão de falecidos, telepatia?


     Os internos organizam sessões de 'mesa giratória' para sondar o desconhecido. Tentativas de 'diálogo' com os espíritos do mundo-do-além. Que espécie de 'oráculo' podem invocar? Um espírito faceiro a responder - e se irritar - e a usar um alfabeto para expressar poemas. Imagens simbolistas da vastidão marítima a confundir-se com a eternidade. Onde o humano e o divino se comunicam em 'palavras sonhadoras' (e a 'poesia do onírico' se apresentaria nas formas de Expressionismo e de Surrealismo nas vanguardas de início de século 20). Alguns se assustam, outros nauseados, ao se manifesar a presença 'do além', que se despede em pancadas.

     O Sr. Settembrini reprova tais experiências como impostura, e mostra-se discontente com o 'discípulo'. E Hans não sabe quais os limites entre realidade e ilusão. Settembrini alerta contra o ceticismo e contra os misticismos. Hans promete se afastar das sessões 'espíritas'. Fora as 'experiências' do Dr. Krokowski, com hipnotismo, junto com melodias, iluminação baixa, para a produção de fenômenos telecinéticos. Também 'materializações' de projeções mentais, com fluídos emanados do corpo do/a médium. Ou manifestações de entidades desencarnadas. Hans é informado, mas mantém-se isolado.

     Finalmente, após insistências, Hans acompanha outra sessão sobrenatural no laboratório do psiquiatra. Na penumbra, se reúnem os internos, entre curiosos e tensos. Após o transe da médium, se manifesta o espírito, que antes prometera trazer outra entidade, à escolha do grupo. Hans deseja a presença do falecido primo Joachim. O transe é profundo, após algum tempo, a médium repete gestos de Joachim no momento da morte... Depois de uma pausa, nova peça musical, surge a figura de Joachim, formal, fardada, soturna! Ilusão ou realidade? Aparição ou delírio? Manifesação ou sugestionamento? Nunca saberemos. Hans se levanta e sai da sala.


     Antes do conflito aberto, a irritação, a hostilidade, os debates nada amistosos. A época de paz e tédio se apaga - acabava assim a Belle Époque, tão bem descrita por Marcel Proust em sua obra Em Busca do Tempo Perdido - para a entrada de um século de violências e genocídios, de massacres e morte sistemática. Os internos e seus acessos de fúria, suas crises súbitas e imprevistas. Discussões, brigas, duelos, tribunais de honra. Também Settembrini e Naphta acham-se em estado de irritação, não suportam ironias quando a retórica perde efeito, quando sentem-se reféns de uma doença crônica, que enfraquece o corpo e entorpece a mente. O italiano se envergonha, melancólico, e o jesuíta se entrega à doença, a desprezar o corpo frágil. Parece mesmo um irascível desejo de guerra, que tudo acabe e seja refeita a política. A fragilidade humana e as falhas da ciência e da técnica: a tragédia do navio britânico Titanic, que naufraga na viagem inaugural em abril de 1912. Sim, uma insegurança geral, o sentimento de um fim de uma época.

     Settembrini menciona a justiça, e Naphta diz não passar de retórica, e zomba da ciência, do evolucionismo, da filosofia natural, do monismo, das leis da física, do domínio da natureza, do éter, do aomo, do espaço-tempo, do realismo, do niilismo, em suma, do conhecimento humano. Cada vez mais antipático, Naphta ataca as revoluções iluminista, liberal, romântica - para a irritação do italiano. É o limite - é o impasse - o desafio para um duelo. Naphta havia irritado Settembrini ao ponto de trocarem ofensas - e o jesuíta insiste num duelo - nem Hans consegue apaziguar os professores. Por que levam a discussão ideológica para o lado pessoal? Por que se matarem por causa de ideias? O Sr. Settembrini declara que se deve estar pronto para arriscar a vida por um ideal.


     O duelo Naphta versus Settembrini é a confirmação do debate que leva ao conflito armado - que acontece na Europa, de 1914 a 1918, que levou ao declínio do continente (e a ascensão de domínios políticos e militares na Ásia - União Soviética - e na América - os Estados Unidos) - quando a diplomacia se rende ao belicismo. O que é um duelo? É uma instituição 'cavalheiresca' para domar uma luta corporal bestial. Hans espera que os ãnimos se esfriem para uma reconciliação. Hans é convocado para ser o árbitro... Wehsal e Fege são os 'padrinhos' de Naphta e Settembrini. Ao amanhecer, chegam ao limite da aldeia, e o jovem tenta dissiadi-los - em vão. Então o italiano atira para o alto, e o jesuíta, transtornado, atira contra a própria cabeça! Fim de cena.


     Sete anos - eis o tempo de Hans Castorp na 'montanha mágica' de Berghof, em Davos, nos alpes suiços. Longe se vão as planejadas três semanas ao lado do primo Joachim, já falecido. Hans é um paciente resignado, vive sua rotina. Até que um 'trovão' - ou tiro de canhão - ressoa na Europa: as alianças entre os países leva a uma guerra generalizada, é a Grande Guerra [depois será a Primeira Guerra Mundial, pois haverá a Segunda, de 1939 a 1945] que deixará o continente em ruínas e revoluções, com a implosão dos Impérios Centrais - alemão e austro-húngaro - além do russo e otomano - com a civilização europeia num impasse - toda a educação humanista para quê? Para tudo terminar numa guerra total a massacrar a juventude?

     Sim, pois Hans deixa o mundo paralelo da montanha e desce até a planície para ser um voluntário a lutar por seu país. O Narrador reconhece o protagonista durante uma ofensiva - que deve ser a da Primeira Batalha de Ypres, em outubro de 1914 - quando estudantes voluntários, com pouco treinamento são enviados para o destroçado front. Somos observadores do massacre, onde o jovem Hans, após todo o estudo, toda meditação, e o desenvolvimento intelectual na 'montanha mágica', não tem outro fim que aquele do campo de batalha. Não sabemos se ele morreu ou sobreviveu, o Narrador deixa a cena se esfumaçar, caótica, num bombardeio de artilharia, e os jovens tombam ou avançam num cenário de terror, produzido pela própria ciência e pela insensatez política.

Batalha de Langemarck, 22 outubro 1914
na Primeira Batalha de Ypres [out - nov 1914]
estudantes e recrutas sem experiência na ofensiva alemã fracassada
http://veja.abril.com.br/historia/primeira-grande-guerra-mundial/1915-abril-batalha-galipoli/morte-ar-primeiro-ataque-gas-ypres.shtml

[por sua vez os britânicos sofreram as maiores na
Batalha de Paschendale, 31 julho 1917 na
Terceira Batalha de Ypres, jul - nov 1917 ]
http://entrandonahistoria.blogspot.com.br/2009/02/1-guerra-mundial-passchendaele.html


ver obra de E. M. Remarque, Nada de novo no front ocidental, 1929,
onde professor orienta estudantes para se alistarem
[o livro inspirou filme em 1930...]
https://pt.wikipedia.org/wiki/Im_Westen_nichts_Neues
http://www.imdb.com/title/tt0020629/
https://www.youtube.com/watch?v=OQc_Gj8Q-FE






     Assim como lamentamos a morte do oficial Robert de Saint-Loup, o nobre francês, refinado e elegante, da obra de Proust, aqui pranteamos a morte gratuita de Hans Castorp, após sua vida narrada como um 'romance de formação', para progresso algum, exceto aquele da barbárie militarista. Eis o aviso de Thomas Mann, que viu seu país invadido pelos radicalismos, tanto de esquerda como de direita, que levaram ao conflito interno, e ao surgimento de um dos maiores pesadelos da humanidade: o Estado totalitário e seus genocídios. Mann, com sua verve humanista, em seu exílio, bem que avisara em seus discursos na BBC contra o ditador Hitler, o quanto a Alemanha - e a Europa - haviam decaído ao abandonarem os ideais de liberdade e fraternidade.


alguns discursos de Thomas Mann na BBC de Londres
durante a Segunda Guerra Mundial

http://sgmsegundaguerramundialww2.blogspot.com.br/2011/09/mais-discursos-de-thomas-mann.html

http://sgmsegundaguerramundialww2.blogspot.com.br/2012/01/apelo-de-t-mann-ao-povo-alemao-nazismo.html

http://sgmsegundaguerramundialww2.blogspot.com.br/2013/07/thomas-mann-contra-hitler-queda-do.html

http://sgmsegundaguerramundialww2.blogspot.com.br/2013/09/quem-salvara-alemanha-discurso-contra.html




mai / jun 16


by Leonardo de Magalhaens



mais info em

http://www.e-biografias.net/thomas_mann/

http://www.jornalopcao.com.br/colunas/imprensa/sergio-buarque-de-holanda-entrevista-thomas-mann-e-descobre-origem-brasileira-da-mae-do-autor-de-a-montanha-magica


https://felipepimenta.com/2013/10/02/resenha-de-a-montanha-magica-de-thomas-mann/

https://espectral.wordpress.com/2011/01/12/leituras-de-2011-thomas-mann-a-montanha-magica-1924/


http://antoniocicero.blogspot.com.br/2008/04/apresentao-de-montanha-mgica-de-thomas.html

http://www.ocampones.com/?p=6346

http://www.pmannia.com/2011/04/zauberberg-woodcuts-to-thomas-manns.html





original Der Zauberberg em alemão

http://pdbooks.ca/books/deutsch/authors/thomas-mann/der-zauberberg/vorsatz.html




Referências


MANN, Thomas. A Montanha Mágica. [Der Zauberberg] Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. (Coleção 40 anos, 40 livros)




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sexta-feira, 17 de junho de 2016

sobre A MONTANHA MÁGICA - P2 - Thomas Mann







sobre A Montanha Mágica [Der Zauberberg] 1924
do escritor alemão Thomas Mann [1875-1955]


Um duelo de ideias e ideologias nas alturas




parte 2

     A partir do capítulo V, Hans Castorp encara sua nova condição de paciente do sanatório. Não pode ir-se, voltar a planície, como desejava na situação de visitante do primo. Agora Hans precisa acostumar-se com seu corpo, suas tosses, dia a dia, em repouso e atividade, em medicação e vida social. Logo, Hans recebe a visita do Sr. Settembrini, o professor italiano em busca de um discípulo. Sentindo-se distante da planície, sua terra, família, estudos e emprego, Hans é tratado como um companheiro, mesmo que de infortúnio, pelo professor. O italiano considera a estado de prostração do jovem por questões de desambientação, que se vê separado em outro mundo. Para Hans o mundo lá da planície parece até mesmo cruel, é preciso ter 'casca grossa' para sobreviver no mundo de pressa e competição, onde mestres e pupilos, gerentes e empregados sofrem sob a ditadura do relógio. Lá na 'montanha mágica', o jovem terá tempo de sobra.

     No mais, o professor insiste para que Hans não se deixe tomar por um estado de morbidez, de apatia religiosa diante da enfermidade e da morte, pois não é preciso renovação, não resignação. Hans não se pode prostrar com a rotina e a monotonia. è conveniente, pois o Dr. Behrens libera o jovem do período acamado, e assim é novamente envolto pela vida social do sanatório, na sala de refeições e nos saraus promovidos pelos pacientes. Daí mais inconfidências sobre a madame Chauchat, a russa indiscreta. Ao se apresentarem para o exame de radiografia, Hans e seu primo Joachim encontram justamente Clawdia na sala de espera. Joachim lê uma revista, Hans empalidece. Clawdia mantém uma curta conversa de conveniência, fria e formal. Hans mantém-se mudo, a observar, ciente da doença da bela russa. Em seguida, os primos se submetem ao exame, e Hans se surpreende com as visões do interior do corpo, com os dois sacos pulmonares, a bomba pulsante do coração, as costelas, a coluna vertebral... isso quando da radioscopia de seu primo. Depois é a vez dele, que na radioscopia pode ver a própria mão, aquela esquelética estrutura fragilizada, descarnada, num vislumbre do túmulo.

     Para Hans o tempo passa, alheio ao mundo da planície, de onde tem remotas notícias. Aquelas sete semanas não foram mais que sete dias, ou aparentaram mais tempo do que em realidade se passara? De qualquer maneira, nada sabe sobre a duração exata. O tempo cronológico somente é interpretado pelo psicológico. Settembrini alerta o jovem sobre o estado de morbidez, que pode converter a ironia em sarcasmo, algo desprezível. A ironia é um instrumento retórico, útil ao intelecto, que não se rebaixa ao mesquinhez sarcástica. É que o receptivo ouvinte Castorp não é mais tão simpático, ousa ser crítico, com a mania crítica do pedagogo, para quem falta rotular a ironia de suspeita, assim como fizera com a música. E será que a doença de Settembrini não provoca um desespero mudo? Onde a vida de educação e progresso num retiro de enfermos?

     Após avisar em carta aos tios sobre o tratamento, que promete ser longo, Hans se prepara para o inverno, a desfrutar o clima ameno e de veraneio, onde prossegue a vida social dos pacientes. Daí os gestos, ações e afetações de Hans para chamar a atenção de Clawdia Chauchat. Pois, o narrador é indiscreto, "nosso herói estava apaixonado". Agora, ele se esforça para fazer parte da sociedade do sanatório, para ser parte do 'nós aqui em cima', e não ser desprezado como um ingênuo rapaz sadio da planície. (Ser doente, profundamente doente, é status entre enfermos.) Hans troca saudações com a russa Clawdia, na subida para o bosque, e percebe que ela já o notou. Os caprichos do mercúrio marcam a temperatura do jovem em 38 graus.

     A questão dos relacionamentos amorosos na sociedade da 'montanha mágica', onde a paixão de Hans desperta a atenção dos enfermos convivas, pois o jovem expõe seu afeto na tentativa de ser reconhecido e incentivado. Enquanto isso, a figura do pedagogo é insistente. O Sr. Settembrini se assegura da aclimatação do jovem, e divaga sobre o valor do tempo e seu uso para o progresso da civilização, pois o humanista volta ao tema 'progresso da humanidade', seu preferido. O italiano sempre reafirma seu papel de humanista, nunca dado a devoções, sem 'tendências ascéticas'. Não aceita sentimentalismos, tem caráter clássico, classicista, a conclamar a mente sã em corpo são. A mente, o espírito, não vale mais que o corpo, pois ambos são dispostos à beleza e à liberdade. Devemos abraçar a alegria e a razão, sem obscurantismo dogmáticos.

     Nas obras iluministas, p.ex. Voltaire, revoltado contra as forças obscuras, da Natureza ou do Criador, o pedagogo vê a hostilidade da razão contra o destino e as superstições, que não aceita se submeter aos poderes que não controla. Uma racionalidade contra dogmatismo e contra a hipocrisia, contra a ideia de pecado e a culpa, contra o desprezo ao corpo. Não exaltar o corpo na sensualidade nem desprezar com medo de pecaminosidades. Mas o corpo doentio, o deformado, o que asfixia a mente, gera pensamentos mórbidos, se perde na crueldade e na decomposição.

     Os primos seguem em repouso. Um elogio ao charuto, vício que não é facilmente abandonado. Em resposta ao interesse de Hans Castorp, o Dr. Behrens convida os primos para visitarem seu ateliê. Hans descobre lá o quadro que retrata a Mme. Chauchat. Divagações sobre a arte da retratação, como captar o humano e representá-lo na pintura. Uma recorrência: a arte de retratar a plasticidade da pele, parte marcante da fisiologia do corpo humano.


     Então eis a chegada do inverno alpino, um clima hostil e belo. O tempo devorador e devorado. Imagens do poente após a nevada. Lá está Hans entre a inércia e a excitação, sob o encanto da noite invernal, enquanto ele se entrega às leituras e pesquisas sobre fisiologia e medicina. Uma coisa é saber o que é a vida, seus processos, sua reprodução, outra a questão da consciência. Como se explicar os fenômenos conscientes por critérios de reações aos estímulos, ao modo behaviorista? Como os pensamentos brotam ao longo do emaranhado cerebral de células nervosas? Como a matéria se organizou, se replicou, sofreu mutações, até o ponto de voltar-se sobre si mesma na forma de perguntas sobre a origem?

     Maior mistério que a vida é haver quem se pergunte sobre a vida. Será a consciência mera inquietação sem conclusões? Será uma espécie de obsessão ou doença? (Para a consciência enquanto doença podemos ler em Schopenhauer, Dostoiévski e Nietzsche.) Que processo leva ao esforço aflitivo de perguntar-se? Não bastaria simplesmente viver e contemplar? Por que a necessidade de criar música e poesia? Por que a busca pela beleza e pela harmonia? Será a consciência uma enfermidade da matéria? Que tipo de 'geração espontânea' gerou o pensamento? Como a energia cósmica gerou a matéria inorgânica que gerou a matéria orgânica que gerou outra imaterialidade, o pensamento e a cultura? Profundas inquietações metafísicas para um jovem insone.

     Para quebrar a monotonia temos as festas de fim de ano no sanatório Berghof, onde a morte é ocultada por medidas de sanidade e bom-tom. A morte é assunto que sequer é comentado, daí ser um 'tabu' entre os comensais e convivas. Será por hipocrisia e egoísmo? ou por defesa psíquica? Devemos ocultar os óbitos para manter as esperanças de cura e restabelecimento? Quais as atitudes corretas diante da morte? O horror, a solenidade, ou indiferença? Hans pensa que temos de ter solenidade, como a cumprir um rito. Por que apenas um 'espírito livre' deve atuar? Não há lugar para a devoção? O jovem se inclina mais para a solenidade, para o luto, para a piedade cristã, até gótica, de pesar diante da finitude.

     Castorp resolve não aderir ao tom de hipocrisia que dissimula a morte e afasta os agonizantes. Ele prefere manter contato com as pessoas em estado grave,os pacientes terminais. Ele percebe incidentes que maculam a solenidade do hospital, em afrontas a 'dignidade' de um espaço designado para o repouso e a cura, onde pessoas passam por sofrimento. Hans inicia seu plano de dar atenção aos enfermos graves. Para distrair uma das pacientes, os primos passam a acompanhá-la nos esportes de inverno, seja patinação ou corrida de trenós. Há também sessões de cinemas, uma arte nova, com fotografias em movimento, onde se projetava a espetacularização dos dramas humanos. Nas imagens da tela, o espaço se aniquila e o tempo recua. O que era passado é transformado num aqui e agora, em imagens gravadas, que novamente dançavam, cantavam, sofriam. Também acompanham a paciente a um café, dentro do cassino da aldeia. E seguem em outros passeios, até mesmo ao cemitério, local de pensamentos fúnebres. Daí as danças macabras, as alegorias medonhas do medieval.

     Logo as festividades do carnaval, que tingem de tons alegres a atmosfera solene e monótona do sanatório. Será uma esperada Noite de Walpurgis [Walpurgis Nacht] que vem encantar a todos? Hans tenta quebrar os formalismos com o Sr. Settembrini, que parece ser o mais reservado. Nas brincadeiras da noite, Hans se vê a pedir um lápis a Clawdia, tal como pedira ao seu colega Hippe. É o início de um longo diálogo, onde Hans prefere se expressar em francês. As inquietações do jovem, sobre a situação da Europa, entre liberdade e ordem. Menção ao retrato de Clawdia, visto no ateliê do doutor. A madame não deseja dançar, então ambos ficam apenas a observar os pares no salão.

     Hans destila uma fala poética, onírica, pois falar em francẽs "é como conversar num sonho". Clawdia revela que Hans se demorou a abordá-la, pois agora é tarde, uma vez que ela deve viajar no dia seguinte. Ele não oculta a perplexidade, e conduz a conversa para um nível mais íntimo, como uma forma de compensar a frustração. Hans confessa já não temer tanto a morte, após meio ano a conviver naquele ambiente de doença e agonia, agora ele assume uma atitude de resignação, sem sobressaltos. O que o inquieta é a vida dela, e sua curiosidade leva às perguntas indiscretas... E como num sonho, o jovem vai a tecer divagações e delírios sobre amor, poesia e medicina, como uma confissão final, de joelhos, diante de Clawdia.


No capítulo seguinte, VI, estamos em abril, cerca de seis semanas depois, com a mente de Hans Castorp povoada por considerações, reflexões, divagações sobre o tempo, sobre o eterno e o finito, sobre as transformações no tempo e no espaço, ainda na questão Was ist die Zeit?, enquanto isso, o primo Joachim começa a se inconformar com sua estadia obrigatória devido a sua doença crônica. Afinal, ele só pensa em sua carreira militar interrompida. Até ali Joachim manteve a disciplina e a postura recatada, ao estilo militar. Mas quando ele vê seus planos se frustrarem... Enquanto Hans vai se adaptando com a ausência de Clawdia Chauchat, sabendo que ela em breve retornará (será a quarta temporada dela...) Ele deve se preocupar mais é com as subidas do termômetro, em seu tratamento com o Dr. Behrens, seu médico e interlocutor, entre lembranças e charutos.




     Claro, temos também os diálogos socráticos com o professor Sr. Settembrini, que anuncia sua mudança para a aldeia. É um domingo de Páscoa, uma primavera com tons invernais, a parecer mais um outono. Com o tempo, também a amizade entre o Dr. Krokowski e o atento Hans, interessado nas 'dissecações da alma'. Depois de fisiologia, psicologia, o novo interesse de Hans por assuntos da botânica. Assim as manias de Castorp, com as plantas e as estações do ano. Na aldeia, na rua principal, os primos encontram o Sr. Settembrini e um desconhecido. É um certo Sr. Naphta, um vizinho do italiano lá na pensão.

     Um intelectual, o Sr. Leo Naphta, de aparência pouco atraente, porém bem-trajado, apresentado como um Príncipe da Escolástica [Princeps Scholasticorum], ex-seminarista, professor de línguas clássicas, outro egresso do sanatório. Então os primos passam a acompanhar os debates intelectuais-metafísicos-teológicos dos dois professores. São longos diálogos que exigem certa erudição, certo conhecimento de filosofia clássica e medieval. Settembrini, o iluminista, é mais irônico, dionisíaco, ainda que racionalista. Orgulha-se da natureza e do corpo, a evitar dualismos, é adverso as categorizações, acha que é válido o que guia até o progresso e a liberdade de espírito [no caso, de expressão].

     Naphta é de humor mais apolíneo, de tons solenes, que não é favorável a natureza, antes prefere a espiritualidade. Não é liberdade que importa, mas a elevação do espírito, rumo ao Supremo, no caso, o Transcendental, numa linhagem mais platônica, ou de Aquino. É o pensamento clássico, cheio de hierarquias, onde o individual se submete ao cosmos - Ideia Suprema. É importante a perfeição, desde a vida cotidiana, mundana, até a vida contemplativa, devota.

     Para Settembrini não é a Devoção o mais importante, antes o Trabalho, o esforço, o progresso, e não a contemplação. Ao homem ativo, do mundo ocidental, cabem a razão e a ação, e não a meditação de monges. No que Hans parece discordar, mais inclinado ao estilo Naphta de ser, mais isolado, meditativo, averso aos festins e hilaridades. A meditação não visa o progresso, mas a devoção, o exercício ascético. Ao que Settembrini prefere a 'benção do trabalho', no que concorda com o positivismo burguês, que visa afastar os entraves medievais do pietismo, que seria uma 'preguiça'. E Hans, entre os doutos, volta a preferir o ascetismo de Naphta, numa disciplina plena, no que se aproxima da vida militar, de disciplina e abdicação de si mesmo pela coletividade, a pátria. Mas o italiano acha que vida militar é meramente um formalismo.

     Hans ouve atentamente os argumentos de lado a lado, enquanto Settembrini censura a indiferença, o 'analfabetismo' político, e defende o 'aperfeiçoamento social', o jesuíta Naphta crê que a política é uma oportunidade para que 'uns e outros' se comprometam moralmente, e é fatalista quanto ao progresso; o que muito difere do italiano, otimista, positivista, a crer em medidas racionais contra as ameaças de guerra, com a justiça entre as nações, mesmo que não condene os conflitos, resultados de um 'princípio de movimento', gerado por vontade de mudança, rebelião, rumo às reformas, dentro e fora das nações. Afinal, quietismo, paz constante, não leva ao progresso, a uma auto-superação.

     O atento Hans acha que o conflito é inevitável, mas que tudo volta ao anterior, num movimento circular, de modo que se pode perguntar onde está o progresso. São possíveis reformas pontuais que no fim conduzam a uma estrutura social mais perfeita? Já Naphta acha que após as rebeliões levarem a um estado de união e prosperidade, a rebelião se tornaria crime, afinal os revoltosos no poder se mostram conservadores a temerem novos rebeldes... O seminarista crê que a ideia de progresso rumo a uma sociedade justa é uma vulgarização da crença cristã no mundo sem pecado. Daí o mundo reformado ser possível apenas com a Cidade de Deus, após o fim do pecado mundano. Então haverá uma república universal.

     O iluminista italiano argumenta que ao progresso até a guerra é propícia, pois funcionam como 'civilizadoras', com intercâmbios e desenvolvimento técnico, com o exemplo das Cruzadas, que se estenderam da Europa para a Ásia, a unir reinados e dinastias. Já o seminarista acha que a tendência do 'instinto natural' é o nacionalismo, o fortalecimento dos Estados diferentes, e que as Cruzadas serviram para mostrar as diferenças entre os povos, que somente podem se unir sob a essência espiritual, com o 'cosmopolitismo' da igreja cristã. Mas Settembrini prefere o direito, o estado de direito, que a dinastia clerical, e sua 'presunção hierárquica', pois o direito se baseia numa razão universal, acima dos interesses de cada Estado nacional, rumo a um humanismo de base burguesa, isto é, liberal. Mas o Sr. Naphta acha que o direito dos povos não passa de outra banalização via Rousseau - aquele do Contrato Social - do jus divinum, a lei divina. No mais, a moral burguesa não é suficiente, com seus controles de custos, vide o aumento da natalidade, a necessidade de educação, o crescente desemprego. Assim, um conflito generalizado até seria de grande auxílio...

     Diante de tal debate de ideias, o militar Joachim acha que não importam as opiniões, mas a decência de um homem, sua integridade e sua dignidade. O mais importante não ter opinião, mas cumprir com seu dever. Pensamento de soldado, que levará multidões à carnificina na Grande Guerra, uma década depois. Pois é de se perguntar, o que é ser decente? o que é dever? quem - que grupo social - determina o que é direito e o que é dever? Deve-se obedecer sem questionar?

     As meditações de Hans Castorp são mais profundas, em sua adaptação à estadia em Berghof, quando se depara com questionamentos sequer imaginados na vida apressada da planície, onde os jogos das finanças e do poder são jogados, para o bem de alguns e o prejuízo de muitos. O isolamento nas alturas, meio ao ar rarefeito, em estado febril, leva aos devaneios e pensamentos mais metafísicos, sobre tudo e todos. O jovem ingressa numa verdadeira formação intelectual - o que leva a considerarmos o quadro todo: o desenvolvimento da pessoa - daí tratar-se de uma espécie de Bildungsroman, ou 'romance de formação' - semelhante ao errático Wilhelm Meister, de J. W. von Goethe. 
 

para A Montanha Mágica enquanto Bildungsroman
em http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000205810


     Em densa inquietação filosófica, Hans vai visitar o seminarista Naphta, que vive num aposento luxuoso numa mísera pensão de aldeia. É um cômodo adornado com seda, uma mobília em estilo barroco, com almofadas de veludo. Num canto, uma grotesca pietà (escultura a representar a Virgem com o Crucificado), que segundo o anfitrião, é do século XIV. O professor do seminário passa a divagar sobre a beleza do corpo, a mortificação, a arte gótica, a glorificação do sofrimento, o apelo ao ascetismo. Com a chegada do professor Settembrini temos o contraponto 'pedagógico', contra o menosprezo do corpo e a penitência. O pedagogo não aceita o menosprezo pela natureza e pelo corpo, pois valoriza o ser natural, a perfeição das formas, a alegria. E Hans percebe a hostilidade da estética gótica contra a natureza.


     Settembrini não hesita em relembrar a 'sinistra figura' da Santa inquisição que caçava hereges e punia com a fogueira em nome da penitência e do amor divino. Mas o devoto Naphta lembra que os revolucionários não tem menos 'entusiasmo exterminador' em perseguir e condenar. E tece acusações contra os renascentistas, os iluministas, os liberais, em suma, o 'espírito burguês'. Pois o seminarista espera uma 'reabilitação da Escolástica', pois a ciência sentirá falta da filosofia e dos dogmas, pois a fé leva ao conhecimento, não o intelecto ou os sentidos. "Creio para que possa conhecer" (credo intelligam) para citar Agostinho [Santo Agostinho, sécs. IV e V]. Ciência sem fé é mito, pois sempre há uma vontade além da razão.

     O pedagogo indaga sobre uma verdade, uma moralidade, uma autoridade sob a qual deve se inclinar o 'espírito humano'. Naphta responde que modernamente a autoridade é o próprio homem, e verdade é o que lhe convém. Que o conhecimento da natureza, em busca de um progresso, levou às ciências naturais, sem critérios filosóficos, o que afasta da 'filosofia platônica', e do 'conhecimento de Deus'. E ele apresenta dois sistemas, o primeiro que é escolástico, dualista, transcendental, com corpo e alma, natureza e divindade; e o segundo, que é cientificista , monista, sem alma, sem divindade, apenas extremos de coletivismo ou de individualismo.

     O italiano não aprecia os extremos, acha que o ideal democrático é justamente corrigir com a importância do indivíduo o 'absolutismo' que é do antigo regime [ancien regime], que foi combatido pelos renascentistas e iluministas, arautos da personalidade, dos direitos do homem, da liberdade de expressão. Mas o seminarista acha que tal pedagogia dos racionalistas é retórica, é promessa de libertação, mas as novas gerações querem autoridade, não liberdade, querem ordem não revoltas. A verdadeira pedagogia é aquela que ensina a autoridade, a disciplina, a abnegação, o sacrifício, em suma, a obediência. [Neste ponto, o devoto é bem autoritário, basicamente militarista e hierárquico, o que muito o aproxima dos regimes fascistas, que contavam com apoio de eminentes figuras do clero.]

     O pedagogo e o seminarista concordam num ponto quanto ao passado, onde numa espécie de estado primitivo não havia domínio, nem lei nem castigo, sem propriedade. Então surgiu o senhor e o servo, aquele que possui os bens, e aquele que trabalha para quem possui. Então se estabeleceu uma hierarquia, onde um manda e o outro obedece. isto dentro de um povo. Então o povo cresce, precisa de mais terras, e faz a guerra, e vencendo outro povo, consegue escravos. Naphta defende que o Estado surgiu como um contrato social, contra a injustiça, e Settembrini lembra da obra de Rousseau [Do Contrato Social, 1762, na França] O devoto entende que o Estado pode sofrer resistência e ser derrubado por revoltas, pois o Estado é coisa não-divina, deriva da política dos povos, de caráter imperfeito e circunstancial, enquanto a Igreja [i.e. o poder do Vaticano] é de origem divina, estando acima dos estados seculares.

     Para Naphta a democracia burguesa se baseia nos estados e no individualismo liberal, onde o dinheiro - via impostos e finanças - mantém as realezas, cada uma com interesses próprios, com poderes de guerra e paz, enquanto o poder papal seria um domínio acima, além dos interesses nacionais, sem proteger esta ou aquela propriedade, ou dinastia. Nada de se submeter aos interesses de comércio ou finanças, de exploração ou domínio. Somente com o poder papal virá o Reino de ascetismo e hierarquia. Não importa o trabalho, mas o serviço de Deus, com a produção apenas para as necessidades não para um excesso, um comercialismo, como é a 'produção em massa'.

     O que Naphta deseja é uma espécie de 'comunismo devoto', enquanto o comunismo ou socialismo científico, de Karl Marx, pretende a igualdade e o fim de classes sem a intervenção da religião. O ideal de comunismo do professor cristão é aquele da fraternidade, da justiça, da redenção, a 'Cidade de Deus', contra as contradições e depravações burguesas que criam o capitalismo-imperialismo. [As críticas de Naphta são as mesmas de Marx, com a diferença essencial de incluir a religião instituída, como algo sem pecado, além do demasiado humano. O que lembra muito os ideais da chamada Teologia da Libertação, muito presente na América Latina, que prega a igualdade e a fraternidade, contra as explorações e desigualdades do sistema capitalista.]

     Outros sistemas são contrapostos pela mente dualista de Naphta, com o individualismo de um lado contra o socialismo [da 'ditadura do proletariado' ] de outro. A conciliação é 'comunismo cristão' com o indivíduo enquanto 'alma individual' num sistema de justiça social, onde os bens sejam comuns, para todos, sem coerção. Ao pedagogo não agradam tais 'totalitarismos', mas defende a liberdade mais do que direito de comprar e vender, mais do que comércio e competição, e defende a dignidade da pessoa como direito de não-servidão e de autodesenvolvimento. Nada disso é possível sobre qualquer variação do ancien regime, vigente no período medieval. Mas Naphta argumenta que a liberdade a qual o italiano se refere está ligada a um panorama econômico de comércio e especulação, onde sobra o lucro para alguns e a exploração para muitos outros. Mas Settembrini acusa o cristão de ser um ambíguo reacionário [isto é, reação contra o liberalismo], e perde a paciência. Em seguida, vai-se embora.

     Interessante mesmo a ambiguidade dos professores. O italiano defende a prosperidade e o progresso, mas é pobre, mora num sotão [mansarda ou água-furtada], a lembrar aqueles de Raskolnikov [em Crime e Castigo, de Dostoiévski] e o do músico amigo de Oskar [em O Tambor, de G. Grass], em contraste com os belos aposentos de Naphta, a defender a divisão igualitária dos bens. Um prega austeridade e vive no luxo, outro fala de livre comércio e mora num cômodo simples, isolado, sem conforto. Mas não esperemos coerências das pessoas, muito menos de personagens de romances...

     Logo logo o pedagogo italiano vem advertir os primos sobre as ambiguidades do jesuíta, muito inteligente, muito culto, muito erudito, dado a voos retóricos, assim como o próprio professor, e por isso encontrou um 'adversário de qualidade', e que no duelo de ideias as convicções se tornam sólidas. Hans logo comenta o contraste entre o que Naphta prega - o comunismo, a igualdade - e o luxo de seu quarto, cheio de seda. "O Sr. Naphta é tão pouco capitalista quanto eu", comenta o italiano. Pois a Ordem religiosa o auxilia, mesmo ele não sendo padre, só tendo feito os primeiros votos, uma vez que seus estudos teológicos foram interrompidos pela doença com a qual padecem ali. Tantas carreiras frustradas pelas vicissitudes do corpo.

     Hans acha que a doença seria a causa da originalidade de Naphta, o fato de não ser ainda um padre, sem ortodoxias [lembrar que a Teologia da Libertação não é ortodoxa, pelo contrário, até rejeitada por altas hierarquias do clero...], o que faria do jesuíta outro 'filho enfermiço da vida', assim como o próprio Hans, com sua 'pequena mancha úmida' no pulmão, a mantê-lo preso na 'montanha mágica'. Settembrini rejeita as ideias mórbidas. E os primos correm para se abrigarem em Berghof. 
 




     Assim se passa um ano na 'montanha mágica'. Joachim ainda mais soturno e nada sociável. E seu primo Hans teme pela vida do militar, que sabe ser um homem de ação. Sucedem-se novos exames, novos diagnósticos. E Joachim comunica sua intenção de voltar ao regimento, na planície. O Dr. Behrens insiste em que o jovem militar não está curado. O que não é o caso de Hans, que recebe a permissão para ir embora, mas ele não fica satisfeito, pois não se julga curado. Parece que ele se acomodou mesmo a rotina e ao modo de vida ali nas alturas. Será que ele aderiu ao quietismo? Prefere nada fazer, e ficar só meditando sobre a vida e o tempo? Mas é justamente estas divagações - e os debates - que movem o extenso romance.

     Lá em Berghof, Hans pode fazer novos contatos sociais, após a partido de Joachim. Logo ele recebe a visita do tio James Tienappel, o cônsul, e passa a apresentar o sanatório, aos modos de um guia turístico. É o que mostra o quanto Hans está 'aclimatado' à cultura da 'montanha mágica'. O jovem não fala sobre a família, ou a profissão, ou a sociedade, mas sobre o tempo, o céu, o clima, a fisiologia, e as doenças... James mostra súbita hilaridade, e passa a assuntos sensuais; ele mostra-se um tanto condescendente, sem defender qualquer opinião, numa tolerância digna de mentalidade aberta, fruto de fina educação.

     O cônsul não consegue tão facilmente a entrevista com o Dr. Behrens e vai se deixando enredar pela 'clima' - natural e social - de Berghof. O tio se interessa pela companhia de certa dama, e por assuntos de fisiologia e medicina. Mas na primeira oportunidade, ele vai embora, desce para a planície. Tal desistência, ou fuga, se mostra como uma renúncia da família a recuperar Hans, que devia deixar o sanatório. Assim o romance pode continuar, pois a decisão de Hans Castorp é permanecer no mundo mágico de ideias e divagações no alto da montanha. Novos debates - e novas personagens - esperam pelos leitores.



continua ...




mai / jun 16


by Leonardo de Magalhaens





mais info em

http://www.e-biografias.net/thomas_mann/

http://www.jornalopcao.com.br/colunas/imprensa/sergio-buarque-de-holanda-entrevista-thomas-mann-e-descobre-origem-brasileira-da-mae-do-autor-de-a-montanha-magica


https://felipepimenta.com/2013/10/02/resenha-de-a-montanha-magica-de-thomas-mann/

https://espectral.wordpress.com/2011/01/12/leituras-de-2011-thomas-mann-a-montanha-magica-1924/


http://antoniocicero.blogspot.com.br/2008/04/apresentao-de-montanha-mgica-de-thomas.html

http://www.ocampones.com/?p=6346

http://www.pmannia.com/2011/04/zauberberg-woodcuts-to-thomas-manns.html




original Der Zauberberg em alemão

http://pdbooks.ca/books/deutsch/authors/thomas-mann/der-zauberberg/vorsatz.html






Referências


MANN, Thomas. A Montanha Mágica. [Der Zauberberg] Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. (Coleção 40 anos, 40 livros)



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