sobre
A Montanha Mágica [Der Zauberberg] 1924
do
escritor alemão Thomas Mann [1875-1955]
Um
duelo de ideias e ideologias nas alturas
parte 2
A partir do capítulo V, Hans
Castorp encara sua nova condição de paciente do sanatório. Não
pode ir-se, voltar a planície, como desejava na situação de
visitante do primo. Agora Hans precisa acostumar-se com seu corpo,
suas tosses, dia a dia, em repouso e atividade, em medicação e vida
social. Logo, Hans recebe a visita do Sr. Settembrini, o professor
italiano em busca de um discípulo. Sentindo-se distante da planície,
sua terra, família, estudos e emprego, Hans é tratado como um
companheiro, mesmo que de infortúnio, pelo professor. O italiano
considera a estado de prostração do jovem por questões de
desambientação, que se vê separado em outro mundo. Para Hans o
mundo lá da planície parece até mesmo cruel, é preciso ter 'casca
grossa' para sobreviver no mundo de pressa e competição, onde
mestres e pupilos, gerentes e empregados sofrem sob a ditadura do
relógio. Lá na 'montanha mágica', o jovem terá tempo de sobra.
No mais, o professor insiste para que
Hans não se deixe tomar por um estado de morbidez, de apatia
religiosa diante da enfermidade e da morte, pois não é preciso
renovação, não resignação. Hans não se pode prostrar com a
rotina e a monotonia. è conveniente, pois o Dr. Behrens libera o
jovem do período acamado, e assim é novamente envolto pela vida
social do sanatório, na sala de refeições e nos saraus promovidos
pelos pacientes. Daí mais inconfidências sobre a madame Chauchat, a
russa indiscreta. Ao se apresentarem para o exame de radiografia,
Hans e seu primo Joachim encontram justamente Clawdia na sala de
espera. Joachim lê uma revista, Hans empalidece. Clawdia mantém uma
curta conversa de conveniência, fria e formal. Hans mantém-se mudo,
a observar, ciente da doença da bela russa. Em seguida, os primos se
submetem ao exame, e Hans se surpreende com as visões do interior do
corpo, com os dois sacos pulmonares, a bomba pulsante do coração,
as costelas, a coluna vertebral... isso quando da radioscopia de seu
primo. Depois é a vez dele, que na radioscopia pode ver a própria
mão, aquela esquelética estrutura fragilizada, descarnada, num
vislumbre do túmulo.
Para Hans o tempo passa, alheio ao
mundo da planície, de onde tem remotas notícias. Aquelas sete
semanas não foram mais que sete dias, ou aparentaram mais tempo do
que em realidade se passara? De qualquer maneira, nada sabe sobre a
duração exata. O tempo cronológico somente é interpretado pelo
psicológico. Settembrini alerta o jovem sobre o estado de morbidez,
que pode converter a ironia em sarcasmo, algo desprezível. A ironia
é um instrumento retórico, útil ao intelecto, que não se rebaixa
ao mesquinhez sarcástica. É que o receptivo ouvinte Castorp não é
mais tão simpático, ousa ser crítico, com a mania crítica do
pedagogo, para quem falta rotular a ironia de suspeita, assim como
fizera com a música. E será que a doença de Settembrini não
provoca um desespero mudo? Onde a vida de educação e progresso num
retiro de enfermos?
Após avisar em carta aos tios sobre
o tratamento, que promete ser longo, Hans se prepara para o inverno,
a desfrutar o clima ameno e de veraneio, onde prossegue a vida social
dos pacientes. Daí os gestos, ações e afetações de Hans para
chamar a atenção de Clawdia Chauchat. Pois, o narrador é
indiscreto, "nosso herói estava apaixonado". Agora, ele se
esforça para fazer parte da sociedade do sanatório, para ser parte
do 'nós aqui em cima', e não ser desprezado como um ingênuo rapaz
sadio da planície. (Ser doente, profundamente doente, é status
entre enfermos.) Hans troca saudações com a russa Clawdia, na
subida para o bosque, e percebe que ela já o notou. Os caprichos do
mercúrio marcam a temperatura do jovem em 38 graus.
A questão dos relacionamentos
amorosos na sociedade da 'montanha mágica', onde a paixão de Hans
desperta a atenção dos enfermos convivas, pois o jovem expõe seu
afeto na tentativa de ser reconhecido e incentivado. Enquanto isso, a
figura do pedagogo é insistente. O Sr. Settembrini se assegura da
aclimatação do jovem, e divaga sobre o valor do tempo e seu uso
para o progresso da civilização, pois o humanista volta ao tema
'progresso da humanidade', seu preferido. O italiano sempre reafirma
seu papel de humanista, nunca dado a devoções, sem 'tendências
ascéticas'. Não aceita sentimentalismos, tem caráter clássico,
classicista, a conclamar a mente sã em corpo são. A mente, o
espírito, não vale mais que o corpo, pois ambos são dispostos à
beleza e à liberdade. Devemos abraçar a alegria e a razão, sem
obscurantismo dogmáticos.
Nas obras iluministas, p.ex.
Voltaire, revoltado contra as forças obscuras, da Natureza ou do
Criador, o pedagogo vê a hostilidade da razão contra o destino e as
superstições, que não aceita se submeter aos poderes que não
controla. Uma racionalidade contra dogmatismo e contra a hipocrisia,
contra a ideia de pecado e a culpa, contra o desprezo ao corpo. Não
exaltar o corpo na sensualidade nem desprezar com medo de
pecaminosidades. Mas o corpo doentio, o deformado, o que asfixia a
mente, gera pensamentos mórbidos, se perde na crueldade e na
decomposição.
Os primos seguem em repouso. Um
elogio ao charuto, vício que não é facilmente abandonado. Em
resposta ao interesse de Hans Castorp, o Dr. Behrens convida os
primos para visitarem seu ateliê. Hans descobre lá o quadro que
retrata a Mme. Chauchat. Divagações sobre a arte da retratação,
como captar o humano e representá-lo na pintura. Uma recorrência: a
arte de retratar a plasticidade da pele, parte marcante da fisiologia
do corpo humano.
Então eis a chegada do inverno
alpino, um clima hostil e belo. O tempo devorador e devorado. Imagens
do poente após a nevada. Lá está Hans entre a inércia e a
excitação, sob o encanto da noite invernal, enquanto ele se entrega
às leituras e pesquisas sobre fisiologia e medicina. Uma coisa é
saber o que é a vida, seus processos, sua reprodução, outra a
questão da consciência. Como se explicar os fenômenos conscientes
por critérios de reações aos estímulos, ao modo behaviorista?
Como os pensamentos brotam ao longo do emaranhado cerebral de células
nervosas? Como a matéria se organizou, se replicou, sofreu mutações,
até o ponto de voltar-se sobre si mesma na forma de perguntas sobre
a origem?
Maior mistério que a vida é haver
quem se pergunte sobre a vida. Será a consciência mera inquietação
sem conclusões? Será uma espécie de obsessão ou doença? (Para a
consciência enquanto doença podemos ler em Schopenhauer,
Dostoiévski e Nietzsche.) Que processo leva ao esforço aflitivo de
perguntar-se? Não bastaria simplesmente viver e contemplar? Por que
a necessidade de criar música e poesia? Por que a busca pela beleza
e pela harmonia? Será a consciência uma enfermidade da matéria?
Que tipo de 'geração espontânea' gerou o pensamento? Como a
energia cósmica gerou a matéria inorgânica que gerou a matéria
orgânica que gerou outra imaterialidade, o pensamento e a cultura?
Profundas inquietações metafísicas para um jovem insone.
Para quebrar a monotonia temos as
festas de fim de ano no sanatório Berghof, onde a morte é ocultada
por medidas de sanidade e bom-tom. A morte é assunto que sequer é
comentado, daí ser um 'tabu' entre os comensais e convivas. Será
por hipocrisia e egoísmo? ou por defesa psíquica? Devemos ocultar
os óbitos para manter as esperanças de cura e restabelecimento?
Quais as atitudes corretas diante da morte? O horror, a solenidade,
ou indiferença? Hans pensa que temos de ter solenidade, como a
cumprir um rito. Por que apenas um 'espírito livre' deve atuar? Não
há lugar para a devoção? O jovem se inclina mais para a
solenidade, para o luto, para a piedade cristã, até gótica, de
pesar diante da finitude.
Castorp resolve não aderir ao tom de
hipocrisia que dissimula a morte e afasta os agonizantes. Ele prefere
manter contato com as pessoas em estado grave,os pacientes terminais.
Ele percebe incidentes que maculam a solenidade do hospital, em
afrontas a 'dignidade' de um espaço designado para o repouso e a
cura, onde pessoas passam por sofrimento. Hans inicia seu plano de
dar atenção aos enfermos graves. Para distrair uma das pacientes,
os primos passam a acompanhá-la nos esportes de inverno, seja
patinação ou corrida de trenós. Há também sessões de cinemas,
uma arte nova, com fotografias em movimento, onde se projetava a
espetacularização dos dramas humanos. Nas imagens da tela, o espaço
se aniquila e o tempo recua. O que era passado é transformado num
aqui e agora, em imagens gravadas, que novamente dançavam, cantavam,
sofriam. Também acompanham a paciente a um café, dentro do cassino
da aldeia. E seguem em outros passeios, até mesmo ao cemitério,
local de pensamentos fúnebres. Daí as danças macabras, as
alegorias medonhas do medieval.
Logo as festividades do carnaval, que
tingem de tons alegres a atmosfera solene e monótona do sanatório.
Será uma esperada Noite de Walpurgis [Walpurgis Nacht] que
vem encantar a todos? Hans tenta quebrar os formalismos com o Sr.
Settembrini, que parece ser o mais reservado. Nas brincadeiras da
noite, Hans se vê a pedir um lápis a Clawdia, tal como pedira ao
seu colega Hippe. É o início de um longo diálogo, onde Hans
prefere se expressar em francês. As inquietações do jovem, sobre a
situação da Europa, entre liberdade e ordem. Menção ao retrato de
Clawdia, visto no ateliê do doutor. A madame não deseja dançar,
então ambos ficam apenas a observar os pares no salão.
Hans destila uma fala poética,
onírica, pois falar em francẽs "é como conversar num sonho".
Clawdia revela que Hans se demorou a abordá-la, pois agora é tarde,
uma vez que ela deve viajar no dia seguinte. Ele não oculta a
perplexidade, e conduz a conversa para um nível mais íntimo, como
uma forma de compensar a frustração. Hans confessa já não temer
tanto a morte, após meio ano a conviver naquele ambiente de doença
e agonia, agora ele assume uma atitude de resignação, sem
sobressaltos. O que o inquieta é a vida dela, e sua curiosidade leva
às perguntas indiscretas... E como num sonho, o jovem vai a tecer
divagações e delírios sobre amor, poesia e medicina, como uma
confissão final, de joelhos, diante de Clawdia.
No capítulo seguinte, VI, estamos em
abril, cerca de seis semanas depois, com a mente de Hans Castorp
povoada por considerações, reflexões, divagações sobre o tempo,
sobre o eterno e o finito, sobre as transformações no tempo e no
espaço, ainda na questão Was ist die Zeit?, enquanto isso, o
primo Joachim começa a se inconformar com sua estadia obrigatória
devido a sua doença crônica. Afinal, ele só pensa em sua carreira
militar interrompida. Até ali Joachim manteve a disciplina e a
postura recatada, ao estilo militar. Mas quando ele vê seus planos
se frustrarem... Enquanto Hans vai se adaptando com a ausência de
Clawdia Chauchat, sabendo que ela em breve retornará (será a quarta
temporada dela...) Ele deve se preocupar mais é com as subidas do
termômetro, em seu tratamento com o Dr. Behrens, seu médico e
interlocutor, entre lembranças e charutos.
Claro, temos também os diálogos
socráticos com o professor Sr. Settembrini, que anuncia sua mudança
para a aldeia. É um domingo de Páscoa, uma primavera com tons
invernais, a parecer mais um outono. Com o tempo, também a amizade
entre o Dr. Krokowski e o atento Hans, interessado nas 'dissecações
da alma'. Depois de fisiologia, psicologia, o novo interesse de Hans
por assuntos da botânica. Assim as manias de Castorp, com as plantas
e as estações do ano. Na aldeia, na rua principal, os primos
encontram o Sr. Settembrini e um desconhecido. É um certo Sr.
Naphta, um vizinho do italiano lá na pensão.
Um intelectual, o Sr. Leo Naphta, de
aparência pouco atraente, porém bem-trajado, apresentado como um
Príncipe da Escolástica [Princeps Scholasticorum],
ex-seminarista, professor de línguas clássicas, outro egresso do
sanatório. Então os primos passam a acompanhar os debates
intelectuais-metafísicos-teológicos dos dois professores. São
longos diálogos que exigem certa erudição, certo conhecimento de
filosofia clássica e medieval. Settembrini, o iluminista, é mais
irônico, dionisíaco, ainda que racionalista. Orgulha-se da natureza
e do corpo, a evitar dualismos, é adverso as categorizações, acha
que é válido o que guia até o progresso e a liberdade de espírito
[no caso, de expressão].
Naphta é de humor mais apolíneo, de
tons solenes, que não é favorável a natureza, antes prefere a
espiritualidade. Não é liberdade que importa, mas a elevação do
espírito, rumo ao Supremo, no caso, o Transcendental, numa linhagem
mais platônica, ou de Aquino. É o pensamento clássico, cheio de
hierarquias, onde o individual se submete ao cosmos - Ideia Suprema.
É importante a perfeição, desde a vida cotidiana, mundana, até a
vida contemplativa, devota.
Para Settembrini não é a Devoção
o mais importante, antes o Trabalho, o esforço, o progresso, e não
a contemplação. Ao homem ativo, do mundo ocidental, cabem a razão e
a ação, e não a meditação de monges. No que Hans parece
discordar, mais inclinado ao estilo Naphta de ser, mais isolado,
meditativo, averso aos festins e hilaridades. A meditação não visa
o progresso, mas a devoção, o exercício ascético. Ao que
Settembrini prefere a 'benção do trabalho', no que concorda com o
positivismo burguês, que visa afastar os entraves medievais do
pietismo, que seria uma 'preguiça'. E Hans, entre os doutos, volta a
preferir o ascetismo de Naphta, numa disciplina plena, no que se
aproxima da vida militar, de disciplina e abdicação de si mesmo
pela coletividade, a pátria. Mas o italiano acha que vida militar é
meramente um formalismo.
Hans ouve atentamente os argumentos
de lado a lado, enquanto Settembrini censura a indiferença, o
'analfabetismo' político, e defende o 'aperfeiçoamento social', o
jesuíta Naphta crê que a política é uma oportunidade para que
'uns e outros' se comprometam moralmente, e é fatalista quanto ao
progresso; o que muito difere do italiano, otimista, positivista, a
crer em medidas racionais contra as ameaças de guerra, com a justiça
entre as nações, mesmo que não condene os conflitos, resultados de
um 'princípio de movimento', gerado por vontade de mudança,
rebelião, rumo às reformas, dentro e fora das nações. Afinal,
quietismo, paz constante, não leva ao progresso, a uma
auto-superação.
O atento Hans acha que o conflito é
inevitável, mas que tudo volta ao anterior, num movimento circular,
de modo que se pode perguntar onde está o progresso. São possíveis
reformas pontuais que no fim conduzam a uma estrutura social mais
perfeita? Já Naphta acha que após as rebeliões levarem a um estado
de união e prosperidade, a rebelião se tornaria crime, afinal os
revoltosos no poder se mostram conservadores a temerem novos
rebeldes... O seminarista crê que a ideia de progresso rumo a uma
sociedade justa é uma vulgarização da crença cristã no mundo sem
pecado. Daí o mundo reformado ser possível apenas com a Cidade de
Deus, após o fim do pecado mundano. Então haverá uma república
universal.
O iluminista italiano argumenta que
ao progresso até a guerra é propícia, pois funcionam como
'civilizadoras', com intercâmbios e desenvolvimento técnico, com o
exemplo das Cruzadas, que se estenderam da Europa para a Ásia, a
unir reinados e dinastias. Já o seminarista acha que a tendência do
'instinto natural' é o nacionalismo, o fortalecimento dos Estados
diferentes, e que as Cruzadas serviram para mostrar as diferenças
entre os povos, que somente podem se unir sob a essência espiritual,
com o 'cosmopolitismo' da igreja cristã. Mas Settembrini prefere o
direito, o estado de direito, que a dinastia clerical, e sua
'presunção hierárquica', pois o direito se baseia numa razão
universal, acima dos interesses de cada Estado nacional, rumo a um
humanismo de base burguesa, isto é, liberal. Mas o Sr. Naphta acha
que o direito dos povos não passa de outra banalização via
Rousseau - aquele do Contrato Social - do jus divinum,
a lei divina. No mais, a moral burguesa não é suficiente, com seus
controles de custos, vide o aumento da natalidade, a necessidade de
educação, o crescente desemprego. Assim, um conflito generalizado
até seria de grande auxílio...
Diante de tal debate de ideias, o
militar Joachim acha que não importam as opiniões, mas a decência
de um homem, sua integridade e sua dignidade. O mais importante não
ter opinião, mas cumprir com seu dever. Pensamento de soldado, que
levará multidões à carnificina na Grande Guerra, uma década
depois. Pois é de se perguntar, o que é ser decente? o que é
dever? quem - que grupo social - determina o que é direito e o que é
dever? Deve-se obedecer sem questionar?
As meditações de Hans Castorp são
mais profundas, em sua adaptação à estadia em Berghof, quando se
depara com questionamentos sequer imaginados na vida apressada da
planície, onde os jogos das finanças e do poder são jogados, para
o bem de alguns e o prejuízo de muitos. O isolamento nas alturas,
meio ao ar rarefeito, em estado febril, leva aos devaneios e
pensamentos mais metafísicos, sobre tudo e todos. O jovem ingressa
numa verdadeira formação intelectual - o que leva a considerarmos o
quadro todo: o desenvolvimento da pessoa - daí tratar-se de uma
espécie de Bildungsroman, ou 'romance de formação' -
semelhante ao errático Wilhelm Meister, de J. W. von Goethe.
para A Montanha Mágica enquanto
Bildungsroman
em
http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000205810
Em densa inquietação filosófica,
Hans vai visitar o seminarista Naphta, que vive num aposento luxuoso
numa mísera pensão de aldeia. É um cômodo adornado com seda, uma
mobília em estilo barroco, com almofadas de veludo. Num canto, uma
grotesca pietà (escultura a representar a Virgem com o
Crucificado), que segundo o anfitrião, é do século XIV. O
professor do seminário passa a divagar sobre a beleza do corpo, a
mortificação, a arte gótica, a glorificação do sofrimento, o
apelo ao ascetismo. Com a chegada do professor Settembrini temos o
contraponto 'pedagógico', contra o menosprezo do corpo e a
penitência. O pedagogo não aceita o menosprezo pela natureza e pelo
corpo, pois valoriza o ser natural, a perfeição das formas, a
alegria. E Hans percebe a hostilidade da estética gótica contra a
natureza.
Settembrini não hesita em relembrar
a 'sinistra figura' da Santa inquisição que caçava hereges e punia
com a fogueira em nome da penitência e do amor divino. Mas o devoto
Naphta lembra que os revolucionários não tem menos 'entusiasmo
exterminador' em perseguir e condenar. E tece acusações contra os
renascentistas, os iluministas, os liberais, em suma, o 'espírito
burguês'. Pois o seminarista espera uma 'reabilitação da
Escolástica', pois a ciência sentirá falta da filosofia e dos
dogmas, pois a fé leva ao conhecimento, não o intelecto ou os
sentidos. "Creio para que possa conhecer" (credo
intelligam) para citar Agostinho [Santo Agostinho, sécs. IV e
V]. Ciência sem fé é mito, pois sempre há uma vontade além da
razão.
O pedagogo indaga sobre uma verdade,
uma moralidade, uma autoridade sob a qual deve se inclinar o
'espírito humano'. Naphta responde que modernamente a autoridade é
o próprio homem, e verdade é o que lhe convém. Que o conhecimento
da natureza, em busca de um progresso, levou às ciências naturais,
sem critérios filosóficos, o que afasta da 'filosofia platônica',
e do 'conhecimento de Deus'. E ele apresenta dois sistemas, o
primeiro que é escolástico, dualista, transcendental, com corpo e
alma, natureza e divindade; e o segundo, que é cientificista ,
monista, sem alma, sem divindade, apenas extremos de coletivismo ou
de individualismo.
O italiano não aprecia os extremos,
acha que o ideal democrático é justamente corrigir com a
importância do indivíduo o 'absolutismo' que é do antigo regime
[ancien regime], que foi combatido pelos renascentistas e
iluministas, arautos da personalidade, dos direitos do homem, da
liberdade de expressão. Mas o seminarista acha que tal pedagogia
dos racionalistas é retórica, é promessa de libertação, mas as
novas gerações querem autoridade, não liberdade, querem ordem não
revoltas. A verdadeira pedagogia é aquela que ensina a autoridade, a
disciplina, a abnegação, o sacrifício, em suma, a obediência.
[Neste ponto, o devoto é bem autoritário, basicamente militarista e
hierárquico, o que muito o aproxima dos regimes fascistas, que
contavam com apoio de eminentes figuras do clero.]
O pedagogo e o seminarista concordam
num ponto quanto ao passado, onde numa espécie de estado primitivo
não havia domínio, nem lei nem castigo, sem propriedade. Então
surgiu o senhor e o servo, aquele que possui os bens, e aquele que
trabalha para quem possui. Então se estabeleceu uma hierarquia,
onde um manda e o outro obedece. isto dentro de um povo. Então o
povo cresce, precisa de mais terras, e faz a guerra, e vencendo outro
povo, consegue escravos. Naphta defende que o Estado surgiu como um
contrato social, contra a injustiça, e Settembrini lembra da obra de
Rousseau [Do Contrato Social, 1762, na França] O devoto
entende que o Estado pode sofrer resistência e ser derrubado por
revoltas, pois o Estado é coisa não-divina, deriva da política dos
povos, de caráter imperfeito e circunstancial, enquanto a Igreja
[i.e. o poder do Vaticano] é de origem divina, estando acima dos
estados seculares.
Para Naphta a democracia burguesa se
baseia nos estados e no individualismo liberal, onde o dinheiro - via
impostos e finanças - mantém as realezas, cada uma com interesses
próprios, com poderes de guerra e paz, enquanto o poder papal seria
um domínio acima, além dos interesses nacionais, sem proteger esta
ou aquela propriedade, ou dinastia. Nada de se submeter aos
interesses de comércio ou finanças, de exploração ou domínio.
Somente com o poder papal virá o Reino de ascetismo e hierarquia.
Não importa o trabalho, mas o serviço de Deus, com a produção
apenas para as necessidades não para um excesso, um comercialismo,
como é a 'produção em massa'.
O que Naphta deseja é uma espécie
de 'comunismo devoto', enquanto o comunismo ou socialismo científico,
de Karl Marx, pretende a igualdade e o fim de classes sem a
intervenção da religião. O ideal de comunismo do professor cristão
é aquele da fraternidade, da justiça, da redenção, a 'Cidade de
Deus', contra as contradições e depravações burguesas que criam o
capitalismo-imperialismo. [As críticas de Naphta são as mesmas de
Marx, com a diferença essencial de incluir a religião instituída,
como algo sem pecado, além do demasiado humano. O que lembra muito os
ideais da chamada Teologia da Libertação, muito presente na
América Latina, que prega a igualdade e a fraternidade, contra as
explorações e desigualdades do sistema capitalista.]
Outros sistemas são contrapostos
pela mente dualista de Naphta, com o individualismo de um lado contra
o socialismo [da 'ditadura do proletariado' ] de outro. A conciliação
é 'comunismo cristão' com o indivíduo enquanto 'alma individual'
num sistema de justiça social, onde os bens sejam comuns, para
todos, sem coerção. Ao pedagogo não agradam tais 'totalitarismos',
mas defende a liberdade mais do que direito de comprar e vender, mais
do que comércio e competição, e defende a dignidade da pessoa como
direito de não-servidão e de autodesenvolvimento. Nada disso é
possível sobre qualquer variação do ancien regime, vigente
no período medieval. Mas Naphta argumenta que a liberdade a
qual o italiano se refere está ligada a um panorama econômico de
comércio e especulação, onde sobra o lucro para alguns e a
exploração para muitos outros. Mas Settembrini acusa o cristão de
ser um ambíguo reacionário [isto é, reação contra o
liberalismo], e perde a paciência. Em seguida, vai-se embora.
Interessante mesmo a ambiguidade dos
professores. O italiano defende a prosperidade e o progresso, mas é
pobre, mora num sotão [mansarda ou água-furtada], a lembrar aqueles
de Raskolnikov [em Crime e Castigo, de Dostoiévski] e o do
músico amigo de Oskar [em O Tambor, de G. Grass], em
contraste com os belos aposentos de Naphta, a defender a divisão
igualitária dos bens. Um prega austeridade e vive no luxo, outro
fala de livre comércio e mora num cômodo simples, isolado, sem
conforto. Mas não esperemos coerências das pessoas, muito menos de
personagens de romances...
Logo logo o pedagogo italiano vem
advertir os primos sobre as ambiguidades do jesuíta, muito
inteligente, muito culto, muito erudito, dado a voos retóricos,
assim como o próprio professor, e por isso encontrou um 'adversário
de qualidade', e que no duelo de ideias as convicções se tornam
sólidas. Hans logo comenta o contraste entre o que Naphta prega - o
comunismo, a igualdade - e o luxo de seu quarto, cheio de seda. "O
Sr. Naphta é tão pouco capitalista quanto eu", comenta o
italiano. Pois a Ordem religiosa o auxilia, mesmo ele não sendo
padre, só tendo feito os primeiros votos, uma vez que seus estudos
teológicos foram interrompidos pela doença com a qual padecem ali.
Tantas carreiras frustradas pelas vicissitudes do corpo.
Hans acha que a doença seria a causa
da originalidade de Naphta, o fato de não ser ainda um padre, sem
ortodoxias [lembrar que a Teologia da Libertação não é ortodoxa,
pelo contrário, até rejeitada por altas hierarquias do clero...], o
que faria do jesuíta outro 'filho enfermiço da vida', assim como o
próprio Hans, com sua 'pequena mancha úmida' no pulmão, a mantê-lo
preso na 'montanha mágica'. Settembrini rejeita as ideias mórbidas.
E os primos correm para se abrigarem em Berghof.
Assim se passa um ano na 'montanha
mágica'. Joachim ainda mais soturno e nada sociável. E seu primo
Hans teme pela vida do militar, que sabe ser um homem de ação.
Sucedem-se novos exames, novos diagnósticos. E Joachim comunica sua
intenção de voltar ao regimento, na planície. O Dr. Behrens
insiste em que o jovem militar não está curado. O que não é o
caso de Hans, que recebe a permissão para ir embora, mas ele não
fica satisfeito, pois não se julga curado. Parece que ele se
acomodou mesmo a rotina e ao modo de vida ali nas alturas. Será que
ele aderiu ao quietismo? Prefere nada fazer, e ficar só meditando
sobre a vida e o tempo? Mas é justamente estas divagações - e os
debates - que movem o extenso romance.
Lá em Berghof, Hans pode fazer novos
contatos sociais, após a partido de Joachim. Logo ele recebe a
visita do tio James Tienappel, o cônsul, e passa a apresentar o
sanatório, aos modos de um guia turístico. É o que mostra o quanto Hans está 'aclimatado' à cultura da 'montanha mágica'. O jovem não
fala sobre a família, ou a profissão, ou a sociedade, mas sobre o
tempo, o céu, o clima, a fisiologia, e as doenças... James mostra
súbita hilaridade, e passa a assuntos sensuais; ele mostra-se um
tanto condescendente, sem defender qualquer opinião, numa tolerância
digna de mentalidade aberta, fruto de fina educação.
O cônsul não consegue tão
facilmente a entrevista com o Dr. Behrens e vai se deixando enredar
pela 'clima' - natural e social - de Berghof. O tio se interessa pela
companhia de certa dama, e por assuntos de fisiologia e medicina. Mas
na primeira oportunidade, ele vai embora, desce para a planície. Tal
desistência, ou fuga, se mostra como uma renúncia da família a
recuperar Hans, que devia deixar o sanatório. Assim o romance pode
continuar, pois a decisão de Hans Castorp é permanecer no mundo
mágico de ideias e divagações no alto da montanha. Novos debates -
e novas personagens - esperam pelos leitores.
continua ...
mai
/ jun 16
by
Leonardo de Magalhaens
mais
info em
http://www.e-biografias.net/thomas_mann/
http://www.jornalopcao.com.br/colunas/imprensa/sergio-buarque-de-holanda-entrevista-thomas-mann-e-descobre-origem-brasileira-da-mae-do-autor-de-a-montanha-magica
https://felipepimenta.com/2013/10/02/resenha-de-a-montanha-magica-de-thomas-mann/
https://espectral.wordpress.com/2011/01/12/leituras-de-2011-thomas-mann-a-montanha-magica-1924/
http://antoniocicero.blogspot.com.br/2008/04/apresentao-de-montanha-mgica-de-thomas.html
http://www.ocampones.com/?p=6346
http://www.pmannia.com/2011/04/zauberberg-woodcuts-to-thomas-manns.html
original
Der Zauberberg em alemão
http://pdbooks.ca/books/deutsch/authors/thomas-mann/der-zauberberg/vorsatz.html
Referências
MANN,
Thomas. A Montanha Mágica. [Der Zauberberg] Trad.
Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. (Coleção 40
anos, 40 livros)
...
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