sexta-feira, 17 de junho de 2016

sobre A MONTANHA MÁGICA - P2 - Thomas Mann







sobre A Montanha Mágica [Der Zauberberg] 1924
do escritor alemão Thomas Mann [1875-1955]


Um duelo de ideias e ideologias nas alturas




parte 2

     A partir do capítulo V, Hans Castorp encara sua nova condição de paciente do sanatório. Não pode ir-se, voltar a planície, como desejava na situação de visitante do primo. Agora Hans precisa acostumar-se com seu corpo, suas tosses, dia a dia, em repouso e atividade, em medicação e vida social. Logo, Hans recebe a visita do Sr. Settembrini, o professor italiano em busca de um discípulo. Sentindo-se distante da planície, sua terra, família, estudos e emprego, Hans é tratado como um companheiro, mesmo que de infortúnio, pelo professor. O italiano considera a estado de prostração do jovem por questões de desambientação, que se vê separado em outro mundo. Para Hans o mundo lá da planície parece até mesmo cruel, é preciso ter 'casca grossa' para sobreviver no mundo de pressa e competição, onde mestres e pupilos, gerentes e empregados sofrem sob a ditadura do relógio. Lá na 'montanha mágica', o jovem terá tempo de sobra.

     No mais, o professor insiste para que Hans não se deixe tomar por um estado de morbidez, de apatia religiosa diante da enfermidade e da morte, pois não é preciso renovação, não resignação. Hans não se pode prostrar com a rotina e a monotonia. è conveniente, pois o Dr. Behrens libera o jovem do período acamado, e assim é novamente envolto pela vida social do sanatório, na sala de refeições e nos saraus promovidos pelos pacientes. Daí mais inconfidências sobre a madame Chauchat, a russa indiscreta. Ao se apresentarem para o exame de radiografia, Hans e seu primo Joachim encontram justamente Clawdia na sala de espera. Joachim lê uma revista, Hans empalidece. Clawdia mantém uma curta conversa de conveniência, fria e formal. Hans mantém-se mudo, a observar, ciente da doença da bela russa. Em seguida, os primos se submetem ao exame, e Hans se surpreende com as visões do interior do corpo, com os dois sacos pulmonares, a bomba pulsante do coração, as costelas, a coluna vertebral... isso quando da radioscopia de seu primo. Depois é a vez dele, que na radioscopia pode ver a própria mão, aquela esquelética estrutura fragilizada, descarnada, num vislumbre do túmulo.

     Para Hans o tempo passa, alheio ao mundo da planície, de onde tem remotas notícias. Aquelas sete semanas não foram mais que sete dias, ou aparentaram mais tempo do que em realidade se passara? De qualquer maneira, nada sabe sobre a duração exata. O tempo cronológico somente é interpretado pelo psicológico. Settembrini alerta o jovem sobre o estado de morbidez, que pode converter a ironia em sarcasmo, algo desprezível. A ironia é um instrumento retórico, útil ao intelecto, que não se rebaixa ao mesquinhez sarcástica. É que o receptivo ouvinte Castorp não é mais tão simpático, ousa ser crítico, com a mania crítica do pedagogo, para quem falta rotular a ironia de suspeita, assim como fizera com a música. E será que a doença de Settembrini não provoca um desespero mudo? Onde a vida de educação e progresso num retiro de enfermos?

     Após avisar em carta aos tios sobre o tratamento, que promete ser longo, Hans se prepara para o inverno, a desfrutar o clima ameno e de veraneio, onde prossegue a vida social dos pacientes. Daí os gestos, ações e afetações de Hans para chamar a atenção de Clawdia Chauchat. Pois, o narrador é indiscreto, "nosso herói estava apaixonado". Agora, ele se esforça para fazer parte da sociedade do sanatório, para ser parte do 'nós aqui em cima', e não ser desprezado como um ingênuo rapaz sadio da planície. (Ser doente, profundamente doente, é status entre enfermos.) Hans troca saudações com a russa Clawdia, na subida para o bosque, e percebe que ela já o notou. Os caprichos do mercúrio marcam a temperatura do jovem em 38 graus.

     A questão dos relacionamentos amorosos na sociedade da 'montanha mágica', onde a paixão de Hans desperta a atenção dos enfermos convivas, pois o jovem expõe seu afeto na tentativa de ser reconhecido e incentivado. Enquanto isso, a figura do pedagogo é insistente. O Sr. Settembrini se assegura da aclimatação do jovem, e divaga sobre o valor do tempo e seu uso para o progresso da civilização, pois o humanista volta ao tema 'progresso da humanidade', seu preferido. O italiano sempre reafirma seu papel de humanista, nunca dado a devoções, sem 'tendências ascéticas'. Não aceita sentimentalismos, tem caráter clássico, classicista, a conclamar a mente sã em corpo são. A mente, o espírito, não vale mais que o corpo, pois ambos são dispostos à beleza e à liberdade. Devemos abraçar a alegria e a razão, sem obscurantismo dogmáticos.

     Nas obras iluministas, p.ex. Voltaire, revoltado contra as forças obscuras, da Natureza ou do Criador, o pedagogo vê a hostilidade da razão contra o destino e as superstições, que não aceita se submeter aos poderes que não controla. Uma racionalidade contra dogmatismo e contra a hipocrisia, contra a ideia de pecado e a culpa, contra o desprezo ao corpo. Não exaltar o corpo na sensualidade nem desprezar com medo de pecaminosidades. Mas o corpo doentio, o deformado, o que asfixia a mente, gera pensamentos mórbidos, se perde na crueldade e na decomposição.

     Os primos seguem em repouso. Um elogio ao charuto, vício que não é facilmente abandonado. Em resposta ao interesse de Hans Castorp, o Dr. Behrens convida os primos para visitarem seu ateliê. Hans descobre lá o quadro que retrata a Mme. Chauchat. Divagações sobre a arte da retratação, como captar o humano e representá-lo na pintura. Uma recorrência: a arte de retratar a plasticidade da pele, parte marcante da fisiologia do corpo humano.


     Então eis a chegada do inverno alpino, um clima hostil e belo. O tempo devorador e devorado. Imagens do poente após a nevada. Lá está Hans entre a inércia e a excitação, sob o encanto da noite invernal, enquanto ele se entrega às leituras e pesquisas sobre fisiologia e medicina. Uma coisa é saber o que é a vida, seus processos, sua reprodução, outra a questão da consciência. Como se explicar os fenômenos conscientes por critérios de reações aos estímulos, ao modo behaviorista? Como os pensamentos brotam ao longo do emaranhado cerebral de células nervosas? Como a matéria se organizou, se replicou, sofreu mutações, até o ponto de voltar-se sobre si mesma na forma de perguntas sobre a origem?

     Maior mistério que a vida é haver quem se pergunte sobre a vida. Será a consciência mera inquietação sem conclusões? Será uma espécie de obsessão ou doença? (Para a consciência enquanto doença podemos ler em Schopenhauer, Dostoiévski e Nietzsche.) Que processo leva ao esforço aflitivo de perguntar-se? Não bastaria simplesmente viver e contemplar? Por que a necessidade de criar música e poesia? Por que a busca pela beleza e pela harmonia? Será a consciência uma enfermidade da matéria? Que tipo de 'geração espontânea' gerou o pensamento? Como a energia cósmica gerou a matéria inorgânica que gerou a matéria orgânica que gerou outra imaterialidade, o pensamento e a cultura? Profundas inquietações metafísicas para um jovem insone.

     Para quebrar a monotonia temos as festas de fim de ano no sanatório Berghof, onde a morte é ocultada por medidas de sanidade e bom-tom. A morte é assunto que sequer é comentado, daí ser um 'tabu' entre os comensais e convivas. Será por hipocrisia e egoísmo? ou por defesa psíquica? Devemos ocultar os óbitos para manter as esperanças de cura e restabelecimento? Quais as atitudes corretas diante da morte? O horror, a solenidade, ou indiferença? Hans pensa que temos de ter solenidade, como a cumprir um rito. Por que apenas um 'espírito livre' deve atuar? Não há lugar para a devoção? O jovem se inclina mais para a solenidade, para o luto, para a piedade cristã, até gótica, de pesar diante da finitude.

     Castorp resolve não aderir ao tom de hipocrisia que dissimula a morte e afasta os agonizantes. Ele prefere manter contato com as pessoas em estado grave,os pacientes terminais. Ele percebe incidentes que maculam a solenidade do hospital, em afrontas a 'dignidade' de um espaço designado para o repouso e a cura, onde pessoas passam por sofrimento. Hans inicia seu plano de dar atenção aos enfermos graves. Para distrair uma das pacientes, os primos passam a acompanhá-la nos esportes de inverno, seja patinação ou corrida de trenós. Há também sessões de cinemas, uma arte nova, com fotografias em movimento, onde se projetava a espetacularização dos dramas humanos. Nas imagens da tela, o espaço se aniquila e o tempo recua. O que era passado é transformado num aqui e agora, em imagens gravadas, que novamente dançavam, cantavam, sofriam. Também acompanham a paciente a um café, dentro do cassino da aldeia. E seguem em outros passeios, até mesmo ao cemitério, local de pensamentos fúnebres. Daí as danças macabras, as alegorias medonhas do medieval.

     Logo as festividades do carnaval, que tingem de tons alegres a atmosfera solene e monótona do sanatório. Será uma esperada Noite de Walpurgis [Walpurgis Nacht] que vem encantar a todos? Hans tenta quebrar os formalismos com o Sr. Settembrini, que parece ser o mais reservado. Nas brincadeiras da noite, Hans se vê a pedir um lápis a Clawdia, tal como pedira ao seu colega Hippe. É o início de um longo diálogo, onde Hans prefere se expressar em francês. As inquietações do jovem, sobre a situação da Europa, entre liberdade e ordem. Menção ao retrato de Clawdia, visto no ateliê do doutor. A madame não deseja dançar, então ambos ficam apenas a observar os pares no salão.

     Hans destila uma fala poética, onírica, pois falar em francẽs "é como conversar num sonho". Clawdia revela que Hans se demorou a abordá-la, pois agora é tarde, uma vez que ela deve viajar no dia seguinte. Ele não oculta a perplexidade, e conduz a conversa para um nível mais íntimo, como uma forma de compensar a frustração. Hans confessa já não temer tanto a morte, após meio ano a conviver naquele ambiente de doença e agonia, agora ele assume uma atitude de resignação, sem sobressaltos. O que o inquieta é a vida dela, e sua curiosidade leva às perguntas indiscretas... E como num sonho, o jovem vai a tecer divagações e delírios sobre amor, poesia e medicina, como uma confissão final, de joelhos, diante de Clawdia.


No capítulo seguinte, VI, estamos em abril, cerca de seis semanas depois, com a mente de Hans Castorp povoada por considerações, reflexões, divagações sobre o tempo, sobre o eterno e o finito, sobre as transformações no tempo e no espaço, ainda na questão Was ist die Zeit?, enquanto isso, o primo Joachim começa a se inconformar com sua estadia obrigatória devido a sua doença crônica. Afinal, ele só pensa em sua carreira militar interrompida. Até ali Joachim manteve a disciplina e a postura recatada, ao estilo militar. Mas quando ele vê seus planos se frustrarem... Enquanto Hans vai se adaptando com a ausência de Clawdia Chauchat, sabendo que ela em breve retornará (será a quarta temporada dela...) Ele deve se preocupar mais é com as subidas do termômetro, em seu tratamento com o Dr. Behrens, seu médico e interlocutor, entre lembranças e charutos.




     Claro, temos também os diálogos socráticos com o professor Sr. Settembrini, que anuncia sua mudança para a aldeia. É um domingo de Páscoa, uma primavera com tons invernais, a parecer mais um outono. Com o tempo, também a amizade entre o Dr. Krokowski e o atento Hans, interessado nas 'dissecações da alma'. Depois de fisiologia, psicologia, o novo interesse de Hans por assuntos da botânica. Assim as manias de Castorp, com as plantas e as estações do ano. Na aldeia, na rua principal, os primos encontram o Sr. Settembrini e um desconhecido. É um certo Sr. Naphta, um vizinho do italiano lá na pensão.

     Um intelectual, o Sr. Leo Naphta, de aparência pouco atraente, porém bem-trajado, apresentado como um Príncipe da Escolástica [Princeps Scholasticorum], ex-seminarista, professor de línguas clássicas, outro egresso do sanatório. Então os primos passam a acompanhar os debates intelectuais-metafísicos-teológicos dos dois professores. São longos diálogos que exigem certa erudição, certo conhecimento de filosofia clássica e medieval. Settembrini, o iluminista, é mais irônico, dionisíaco, ainda que racionalista. Orgulha-se da natureza e do corpo, a evitar dualismos, é adverso as categorizações, acha que é válido o que guia até o progresso e a liberdade de espírito [no caso, de expressão].

     Naphta é de humor mais apolíneo, de tons solenes, que não é favorável a natureza, antes prefere a espiritualidade. Não é liberdade que importa, mas a elevação do espírito, rumo ao Supremo, no caso, o Transcendental, numa linhagem mais platônica, ou de Aquino. É o pensamento clássico, cheio de hierarquias, onde o individual se submete ao cosmos - Ideia Suprema. É importante a perfeição, desde a vida cotidiana, mundana, até a vida contemplativa, devota.

     Para Settembrini não é a Devoção o mais importante, antes o Trabalho, o esforço, o progresso, e não a contemplação. Ao homem ativo, do mundo ocidental, cabem a razão e a ação, e não a meditação de monges. No que Hans parece discordar, mais inclinado ao estilo Naphta de ser, mais isolado, meditativo, averso aos festins e hilaridades. A meditação não visa o progresso, mas a devoção, o exercício ascético. Ao que Settembrini prefere a 'benção do trabalho', no que concorda com o positivismo burguês, que visa afastar os entraves medievais do pietismo, que seria uma 'preguiça'. E Hans, entre os doutos, volta a preferir o ascetismo de Naphta, numa disciplina plena, no que se aproxima da vida militar, de disciplina e abdicação de si mesmo pela coletividade, a pátria. Mas o italiano acha que vida militar é meramente um formalismo.

     Hans ouve atentamente os argumentos de lado a lado, enquanto Settembrini censura a indiferença, o 'analfabetismo' político, e defende o 'aperfeiçoamento social', o jesuíta Naphta crê que a política é uma oportunidade para que 'uns e outros' se comprometam moralmente, e é fatalista quanto ao progresso; o que muito difere do italiano, otimista, positivista, a crer em medidas racionais contra as ameaças de guerra, com a justiça entre as nações, mesmo que não condene os conflitos, resultados de um 'princípio de movimento', gerado por vontade de mudança, rebelião, rumo às reformas, dentro e fora das nações. Afinal, quietismo, paz constante, não leva ao progresso, a uma auto-superação.

     O atento Hans acha que o conflito é inevitável, mas que tudo volta ao anterior, num movimento circular, de modo que se pode perguntar onde está o progresso. São possíveis reformas pontuais que no fim conduzam a uma estrutura social mais perfeita? Já Naphta acha que após as rebeliões levarem a um estado de união e prosperidade, a rebelião se tornaria crime, afinal os revoltosos no poder se mostram conservadores a temerem novos rebeldes... O seminarista crê que a ideia de progresso rumo a uma sociedade justa é uma vulgarização da crença cristã no mundo sem pecado. Daí o mundo reformado ser possível apenas com a Cidade de Deus, após o fim do pecado mundano. Então haverá uma república universal.

     O iluminista italiano argumenta que ao progresso até a guerra é propícia, pois funcionam como 'civilizadoras', com intercâmbios e desenvolvimento técnico, com o exemplo das Cruzadas, que se estenderam da Europa para a Ásia, a unir reinados e dinastias. Já o seminarista acha que a tendência do 'instinto natural' é o nacionalismo, o fortalecimento dos Estados diferentes, e que as Cruzadas serviram para mostrar as diferenças entre os povos, que somente podem se unir sob a essência espiritual, com o 'cosmopolitismo' da igreja cristã. Mas Settembrini prefere o direito, o estado de direito, que a dinastia clerical, e sua 'presunção hierárquica', pois o direito se baseia numa razão universal, acima dos interesses de cada Estado nacional, rumo a um humanismo de base burguesa, isto é, liberal. Mas o Sr. Naphta acha que o direito dos povos não passa de outra banalização via Rousseau - aquele do Contrato Social - do jus divinum, a lei divina. No mais, a moral burguesa não é suficiente, com seus controles de custos, vide o aumento da natalidade, a necessidade de educação, o crescente desemprego. Assim, um conflito generalizado até seria de grande auxílio...

     Diante de tal debate de ideias, o militar Joachim acha que não importam as opiniões, mas a decência de um homem, sua integridade e sua dignidade. O mais importante não ter opinião, mas cumprir com seu dever. Pensamento de soldado, que levará multidões à carnificina na Grande Guerra, uma década depois. Pois é de se perguntar, o que é ser decente? o que é dever? quem - que grupo social - determina o que é direito e o que é dever? Deve-se obedecer sem questionar?

     As meditações de Hans Castorp são mais profundas, em sua adaptação à estadia em Berghof, quando se depara com questionamentos sequer imaginados na vida apressada da planície, onde os jogos das finanças e do poder são jogados, para o bem de alguns e o prejuízo de muitos. O isolamento nas alturas, meio ao ar rarefeito, em estado febril, leva aos devaneios e pensamentos mais metafísicos, sobre tudo e todos. O jovem ingressa numa verdadeira formação intelectual - o que leva a considerarmos o quadro todo: o desenvolvimento da pessoa - daí tratar-se de uma espécie de Bildungsroman, ou 'romance de formação' - semelhante ao errático Wilhelm Meister, de J. W. von Goethe. 
 

para A Montanha Mágica enquanto Bildungsroman
em http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000205810


     Em densa inquietação filosófica, Hans vai visitar o seminarista Naphta, que vive num aposento luxuoso numa mísera pensão de aldeia. É um cômodo adornado com seda, uma mobília em estilo barroco, com almofadas de veludo. Num canto, uma grotesca pietà (escultura a representar a Virgem com o Crucificado), que segundo o anfitrião, é do século XIV. O professor do seminário passa a divagar sobre a beleza do corpo, a mortificação, a arte gótica, a glorificação do sofrimento, o apelo ao ascetismo. Com a chegada do professor Settembrini temos o contraponto 'pedagógico', contra o menosprezo do corpo e a penitência. O pedagogo não aceita o menosprezo pela natureza e pelo corpo, pois valoriza o ser natural, a perfeição das formas, a alegria. E Hans percebe a hostilidade da estética gótica contra a natureza.


     Settembrini não hesita em relembrar a 'sinistra figura' da Santa inquisição que caçava hereges e punia com a fogueira em nome da penitência e do amor divino. Mas o devoto Naphta lembra que os revolucionários não tem menos 'entusiasmo exterminador' em perseguir e condenar. E tece acusações contra os renascentistas, os iluministas, os liberais, em suma, o 'espírito burguês'. Pois o seminarista espera uma 'reabilitação da Escolástica', pois a ciência sentirá falta da filosofia e dos dogmas, pois a fé leva ao conhecimento, não o intelecto ou os sentidos. "Creio para que possa conhecer" (credo intelligam) para citar Agostinho [Santo Agostinho, sécs. IV e V]. Ciência sem fé é mito, pois sempre há uma vontade além da razão.

     O pedagogo indaga sobre uma verdade, uma moralidade, uma autoridade sob a qual deve se inclinar o 'espírito humano'. Naphta responde que modernamente a autoridade é o próprio homem, e verdade é o que lhe convém. Que o conhecimento da natureza, em busca de um progresso, levou às ciências naturais, sem critérios filosóficos, o que afasta da 'filosofia platônica', e do 'conhecimento de Deus'. E ele apresenta dois sistemas, o primeiro que é escolástico, dualista, transcendental, com corpo e alma, natureza e divindade; e o segundo, que é cientificista , monista, sem alma, sem divindade, apenas extremos de coletivismo ou de individualismo.

     O italiano não aprecia os extremos, acha que o ideal democrático é justamente corrigir com a importância do indivíduo o 'absolutismo' que é do antigo regime [ancien regime], que foi combatido pelos renascentistas e iluministas, arautos da personalidade, dos direitos do homem, da liberdade de expressão. Mas o seminarista acha que tal pedagogia dos racionalistas é retórica, é promessa de libertação, mas as novas gerações querem autoridade, não liberdade, querem ordem não revoltas. A verdadeira pedagogia é aquela que ensina a autoridade, a disciplina, a abnegação, o sacrifício, em suma, a obediência. [Neste ponto, o devoto é bem autoritário, basicamente militarista e hierárquico, o que muito o aproxima dos regimes fascistas, que contavam com apoio de eminentes figuras do clero.]

     O pedagogo e o seminarista concordam num ponto quanto ao passado, onde numa espécie de estado primitivo não havia domínio, nem lei nem castigo, sem propriedade. Então surgiu o senhor e o servo, aquele que possui os bens, e aquele que trabalha para quem possui. Então se estabeleceu uma hierarquia, onde um manda e o outro obedece. isto dentro de um povo. Então o povo cresce, precisa de mais terras, e faz a guerra, e vencendo outro povo, consegue escravos. Naphta defende que o Estado surgiu como um contrato social, contra a injustiça, e Settembrini lembra da obra de Rousseau [Do Contrato Social, 1762, na França] O devoto entende que o Estado pode sofrer resistência e ser derrubado por revoltas, pois o Estado é coisa não-divina, deriva da política dos povos, de caráter imperfeito e circunstancial, enquanto a Igreja [i.e. o poder do Vaticano] é de origem divina, estando acima dos estados seculares.

     Para Naphta a democracia burguesa se baseia nos estados e no individualismo liberal, onde o dinheiro - via impostos e finanças - mantém as realezas, cada uma com interesses próprios, com poderes de guerra e paz, enquanto o poder papal seria um domínio acima, além dos interesses nacionais, sem proteger esta ou aquela propriedade, ou dinastia. Nada de se submeter aos interesses de comércio ou finanças, de exploração ou domínio. Somente com o poder papal virá o Reino de ascetismo e hierarquia. Não importa o trabalho, mas o serviço de Deus, com a produção apenas para as necessidades não para um excesso, um comercialismo, como é a 'produção em massa'.

     O que Naphta deseja é uma espécie de 'comunismo devoto', enquanto o comunismo ou socialismo científico, de Karl Marx, pretende a igualdade e o fim de classes sem a intervenção da religião. O ideal de comunismo do professor cristão é aquele da fraternidade, da justiça, da redenção, a 'Cidade de Deus', contra as contradições e depravações burguesas que criam o capitalismo-imperialismo. [As críticas de Naphta são as mesmas de Marx, com a diferença essencial de incluir a religião instituída, como algo sem pecado, além do demasiado humano. O que lembra muito os ideais da chamada Teologia da Libertação, muito presente na América Latina, que prega a igualdade e a fraternidade, contra as explorações e desigualdades do sistema capitalista.]

     Outros sistemas são contrapostos pela mente dualista de Naphta, com o individualismo de um lado contra o socialismo [da 'ditadura do proletariado' ] de outro. A conciliação é 'comunismo cristão' com o indivíduo enquanto 'alma individual' num sistema de justiça social, onde os bens sejam comuns, para todos, sem coerção. Ao pedagogo não agradam tais 'totalitarismos', mas defende a liberdade mais do que direito de comprar e vender, mais do que comércio e competição, e defende a dignidade da pessoa como direito de não-servidão e de autodesenvolvimento. Nada disso é possível sobre qualquer variação do ancien regime, vigente no período medieval. Mas Naphta argumenta que a liberdade a qual o italiano se refere está ligada a um panorama econômico de comércio e especulação, onde sobra o lucro para alguns e a exploração para muitos outros. Mas Settembrini acusa o cristão de ser um ambíguo reacionário [isto é, reação contra o liberalismo], e perde a paciência. Em seguida, vai-se embora.

     Interessante mesmo a ambiguidade dos professores. O italiano defende a prosperidade e o progresso, mas é pobre, mora num sotão [mansarda ou água-furtada], a lembrar aqueles de Raskolnikov [em Crime e Castigo, de Dostoiévski] e o do músico amigo de Oskar [em O Tambor, de G. Grass], em contraste com os belos aposentos de Naphta, a defender a divisão igualitária dos bens. Um prega austeridade e vive no luxo, outro fala de livre comércio e mora num cômodo simples, isolado, sem conforto. Mas não esperemos coerências das pessoas, muito menos de personagens de romances...

     Logo logo o pedagogo italiano vem advertir os primos sobre as ambiguidades do jesuíta, muito inteligente, muito culto, muito erudito, dado a voos retóricos, assim como o próprio professor, e por isso encontrou um 'adversário de qualidade', e que no duelo de ideias as convicções se tornam sólidas. Hans logo comenta o contraste entre o que Naphta prega - o comunismo, a igualdade - e o luxo de seu quarto, cheio de seda. "O Sr. Naphta é tão pouco capitalista quanto eu", comenta o italiano. Pois a Ordem religiosa o auxilia, mesmo ele não sendo padre, só tendo feito os primeiros votos, uma vez que seus estudos teológicos foram interrompidos pela doença com a qual padecem ali. Tantas carreiras frustradas pelas vicissitudes do corpo.

     Hans acha que a doença seria a causa da originalidade de Naphta, o fato de não ser ainda um padre, sem ortodoxias [lembrar que a Teologia da Libertação não é ortodoxa, pelo contrário, até rejeitada por altas hierarquias do clero...], o que faria do jesuíta outro 'filho enfermiço da vida', assim como o próprio Hans, com sua 'pequena mancha úmida' no pulmão, a mantê-lo preso na 'montanha mágica'. Settembrini rejeita as ideias mórbidas. E os primos correm para se abrigarem em Berghof. 
 




     Assim se passa um ano na 'montanha mágica'. Joachim ainda mais soturno e nada sociável. E seu primo Hans teme pela vida do militar, que sabe ser um homem de ação. Sucedem-se novos exames, novos diagnósticos. E Joachim comunica sua intenção de voltar ao regimento, na planície. O Dr. Behrens insiste em que o jovem militar não está curado. O que não é o caso de Hans, que recebe a permissão para ir embora, mas ele não fica satisfeito, pois não se julga curado. Parece que ele se acomodou mesmo a rotina e ao modo de vida ali nas alturas. Será que ele aderiu ao quietismo? Prefere nada fazer, e ficar só meditando sobre a vida e o tempo? Mas é justamente estas divagações - e os debates - que movem o extenso romance.

     Lá em Berghof, Hans pode fazer novos contatos sociais, após a partido de Joachim. Logo ele recebe a visita do tio James Tienappel, o cônsul, e passa a apresentar o sanatório, aos modos de um guia turístico. É o que mostra o quanto Hans está 'aclimatado' à cultura da 'montanha mágica'. O jovem não fala sobre a família, ou a profissão, ou a sociedade, mas sobre o tempo, o céu, o clima, a fisiologia, e as doenças... James mostra súbita hilaridade, e passa a assuntos sensuais; ele mostra-se um tanto condescendente, sem defender qualquer opinião, numa tolerância digna de mentalidade aberta, fruto de fina educação.

     O cônsul não consegue tão facilmente a entrevista com o Dr. Behrens e vai se deixando enredar pela 'clima' - natural e social - de Berghof. O tio se interessa pela companhia de certa dama, e por assuntos de fisiologia e medicina. Mas na primeira oportunidade, ele vai embora, desce para a planície. Tal desistência, ou fuga, se mostra como uma renúncia da família a recuperar Hans, que devia deixar o sanatório. Assim o romance pode continuar, pois a decisão de Hans Castorp é permanecer no mundo mágico de ideias e divagações no alto da montanha. Novos debates - e novas personagens - esperam pelos leitores.



continua ...




mai / jun 16


by Leonardo de Magalhaens





mais info em

http://www.e-biografias.net/thomas_mann/

http://www.jornalopcao.com.br/colunas/imprensa/sergio-buarque-de-holanda-entrevista-thomas-mann-e-descobre-origem-brasileira-da-mae-do-autor-de-a-montanha-magica


https://felipepimenta.com/2013/10/02/resenha-de-a-montanha-magica-de-thomas-mann/

https://espectral.wordpress.com/2011/01/12/leituras-de-2011-thomas-mann-a-montanha-magica-1924/


http://antoniocicero.blogspot.com.br/2008/04/apresentao-de-montanha-mgica-de-thomas.html

http://www.ocampones.com/?p=6346

http://www.pmannia.com/2011/04/zauberberg-woodcuts-to-thomas-manns.html




original Der Zauberberg em alemão

http://pdbooks.ca/books/deutsch/authors/thomas-mann/der-zauberberg/vorsatz.html






Referências


MANN, Thomas. A Montanha Mágica. [Der Zauberberg] Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. (Coleção 40 anos, 40 livros)



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